08 de agosto de 2008 – Ponta Grossa – Campos Gerais – Paraná
Quem teve a oportunidade de assistir a Abertura dos Jogos Olímpicos de Beijing pôde ver uma bela operação de corações e mentes operada pelo departamento de propaganda de uma versão pós-moderna do confucionismo. A China, autoreferenciada como Império do Meio, ou do Centro, considerando a si mesma como central para seu universo, abre-se para o mundo na forma de comércio, abundância de mão de obra barata e oferece a receita dos sonhos das transnacionais. As Olimpíadas pequinesas são o coroamento da super potência que apaga a sua própria história.
Tão cruel como o tráfico de ópio praticado pelos ingleses na conquista de Hong Kong é omitir que os súditos da rainha Vitória praticaram tal ação política-comercial. Tão absurdo como a manipulação de Mao Zedong das forças sociais liberadas para a auto organização a partir de 1966 é ignorar que houve um episódio chamado Revolução Cultural, que Mao a encabeçou, que o próprio Mao a fundamentou, que o timoneiro a abandonou e uma geração inteira de socialistas chineses foi largada à falta de sorte em campos de reabilitação outros lugares ainda piores. Mao afirmava ser esta a seqüência da batalha entre Lao Tzu e Confúcio. Só que o primeiro é discípulo do segundo e a herança de um não resultou em ação organizada enquanto o segundo afirmou uma burocracia de Estado, que muda de governo, mas não abandona jamais o Estado. O trem de prata maoísta passou, a China ouviu a Kissinger, entrou para a Organização Mundial do Comércio, na ONU e em dezenas de organismos bi e multilaterais. Isso foi a partir de 1971.
No final dos anos ’70 a China tem a virada dentro de sua própria elite dirigente. Um neoliberal de linha chilena, Deng Xiao Ping, comanda e afirma a sua liderança, não sem antes acenar com alguma abertura política. O resultado de centenas de milhares de dazibaos (jornais murais colados de forma livre e sem censura) foi uma idéia vaga de liberdade de expressão. Quem acha que exagero leia o livro hoje histórico e em formato de relíquia narrativa, “Henfil na China”. A acumulação primitiva dos anos ’50 não levou às liberdades políticas tendo por base uma sociedade distributivista. Tian Amen, a Praça da “Paz” Celestial, provou os limites de uma economia globalizando-se e um regime político de partido único.
Vamos compreender o que ocorre. O Partido Comunista da China é tão “comunista” como o PPS brasileiro é “socialista” ou o MIR boliviano é “revolucionário”. O PCC poderia chamar-se de Partido Confucionista Chinês e estaria conceitualmente perfeito. Alguns princípios de Confúcio são: obediência; aconselhar o príncipe; servir ao Estado; formar uma burocracia; a idéia de liberdade inexiste. Perfeito, é o mundo dos sonhos das transnacionais! Um país potência, com mão de obra sobrante, população de predominância rural e com zonas de desenvolvimento intenso, relações de trabalho quase escrava, alta tecnologia, agressividade no comércio exterior, interdependência com os Estados Unidos, exportando população com capacidade de investimento mundo afora, inundando os países com produtos baratos pela superprodução e mais valia absoluta sobre a mão de obra que trabalha. Tem mais, não há liberdade política, mas as transnacionais podem investir à vontade na China, conseguem pessoal capacitado, não sindicalizado, operam muitas vezes nas Zonas de Processamento de Exportação, até a internet é censurada, atua como potência e pratica imperialismo entre os vizinhos, o modus vivendi é censura e repressão. O Estado é tão uníssono que sequer agüenta a mídia corporativa mentirosa e capitalista que foi cobrir os Jogos Olímpicos. Imaginem um jornalismo investigativo e comprometido com os direitos fundamentais?!
Os mesmos que odeiam esse tipo de mídia lá a detestam no Continente. Jamais escutei de um grande empresário brasileiro ou latino-americano qualquer tipo de crítica em relação à China. Jamais escutarei algo assim a não ser por algum tipo de constrangimento. O país de Deng Xiao Ping é um paraíso para a era de ouro do capital financeiro e digital. Reprime os trabalhadores e libera o capital. Morde muito é verdade, mas as sobras de um gigante são igualmente gigantescas.
