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ISSN 0033-1983
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Artigos Para jornais, revistas e outras mídias
O conflito na Venezuela: uma mirada mais à esquerda - 1
| Os murais de grupos não-oficias e mais radicalizados, como o Alexis Vive, com base no indomável 23 de Enero, são parte essencial de uma capacidade de fazer política para além de Chávez, Miraflores e apostando no descontrole da direita endógena.
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A partir desse texto, inicio uma pequena série de artigos (dos que saem no IHU) abordando o conflito político venezuelano e seus possíveis significados e desdobramentos para a esquerda latino-americana e os processos de retomada da coisa pública no período pós-neoliberal. A luta com a oposição escualida na Venezuela nos dá a oportunidade de fazer um debate de fundo. Com modéstia me aproximo do tema, explicitando que não sou um especialista no país embora o conheça e a seu processo. Do ponto de vista político, por suposto que defendo o protagonismo dos sujeitos sociais organizados na terra de Ezequiel Zamora. Para nós, vizinhos, aliados e hermanos da América Latina, entendo que cabe a crítica, a autocrítica e o posicionamento firme pelo aprofundar do processo de câmbio social, entrando de vez nas estruturas fundamentais da sociedade que ainda padece sob a herança do famigerado Pacto de Punto Fijo. Nesse sentido, a liderança carismática pode ser uma solução de curto prazo, mas é sempre um problema no médio e longo prazo. enviar imprimir Desde que fora eleito em 1998 vindo a assumir o poder presidencial em 1999, o governo de Hugo Rafael Chávez Frías já passara por altos e baixos. No momento, o choque entre os poderes constituídos consolidados no Estado – através de Governo Central democraticamente reeleito por 11 anos consecutivos – se dá contra uma oposição viúva do pacto oligárquico gestor junto aos poderes externos da plataforma de exportação petroleira. Antes, 80% do PIB nacional advindo do petróleo ficavam com não mais que 20% da população. Em uma década, embora ainda tenha disparidades, aumenta a divisão de renda e o financiamento dos serviços públicos através do comércio internacional do combustível fóssil.
Na América Latina, disputar o projeto de sociedade passa pela desconstrução do Estado oligárquico e cujos mandatários são dotados de mentalidade entreguista. Na defesa incondicional desse ponto de vista de tipo patria contratista, se localizam os empresários mais ferrenhos e militantes, o típico empreendedor e político é o que toma à frente e participa ativamente em Fedecámaras (Federação de Câmaras e Associações de Comércio e Produção da Venezuela) – o equivalente ao organismo macro dos agentes econômicos privados venezuelanos. Em abril de 2002, foi o seu então presidente Pedro Carmona que assume o poder temporariamente em Miraflores. O atual líder Executivo da Federação patronal, José Manoel González, clamara abertamente por uma rebelião empresarial, levando ao clima pró-golpe de Estado. Diante desse tipo de inimigo direto, a dúvida não seria se é lícito ou não expropriar uma empresa privada de um setor cartelizado, mas sim quando e como deve ser tomada essa medida.
O mesmo vale para o setor central do capitalismo cognitivo e simbólico, seu porta-voz e corredor de transporte de signos, ou seja, a mídia privada. O grupo controlador da Rádio Caracas TV (RCTV) é responsável por convocatórias pró-golpe abertas. Não se trata mais de um agente de mídia que estaria sendo censurado, mas sim de um operador político que substitui a liderança de partidos de intermediação fracos e desprestigiados. O fenômeno pode ser novo em proporção, mas nunca em essência. Se conferirmos os editoriais dos maiores jornais do Brasil na primeira metade da década de 1960, os textos publicados na semana antecedente do 1º de abril de 1964 convocam o Golpe de Estado de forma aberta e explícita. A história se repete, e agora que Lincoln Gordon arde nas profundezas, o papel de pró-cônsul do Império cabe a advogada Hillary “Whitewater” Rodham Clinton.
Ainda nesse sentido, da análise comparativa a partir de exemplos históricos do século XX, o tema do desabastecimento é igualmente preocupante. Antes da disseminação dos manuais de “revoluções de veludo”, o movimento clássico da direita era promover os locautes patronais e esvaziar a sensação de consumo pleno. O caso chileno durante o governo Allende foi exemplar. Isto vem a funcionar – a da crise por ineficiência - quando a versão circulante hegemônica pertence aos meios privados e não existe eco social retumbado através de mídia popular e comunitária. Assim como o Estado sob o comando de Chávez toma à frente e antecipa a luta direta fechando o canal RCTVI – como antes o fizera no sinal aberto, e ainda mais para trás a pugna se deu com o Grupo Cisneros, hoje posando de oficialista – opera como interventor das grandes plataformas de distribuição, antecipando-se aos possíveis saques de supermercados, prevendo a conseqüência e os efeitos de mobilização e horror social (horrorizando a direita proprietária por exemplo) advindos da distribuição direta dos produtos alimentícios e similares.
A variável não presente e evitada pelo governo de Chávez é justamente o protagonismo popular nas próprias ações que rendem ao mandatário uma boa dose de sua popularidade. Daí a condenação aberta a ações da UPV/PPT, no ataque direto ao canal golpista. Se a ação protagonista fosse comum e corrente, o Estado tentaria antecipar-se aos movimentos das parcelas do povo organizado, e conseqüentemente, faria o possível para canalizar tal avanço para dentro das regras pouco formais que regem a cultura política daquele país. Assim, a tarefa de Chávez – auto-imbuída por ele – é evitar a ação popular para além dos limites de intervenção do Estado e ao mesmo tempo garantir a peleia direta – pela força da lei e de sua maioria política, militar e jurídica absoluta - contra o inimigo de classe.
Nesse sentido é importante ressaltar que a cancha está aberta, embora muito centralizada na figura do líder carismático e a capacidade de agir do próprio Estado. É um equívoco teórico naturalizar como única forma de democracia a concorrência entra partidos oligárquicos associados aos oligopólios formados pelos cartéis da mídia privada, dos grandes supermercados (que impõem uma política de preços) e do sistema bancário. Ao mesmo tempo, o reboquismo quase sempre leva à derrota política no médio ou longo prazo, vide o caso da Argentina na década de ’70 e a terrível herança política no conurbano bonaerense até os dias de hoje.
Eis a encruzilhada. Dificilmente a direita retoma o poder na Venezuela através do voto. E, mais dificilmente ainda o povo de lá aceitará um golpe de Estado de forma passiva. Na resistência a esse golpe, tal e como 2002, pode abrir uma janela de oportunidade para amadurecer a crítica por esquerda da chamada direita endógena (ou direita vermelha, as cores do PSUV, partido criado por Chávez) e formalizar modelos de gestão direta, alguns com formalização teórica já bastante avançada, como na gestão de recursos coletivos através de Mesas Técnicas (para água, luz, saneamento, calçamento, etc.). Como a política é um jogo de arenas simultâneas, estes conflitos internos ao movimento bolivariano vão se dar simultaneamente aos confrontos com a direita em geral, sendo que no momento a vez é do combate com a mídia privada e com as grandes plataformas de distribuição de gêneros de primeira necessidade.
Este artigo foi originalmente publicado no portal do Instituto Humanitas Unisinos (IHU)
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