Para afirmar este óbvio pouco dito não levei mais de meia hora. O fiz como teste, apenas coletando algumas referências vivas das ciências econômicas brasileiras - justo a parcela que não se vendeu para os bancos e logo não fala pelo tal do “mercado” – e cruzando com minhas pesquisas anteriores. A verificação se deu, e rápido, como posso afirmar que qualquer estudante de ciências humanas, se exposto a um semestre de pesquisa na área, fica apta (ou apto) a rebater qualquer baboseira do gênero neoliberal vulgar, apesar do mesmo pacote de sandices mal intencionadas ser reproduzido em nível acadêmico e midiático em escala global.
Comecemos pela caracterização da mescla de estupidez com extração de mais valia social coletiva verificada na “recuperação pós-bolha de 2008/2009” e seguida da expansão incontrolada de operações conhecidas como shadow banking (com o perdão da redundância, derivadas das transações com derivativos e outros instrumentos de apostas e manipulação especulativa). A definição mais apropriada que encontramos e admitida como válida para definir o mundo – e, especificamente, o ocidente – do eixo anglo-saxão e da Europa unificada (somadas suas áreas de influência direta e indireta, mesmo que sob influência concorrente com as Potências Eurasiáticas), se baseia em Belluzzo e Galípolo (2017):
“’Ainda hoje’, nos tempos da recuperação raquítica, a expansão da liquidez financia a aquisição de ativos já existentes, como a recompra das próprias ações ou o aumento de recursos líquidos, a fim de acumular ativos financeiros e reforçar balanços, em vez de financiar a aquisição de bens e serviços. Novas bolhas de ativos.
A riqueza agregada é o estoque de direitos de propriedade e títulos de dívida gerados ao logo de vários ciclos de criação de valor. A renda nacional é o fluxo de renda criado pelo investimento em nova capacidade produtiva e no consumo das famílias, o próprio valor em movimento.
As injeções de liquidez concebidas para evitar a deflação do valor dos ativos já acumulados não estimularam a criação de valor em movimento, mas incitaram e excitaram a conservação e a valorização da riqueza na sua forma mais estéril, abstrata.
Em contraposição à aquisição de máquinas e equipamentos, a valorização desses ativos não carrega qualquer expectativa de geração de novo valor, de emprego de trabalho vivo. O que era uma forma de evitar a destruição da riqueza velha provoca a esclerose do impulso à criação de riqueza nova.”
A situação está mais feia do que aparenta, apesar de toda a espetacularização do cotidiano. A fase do capitalismo global monopolista-financeiro, vinculada à globalização da produção e à sistematização do rentismo imperial, gerou uma oligarquia financeira e um retorno à riqueza dinástica, principalmente nas nações centrais, confrontando de forma cada vez mais generalizada (mas também altamente segmentada) com a classe trabalhadora em todo o mundo. Logo, “[...] a fração líder da classe capitalista nos países centrais agora consiste no que poderíamos chamar de rentistas globais, dependente do crescimento do capital global de monopólio e finanças e sua crescente concentração e centralização”, de acordo com Thomas apud Foster (2015).
A reprodução deste novo sistema imperialista, como Amin apud Foster explica no Capitalismo na Era da Globalização (2015), “baseia-se na perpetuação de cinco monopólios: (1) monopólio tecnológico; (2) controle financeiro de mercados mundiais; (3) acesso monopolístico aos recursos naturais do planeta; (4) monopólios de mídia e comunicação; e (5) monopólios sobre armas de destruição em massa”.
Assim, temos a nova verificação de um conceito evidente. Há uma dinâmica de portas giratórias em escala mundo, sendo que muitas vezes a “elite nacional financeira” se torna transnacional, sendo operadora de confiança dos especuladores do eixo NYC-Londres, ou associada, ou também como internacionalizando e financeirizando grupos outrora nacionais (na prática, transnacionais na projeção e ‘nacionais’ nas relações políticas de privilégio na barreira à entrada, operando dentro do lócus de poder político-técnico-jurídico de interesse). Vale observar como temos a reedição do conceito de elites orgânicas, conforme Dreifuss (1986, p. 24):
“Ao constituir-se como tal, a elite orgânica se diferencia do conjunto das classes dominantes e mesmo dos interesses representados do bloco de poder do qual faz parte, lidera e viabiliza, operando assim como fator de poder num nível especificamente ‘político’ (obs: estas segundas aspas são minhas). Embora organicamente vinculada ao seu universo sócio-econômico-cultural, esta diferenciação é imprescindível para uma intervenção política eficaz e eficiente, na medida em que a classe dominante é una na sua diversidade de unidade de acumulação competitivas – seja no nível da composição de capital, no plano da produção setorial ou no universo dos grupos econômicos – às quais correspondem essencialmente percepções e atitudes corporativas ou de solidariedade (e não atitudes ‘políticas’) expressas em associações, sindicatos e federações de classe”.
Adaptando ou reatualizando o conceito de Dreifuss (1986) em escala transnacional, observamos a existência de elites orgânicas em distintas escalas, tanto domésticas - em espaços decisórios de Estados relevantes no Sistema Internacional, – como nas TNCs e em organismos multilaterais do SI. No mundo “ocidental” ou além das potências eurasiáticas de China, Índia e Rússia (nesta escala econômica) ou China, Rússia e Índia (na escala militar e tecnológica), são as oligarquias financeiras – e, especificamente, a oligarquia financeira e também a financeirizada dos EUA – que detém a centralidade nas portas giratórias.
