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O xadrez político-militar na América do Sul


A chegada ao poder de Chávez, Correa e Morales caracterizou uma ruptura no pacto liberal-democrático do Continente. Esta desestabilização da democracia delegativa obrigou a Colômbia a agir, internacionalizando sua guerra civil antes que Venezuela e Equador se transformassem em santuário definitivo para a força beligerante FARC.

4ª, 5 de março de 2008, Vila Setembrina dos Farrapos, Continente de São Sepé

A possibilidade de guerra na América do Sul é real. Caso ocorra o conflito, será uma aliança de dois Estados nacionais contra outro. Embora o clima beligerante e as provocações mútuas já durem alguns meses, a ação iniciadora foi da Colômbia. Ou seja, o Estado agressor, perante a noção de soberania, foi o do presidente Álvaro Uribe Vélez. Suas tropas invadiram território equatoriano para eliminar a um acampamento da dissidência armada. Não há argumento no mundo que justifique isso.

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Esta possível guerra detona com a idéia da democracia delegativa como única saída institucional viável. Bastou com que três países (Venezuela, Equador e Bolívia) elegessem governos dissidentes da ordem internacional constituída para que toda a pregação de estabilidade neoliberal escorresse pelo ralo. Pelos critérios ortodoxos, nenhum dos governos em pé de guerra está ilegítimo. Uribe, Chávez e Correa foram eleitos. Detalhe, segundo observadores internacionais, todos os pleitos se deram de forma limpa. A “coincidência” não acaba aí. Os dois primeiros também conseguiram a reeleição, e ambos por reforma constitucional. Chávez e Uribe peleiam na interna de seu país por um terceiro mandato. Se democracia se limita a câmbio de governo de turno a cada quatro, cinco ou seis anos, segundo as regras do jogo, tanto Colômbia como Venezuela são “exemplos” democráticos.

O que vemos é a mudança de etapa de um processo conflitivo. O ataque das forças conjuntas do Exército e da Polícia Nacional da Colômbia contra um acampamento das FARC em território equatoriano é o estopim de uma tensão iniciada no contragolpe venezuelano de abril de 2002. É necessária uma leitura acurada e livre de preconceitos para podermos compreender o que de fato está acontecendo.

O problema de analisar uma conjuntura debaixo de comoção é perder a capacidade de raciocinar. No plano argumentativo, entendo que o folclore e o falso moralismo vêm ganhando espaço. O argumento de que Chávez está interferindo na soberania colombiana é correto. A afirmativa de que as FARC são financiadas pelo narcotráfico é parcialmente certo. O governo chavista interfere na política interna da Colômbia, assim como os Estados Unidos geram a segunda maior fonte de renda daquele Estado. Toda a economia da terra de García Márquez é permeada pelo narcotráfico e pela ajuda militar estadunidense. Não foi por acaso que Bush Jr. telefonou a Uribe e lhe confirmou o apoio necessário. Condoleezza Rice tomou medida parecida e, junto com José Maria Aznar, reconheceu o governo golpista da Venezuela em 2002. Dias depois, Hugo Chávez voltara ao poder.

A legitimidade política de um governo se dá de acordo com sua eleição e manutenção no poder. A relação com os países vizinhos também. Álvaro Uribe Vélez foi eleito e reeleito; agora vai rufando os tambores da eliminação da oposição armada para assim garantir o terceiro mandato. O que Uribe promoveu é algo irrealizável sem o apoio total dos Estados Unidos. Não se trata de uma simples ação de policiamento de fronteira, mas de atentado contra a soberania de um país. Mesmo nos períodos das ditaduras militares do Cone Sul, os regimes de força se coordenavam, trocando prisioneiros e operando com a complacência mútua. Em algumas conjunturas, como no governo Carter, as ditaduras agiram em contra da determinação dos EUA. Agora se trata do oposto.

No caso da Colômbia, existe tudo menos autodeterminação de um Estado nacional. O país produtor do café mais apreciado no mundo opera como satélite dos EUA, aliado incondicional. Cumpre o sonho de Menem, que tanto buscou as relações carnais com a superpotência e nada conseguiu. Tivesse a Argentina dos anos ’90 uma guerra civil visceral e com certeza teria apoio financeiro jorrando. No caso colombiano, não interessa para o governo Uribe e menos ainda para o que resta da administração Bush abrir uma terceira frente de guerra no mundo. Isto porque, se e caso Equador e Venezuela declararem guerra em contra da Colômbia, os EUA serão obrigados a se posicionar. Talvez não enviem tropas, até porque isso seria um tiro no pé. Mas, o dobro do aporte financeiro e um reforço no envio de material bélico, são certos. Quanto ao número real de “consultores” militares, sinceramente, seria uma leviandade afirmar que cresceria. Já são muitos, agindo junto às forças estatais assim como na proteção das instalações petrolíferas.

Uma guerra na América do Sul obrigaria os Estados Unidos a jogar em quatro tabuleiros simultâneos. A superpotência teria a obrigação de assegurar a vitória militar de Uribe, e de redobrar esforços para derrubar os governos eleitos do Equador, Venezuela e Bolívia. O território colombiano, além das batalhas convencionais em uma ou duas fronteiras, sofreria o acirramento da guerra civil interna, levando ao limite as capacidades militares de todas as forças beligerantes. Tanto as FARC como a outra guerrilha de esquerda – o Exército de Libertação Nacional (ELN) – como também da aliança paramilitar de extrema direita – Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), aliadas de Uribe – se veriam obrigadas a sair do impasse e apostar em vitória político-militar para um dos lados. O pior é o pano de fundo. Com exceção do ELN, todos estes atores políticos, governo colombiano incluído, dependem direta ou indiretamente do plantio e refino de coca, assim como das culturas em larga escala de palma africana. Com a guerra em duas frentes, interna e externa, esta exploração econômica vai triplicar sua intensidade.

É provável que a beligerância fique apenas nas manobras militares, passando a ação para os ambientes diplomáticos. Com ou sem guerra declarada, este conflito ultrapassa a uma disputa entre países e se desenrola sobre um cenário complexo. A única solução rápida seria a queda de um dos chefes de Estado. E isso não vai acontecer tão cedo.

Este artigo foi originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat






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