A resposta do governo Bashir Al-Assad primeiro foi deixar o caminho entre Aleppo e Kobanê aberto, de modo que após os bombardeios intensos sobre Aleppo (quando a aviação do Baath bombardeou de forma indiscriminada), Kobanê ficasse superpovoada com um mosaico de etnias. Na sequência, o governo alauíta deixou de atacar na região, abrindo o espaço e campo de manobras para a disputa concorrencial entre o ISIS e a Frente Al-Nusra (criatura e criador, respectivamente, pelos vínculos com a Al-Qaeda). Houve também um conflito pelo controle territorial dentro da oposição não jihadista. Os combates entre YPG e Exército Livre da Síria (FSA), se deram por quase um trimestre, levando a trégua no final de 2013. Com este armistício, YPG e FSA passaram a operar em conjunto, mas ficando Rojava como um solo libertado e com a Autonomia Democrática (nível local do Confederalismo Democrático) como base de funcionamento.
Neste mesmo período, recrudesceu o avanço jihadista na região, com o beneplácito da Turquia, dos países do Golfo (Arábia Saudita e Qatar em especial) e também com a ausência de ataques vindas de Damasco. Resultado: o poder popular no Curdistão sírio se tornou a única fonte de confronto direto contra a demência de ISIS e grupos rivais.
Operam neste cenário, em aliança estratégica, YPG e FSA. Reforçam a posição curda um destacamento de peshmergas vindos do Governo Regional do Curdistão (KRG), no Curdistão Iraquiano e controlado - pela via eleitoral - por três partidos da direita curda. O governo de Irbil (capital do Curdistão iraquiano) negociou com o gabinete de Erdogan (premiê turco) por meses para conseguir o salvo conduto em seu território soberano (o Curdistão turco) de modo a chegar ao front em Rojava. O KRG é o mais próximo de um governo pró-ocidental na região, sendo que suas forças já confrontaram o PKK no início dos anos 90.
Em contrapartida, uma trégua de unidade entre os curdos, permitiu que um contingente do PKK-HPG (as forças de autodefesa da esquerda curda na Turquia, uma guerrilha móvel com grande experiência) pudesse se deslocar ao teatro de operações em Kirkuk (Iraque) e junto aos peshmergas combatessem o avanço do ISIS de modo a protegerem os yázidis, assírios, caldeus e outras minorias. Deste modo, a aliança curda pode ampliar o território de soberania do KRG. Isso valeu uma representação consultiva do PYD (partido co-irmão do PKK em território sírio) e o aumento da popularidade da esquerda curda em área do KRG (ressalte-se que o governo de Irbil é aliado das transnacionais do petróleo e tem excelentes relações com Israel; ao contrário do PKK-PYD). Os ataques aéreos coordenados pelos EUA mudam a dinâmica da guerra entre o ISIS X o YPG e aliados mas não impedem suas manobras e avanços.
O maior problema para a vitória do YPG é a fronteira com a Turquia, severamente patrulhada e comprovadamente sendo favorável ao ISIS. Por estes caminhos entram voluntários jihadista europeus, armas e suprimentos, além de uma ação de controle policial por parte das tropas turcas, impedindo as linhas de abastecimento para o front em Kobanê. Assim, combatem neste front: YPG/FSA/Peshmergas X ISIS e, ausente do conflito está o que restara do governo Assad (recuado ao sul da Turquia e na região em torno de Damasco). O Exército Turco assim como as monarquias do Golfo acabam por auxiliar o ISIS e a Al-Nusra e o Irã, ao não combater os jihadistas sunitas na região, também isola o combate entre a esquerda curda e os seguidores de Al-Baghdadi.
A história se repete, desta vez Beirute Ocidental é Kobanê
Durante o fatídico ano de 1982, na segunda invasão das Forças de “Defesa” de Israel ao Líbano (cinicamente chamada de Paz para a Galileia), foi cunhado um lema que marcou a revolução palestina e o pan-arabismo. Na Beirute Ocidental sitiada por forças israelenses aliadas das falanges cristãs (Kataeb e Tigres de Gemayel), na zona controlada pela Frente Palestino-Muçulmana-Progressista as paredes diziam: “Beirute é a Stalingrado dos árabes”. Em 2014, a cidade de Kobanê, sitiada no território sírio pelas bem equipadas forças do Daesh (ou Estado Islâmico do Iraque e do Levante, ISIL ou ISIS), é a Stalingrado dos curdos, armênios, chechenos, alevis (uma versão de sufismo), yázidis, assírios, árabes (xiitas, sunitas e cristãos), além de turcos de esquerda e uma leva crescente de voluntários internacionais.