Alguns fatores, no meu modo de ver, determinam a terra dos sonhos das transnacionais em solo chinês dominado por homens da etnia dos HANs. Vamos a eles:
- Na China não existe aposentadoria e nem previdência pública. Cabe às famílias cuidarem dos seus entes idosos, não importa o quanto ele ou ela tenha contribuído para a riqueza da sociedade. Assim, os recursos do Estado podem ser gastos com as empresas de ponta que lá se instalam e mega obras de infra-estrutura.
- Falando em desenvolvimentismo industrial a todo custo, vê-se que o cuidado com os próprios recursos naturais não está em pauta entre os empresários com carnê do PCC chinês. Inspiram economistas do governo Lula como Dilma Roussef, atropelando populações originárias e ancestrais. A cegueira da acumulação capitalista impede ver que as riquezas naturais não renováveis são o maior patrimônio da segunda metade deste século XXI que recém inicia.
- O mesmo se dá na chamada “qualidade de vida” nos mega conglomerados urbanos. É sabido que a bolha imobiliária é a ante-sala da crise de lastro. Todos sabem que o crescimento vertical de uma cidade nunca é acompanhado do necessário crescimento submerso da mesma urbe. Ou seja, uma selva de pedra de arranha céus necessita de saneamento básico, água potável e transporte público. Com a liberação de carros e a implantação de novas indústrias muito poluentes nos arredores dos grandes centros, o ar da China é uma mescla terrível de poeira, névoa, neblina e gases tóxicos. Chuva ácida era o terror da adolescência que nos anos ‘80 vivia amedrontada com uma guerra nuclear. Hoje a guerra é contra a saúde dos povos.
- Um país que acena ao mundo como potência econômica não tolera a oposição política nem a diversidade midiática. Todos os grandes provedores de internet se renderam às exigências do governo de Beijing. Nada melhor para os magnatas da mídia e as empresas de telecomunicações hoje emitindo conteúdo e fornecendo bens simbólicos para o planeta. A carga de valores individualistas e estética única mundo afora pode, pensamento crítico na China dá em morte de quem o pratica.
- O mesmo Estado que mudara seu alfabeto, a mesma sociedade que enervada com sua elite dirigente proclamara a Nova Cultura e a proletarização absoluta, agora se dá ao luxo de omitir ao mundo a sua própria história, história que qualquer curioso da história chinesa sabe de cor. A cerimônia de abertura foi o placo globalizado de uma versão oriental de 1984 orwelliano. Os censores do Partido de Confúcio taxaram de Era da Vergonha o período caótico que fora do Império Ming até a liberalização econômica definitiva após o Massacre de Tian Amen. Para eles não houve Longa Marcha, nem Guomintang, nem Kowloon Street, nem Tríade, nem Ópio, nem ocupação japonesa, tampouco heroísmo dos Boxers, menos ainda o federalismo de Nanking, as conspirações do Partido Hung, guerras anti-britânicas onde os camponeses de Cantão enfrentavam as metralhadoras de peito aberto, nem cheiro das aldeias coletivas onde tudo era coletivizado ...e, a lista de omissões da história vivida na carne e pele de 25% da humanidade ocuparia várias enciclopédias. A Terra viu o que é apagar a memória coletiva na era das telecomunicações e do capitalismo digital. Prenúncios do que já está preponderando entre farra de consumo, frustração e censura.
- Trocar a História pela mercadoria individualiza as perspectivas de vida e fornece a solução de controle sobre uma população nacionalista e com desejos inconfessáveis de expansão. A historicidade de lugares como Shangai sofre ataques de todo tipo de especulação imobiliária urbana, sendo que os maiores corretores imobiliários também são afiliados do Partido de Confúcio! Exagero? Não, as fontes são abertas e basta verificar.
Podia seguir a lista de fatores, mas encerro por aqui. Reconheço que a cerimônia me surpreendeu pela mentira e omissão sistemática. Afirmo que aquele país e sua elite dirigente nada têm de igualitários ou coisa que o valha. Seu modus vivendi, além do modus operandi, é simplesmente o paraíso das transnacionais, portanto, o inferno em vida para os povos, incluindo mais de 70% de todas as 56 etnias que vivem sob a bandeira do Estado HAN. Abraçados como grandes amigos, Friedrich Hayek e Deng Xiao Ping rendem suas homenagens a Confúcio enquanto ardem em algum lugar obscuro, purgando suas almas dos males causados por suas idéias e ações sobre a vida de mais da metade dos seres humanos. A China é a mão esquerda dos EUA, até vir a se tornar as duas mãos de si mesma. Então veremos o epílogo da Globalização que a quase tudo desregula.