Escolhemos abordar a representação por ser esta uma forma de fazer política que está em crise no Brasil atual. Pela definição clássica, com a qual concordamos, o país vive hoje sob um regime de democracia representativa. Ou seja, para o bem ou para o mal, há representação e disputa política dentro da normalidade. Não estamos aqui discutindo se a democracia brasileira é ou não estável, consolidada ou em vias de consolidação. Este é outro debate, e objetivamente é secundário para o ano eleitoral que vivemos. O debate proposto é outro. Trata-se da qualidade da representação política e o tipo de controle do mandato.
Em nosso modelo de representação, o voto é obrigatório para a maioria e opcional para os adolescentes e mais idosos. Temos como opção de escolha básica, aos mandatários dos poder executivo nacional, além dos estados e municípios. O mesmo vale para os legisladores, sendo que o voto não é distrital. Nosso Congresso é bicameral enquanto as casas legislativas nos estados e municípios têm uma só câmara.
Escolhemos por voto apenas a estes atores e sempre através de partidos políticos de tipo burguês clássico. Ou seja, as máquinas político-partidárias, quando se posicionam mais à esquerda, funcionam como estruturas de intermediação. Quando estas são “tradicionais” ou de direita, funcionam mais como um consórcio de interesses do que uma plataforma político-programática.
Em outros modelos democráticos o volume da escolha é muito maior. Podem ser escolhidos procuradores, xerifes e até juízes. A experimentação brasileira nesse campo ainda é tímida. Um exemplo desta timidez é a recentemente instituída escolha para o Conselho Tutelar, esfera de âmbito municipal. Tivemos a oportunidade de acompanhar este pleito em Porto Alegre e Região Metropolitana e o verificado foi um balão de ensaio para o pleito da vereança. Sempre é válido ampliar os canais e formas de disputa política. Mas, para que estas ganhem organicidade, é necessário um tempo largo além de regras simples e fixas. É justo o oposto da versão política para o “jeitinho” brasileiro, o também famigerado casuísmo.
É preciso reconhecer que nem tudo são críticas para a escassa experimentação brasileira. Se há pouca variedade no plano eleitoral, abundam conselhos de âmbito municipal, estadual e até nacional. Em geral são conselhos tripartites ou com múltiplos interesses. Boa parte deles tem algum grau de representação real. O problema é que pára por aí. Os conselhos com poderes resolutivos de fato por vezes tem motivações próprias e funcionam como centro decisório paralelo. Ao invés de atenderem interesses populares, atendem motivações de além-mar. Sim, estamos falando de instâncias do tipo Conselho de Política Monetária (Copom), dentre outros.
Já os Conselhos de saúde, educação, transporte, meio ambiente, habitação, do trabalho, da mulher, dos menores, do negro e de outros setores sociais ou questões específicas, em geral, carecem de poder resolutivo. Estes fóruns até contam com certo grau de legitimação e presença de interesses reais. Mas a equação é sempre ao inverso. Quanto mais legítima é a instância, mais consultivo é o conselho. Aumenta o volume de discussão e debate e baixa a capacidade resolutiva real. Quem decide têm de ter à sua disposição um certo número de recursos e estruturas de execução. Caso contrário, nada se realiza.
É como diz o ditado gaúcho:
“de que me adianta eu querer trovar bonito, se as coisas que digo não sustento?!”
Para aumentar o grau de legitimidade das instâncias de representação, é necessário participação e controle direto. O mecanismo dos plebiscitos já o comentamos algumas vezes. Um complemento deste é uma fórmula democrática que inclua o mandato imperativo. Neste caso, quando o representante não atende aos interesses de seus votantes, muda de partido ou de lado, imediatamente perderia seu mandato.
Esta era, por exemplo, a fórmula inicial da democracia inglesa. O problema é que tanto o voto como as candidaturas eram censitárias. Apenas os “homens de bem” podiam concorrer e votar nos pleitos. Para votar eram necessários alguns bens e para concorrer mais bens ainda. Na democracia censitária inglesa, a fórmula política era sobreposta à estrutura de estratificação de classes. Com tal grau de nivelamento e paridade, era natural que os mandatos fossem imperativos.
Em uma sociedade complexa como a nossa, reconhecemos que o mandato imperativo clássico não é possível. Por outro lado, havia uma virtude na fórmula inglesa. Esta é a cobrança entre iguais sempre que estes atendam aos interesses de sua própria classe. E é sob este ponto de vista que defendemos algum tipo de controle, não apenas sobre os representantes mas também sobre as legendas.
Algumas vontades já são de anseio popular. Já é natural vermos algumas categorias urrando de ódio quando um deputado eleito por esta base vota contra a plataforma que o elegeu. Um freio viável para isso seria o compromisso pré-eleitoral, firmando pontos-chave para sua campanha e o mandato. Caso este parlamentar vote e se posicione contra os interesses pré-acordados junto aos setores ou micro-regiões que o elegeram, poderiam ser chamadas algumas instâncias de base, até que o mandato fosse definitivamente revogado. Uma vez fora, assumiria um suplente e assim sucessivamente. O mesmo vale para a troca de partido. Caso o político troque de legenda, perderia imediatamente o mandato.
Considerando que estamos no Brasil, algum controle sobre as legendas também é necessário. Seria aceitável a troca de partido em situações limite, quando a sigla vota contra sua plataforma e chama na disciplina a base parlamentar. Apenas neste caso seria tolerado o câmbio. Em outros mais “corriqueiros”, o ator político teria de escolher entre o interesse individual e a vontade coletiva que o elegera.
Entendemos que estas formas somente se aplicam com o aumento da participação política e ingerência popular sobre o orçamento e as decisões fundamentais da nação. Uma conseqüência destes processos seria o formato do voto opcional. Mas, como no país temos por hábito construir a casa pelo telhado, a instituição do voto voluntário pode ser uma boa maneira de estimular a participação das pessoas e grupos de interesse.
Por mais experimental e temerário que pareça, qualquer saída é melhor do que o atual formato. Há mais de 20 anos viemos elegendo pessoas sem ter o menor controle sobre seu mandato e menos ainda sobre os recursos a serem administrados. Neste modelo de democracia representativa o voto é um cheque em branco. Este é tão confiável como o cheque que Lula disse que depois de assinar, iria entregar em mãos para Roberto Jefferson.
Artigo originalmente publicado o blog de Ricardo Noblat