A pesquisa que segue vem sendo difundida pelo professor Ladislau Dowbor (dowbor.org, do PPG da PUC-SP), a qual modestamente me somo como seguidor e reconheço-o como maior referência brasileira viva na área. A cadeia de controle de corporações transnacionais (TNCs) afeta o mercado em escala global assim como a estabilidade financeira. Uma pesquisa combinada produzida pelo ETH (Suíça) expôs a arquitetura de cada proprietário de cadeia internacional, mas também a rede de controladores de cada uma destas cadeias. Apenas nesta forma de pesquisa combinada, apostando mais em relevo descritivo do que hipóteses consolidadas é que se chegou à conclusão objetiva de que havia, em 2011, 43.060 TNCs – partindo da base de dados da OCDE . Deste total, 737 conglomerados de grande concentração, os chamados tops holders, comandam mais de 80% de todas as cadeias transnacionais de valor e controle acionário, conforme Vitali, Glattfelder e Battiston (2011).
E para onde vai parte considerável dos recursos obtidos por esta brutal concentração de capital e de poder decisório? Justamente para Paraísos Fiscais ou Jurisdições Especiais, uma rede de economia paralela e segredo como forma de evasão de divisas. Vale lembrar que tais “jurisdições” obedecem – em sua imensa maioria – a soberanias de potências mundiais, incluindo os “paraísos onshore” dos EUA, o conjunto de ilhas como territórios britânicos associados e os antigos enclaves europeus (Hong Kong e Macau) devolvidos para a China confucionista. Segundo Stiglitz e Pieth (2017):
“Os paraísos fiscais permitem aos criminosos usufruir dos frutos de seu mau comportamento e, por isso, persistirem. E os paraísos fiscais tornam virtualmente impossível penetrar na rede de maus atores. Quando descobrimos quem é o dono de uma conta bancária na qual foram depositados fundos ilícitos, verificamos tratar-se de uma empresa registrada em outro paraíso fiscal e tanto agentes da lei quanto jornalistas investigativos se veem diante de um beco sem saída”.
Apontando conclusões
Como é sabido, a violação sistemática de soberanias relativas e o emprego da evasão fiscal e emissão irregular de recursos para jurisdições especiais, opera como uma forma de acumulação privada e corporativa em escala mundial. O emprego é global, as cadeias de transferência e a centralização decisória – extremamente concentradas – atingem em escala global, mas os sistemas de governança e instituições de regulação não o são. Logo, em escala doméstica, o que se percebe são os limites da democracia de massas, ou como define Dowbor (2017) como “o fim do capitalismo democrático”.
Dentro desta constante violação de soberania e democracia limitada, a autoridade monetária e as autarquias financeiras fazem parte da lista de capturas, dos alvos prioritários do capital transnacional. Ainda de acordo com Dowbor (2017), os próprios banqueiros são os responsáveis pelas regras que os regem, de maneira que mesmo com um sistema de finanças universal, o manejo dos bancos primários é nacional.
“Não é o fim do capitalismo, mas o fim do capitalismo democrático. Antes eles precisavam de milhares de pessoas, hoje a regra mudou e são as próprias corporações quem decidem o que pode e o que não. Isso porque o sistema financeiro é global e o controle dos bancos centrais são nacionais”. (Dowbor, 2017).
Assim, é urgente conhecer o inimigo, interpretá-lo, decifrar seus movimentos e combater severamente o conjunto de mentiras sistemáticas que após infinitamente repetidas, terminam por legitimá-lo.
REFERÊNCIAS
DREIFUSS, René. A Internacional Capitalista. Rio de Janeiro: Editora Espaço e Tempo, 1986.
BELLUZO, Luiz Gonzaga; GALÍPOLO, Gabriel. A crise financeira e a implosão das ignorâncias. Revista Carta Capital, São Paulo, 25 ago. 2017. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/revista/966/a-crise-financeira-e-a-implosao-das-ignorancias>. Acesso em: 10 nov. 2017.
Dowbor, Ladislau; Os vazamentos do dinheiro público. Dowbor blog, 2014. Disponível em: < http://dowbor.org/2014/02/os-vazamentos-do-dinheiro-publico-ladislau-dowbor-janeiro-20144p-2.html/>. Acesso em: 24 out. 2017.
Foster, John Bellamy. The New Imperialism of Globalized Monopoly-Finance Capital. Monthly Review, v. 67, n. 3, jul./ago. 2015. Disponível em: <https://monthlyreview.org/2015/07/01/the-new-imperialism-of-globalized-monopoly-finance-capital/>. Acesso em: 10 nov. 2017.
STIGLITZ, Joseph E.; PIETH, Mark. Superando a Economia Paralela. São Paulo, 2017. Disponível em: <http://dowbor.org/blog/wp-content/uploads/2017/04/17-Stiglitz-Pieth-Paraisos-fiscais-33p.pdf>. Acesso em: 24 out. 2017.
VITALI, Stefania; GLATTFELDER, James B.; BATTISTON, Stefano. The Network of Global Corporate Control. Plos One. 26 out. 2011. Disponível em: <http://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0025995>. Acesso em 02 nov. 2017.