Esta cidade sofre também com a pressão das tropas da Turquia, governada pelo partido islâmico AKP, e um Estado a trabalhar pela derrubada do regime do clã Assad. O governo de Ankara está de fato permitindo o livre trânsito de jihadistas, boa parte destes oriundos de comunidades islamizadas de países europeus. Além do passaporte da União Europeia, uma leva considerável dos combatentes do integrismo sunita provém de países membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Nesta aliança militar, dentre os 28 países membros, apenas a Turquia é de maioria e religião oficial islâmica.
O Estado turco tem autonomia decisória, excedentes de poder e executa uma estratégica realista que leva a um temível jogo duplo. Publicamente, coordena com os EUA para formar uma coalizão contra o ISIS. No dia a dia da frente de combate, relutou em liberar seu território para os reforços de 150 pershmerga (leões do Curdistão, combatentes curdos leais ao Governo Regional Curdo em território iraquiano), que vindos do cantão de Cizîre (dupla fronteira com Iraque sob controle curdo e a Turquia), ajudaram a resistência de Kobanê. Nos bastidores, autoriza a passagem do terror islâmico para atacar as posições da esquerda pela retaguarda.
Como já foi dito acima, duas são as facções islamistas combatendo a revolução curda. Uma é o ISIS, liderado pelo auto-proclamado califa Al-Baghdadi, uma organização religiosa-militar que conta no teatro de operações da Síria com mais de 18.000 combatentes provindos de mais de 90 países. É revoltante o papel da Turquia na luta contra Rojava. Outra é o braço oficial da Al-Qaeda na região, a Frente Al Nusra. Para Erdogan e seus correligionários, é preferível manobrar o terror sunita a tolerar a autonomia de Rojava e sua constituição pluri-étnica e com experimentos de democracia direta e semi-direta. Como o Exército Livre da Síria (FSA) assinou uma trégua com o YPG/YPJ (forças de autodefesa de Rojava), logo o antigo braço satélite de Ankara diminuiu sua capacidade de operar como satélite do gabinete de Erdogan. Assim, o islamismo moderado do AKP, tolerante com o Ocidente, pode reforçar o Islã integrista e totalitário do ISIS. A meta é combater a esquerda curda e seus aliados multiconfessionais.
O custo político-ideológico da unidade curda
A esquerda curda precisa garantir um corredor e santuário de reabastecimento para o front em Kobanê. Este terreno seguro é o território controlado pelo KRG. Assim, tal dependência pode implicar na possibilidade de assimilação de Rojava dentro da dinâmica pró-Ocidental do gabinete do premiê Nerchevan Barzani. Vale lembrar que Barzani é um aliado de Israel e assinou uma série de contratos com petrolíferas ocidentais, tendo uma excelente relação com os Estados Unidos (vistos nesta zona como libertadores da ditadura de Saddam Hussein). O temor não precisa ser exagerado, mas cabe um debate sincero sobre o nacionalismo curdo e a possível unidade com o governo liberal do KRG. Independente destas variáveis pró-liberais, as possibilidades estão realmente abertas, desde que o YPG/YPJ/HPG vençam o ISIS no front em Kobanê.
O que está em jogo é o redesenho da geopolítica do petróleo e a formação de uma nova sociedade. Não por acaso estamos diante de um silêncio cruel. “Not a single word “- nem uma única palavra. Se tomarmos como medida da preocupação dos EUA a linha editorial da CNN e seus vínculos com o Partido Democrata, se refere a Revolução de Rojava como a frente de batalha dos curdos sírios. Não há nenhuma referência ao PYD, ao YPG como uma força beligerante de uma outra forma de vida em sociedade e menos ainda uma referência ao Confederalismo Democrático. Trata-se de cruel silenciamento e ocultamento diante dos olhos do mundo. O discurso é que não haveria um parceiro confiável, logo o Ocidente deveria deixar que os Estados islamizados (Irã, Turquia e Arábia Saudita) tomem sua própria iniciativa. Considerando que a Turquia é parte da OTAN, está aí o aliado preferencial. E, para Ankara – nas regras duras do realismo geopolítico - não haveria diferença substantiva entre o PKK e o ISIS, por mais absurdo que isto possa parecer.
Qualquer semelhança de expectativa com a Revolução e Guerra Civil Espanhola não é nenhuma coincidência.