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O que está em disputa é o conceito de democracia. Entrevista especial com Bruno Lima Rocha


Vejo que é possível fazer uma profunda crítica por esquerda e fortalecer as lutas populares de resistência diante da retirada de direitos coletivos.

01 de abril de 2016, Bruno Lima Rocha

“O fantasma que protagoniza as ideias de fundo é a agenda da embaixada dos EUA, mais especificamente o acionar oficioso das trocas de regime, e, no caso latino-americano, na esteira da reação aos governos de centro-esquerda”, afirma o cientista político.

Em meio à crise que vem se arrastando, “se há alguma novidade” no cenário político brasileiro, “é a chegada de uma espécie de um Tea Party nacional, como expressão dos ultraliberais, através do Partido Novo e também do Partido Social Liberal (PSL, este bem pequeno)”, diz Bruno Lima Rocha à IHU On-Line, fazendo referência ao movimento norte-americano.

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Segundo ele, a nova direita segue “ideias de tipo neoliberal, ultraliberal, neoconservadoras, passando como uma linha direta dos think tanks, dos centros de difusão, das fundações de apoio ao Tea Party”, e é “sucessora direta dos grupos neoliberais do Brasil, como o Estudantes pela Liberdade, o Instituto Mises Brasil, a juventude neoliberal vinculada ao Fórum da Liberdade e outras iniciativas difusoras do pensamento econômico neoclássico e da política neoliberal”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Rocha adverte que o que “está em disputa” na crise “é o conceito de democracia”, não no mesmo sentido em que esteve nos anos 30, com “elogio ao autoritarismo”, porque “a esquerda de tradição mais autoritária não se afirma como defensora de ditadura de espécie alguma, embora sempre elogie governos mais duros desde que este projete a melhoria nas condições materiais de vida”. A ameaça à democracia, explica, é “de tipo liberal” e “está justamente na desconfiança na quebra das regras do jogo, com o apelo de impeachment através de um tema discutível e que entendo como não caracterizado como crime de responsabilidade, sendo mais um argumento de tipo ideológico e de defesa de um arranjo na política econômica”.

Bruno Lima Rocha tem doutorado e mestrado em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e graduação em Jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Atua como docente de Ciência Política e Relações Internacionais e também como analista de conjuntura nacional e internacional. É editor do portal Estratégia & Análise, onde concentra o conjunto de sua produção midiática, analítica e acadêmica.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como interpretar o que vem ocorrendo hoje no Brasil?

Bruno Lima Rocha - Esta pergunta pode condensar todas as respostas consecutivas. Mas, tentando resumir, vejo que estamos diante de uma crise do pacto de classes representado pelo lulismo; uma crise econômica onde a capacidade de governo perde para o apetite voraz do mercado financeiro e o espólio da dívida pública brasileira; uma crise na ex-esquerda, pois o PT se vê apenas com um aliado estratégico (o PC do B), e não consegue recrutar a maioria despolitizada que fora atingida pelos programas sociais e acertadas políticas redistributivas; uma crise na direita política brasileira diante da pressão alucinada de ultraliberais e neoconservadores alimentados pelos fundos dos EUA; e por fim, uma crise no modelo de acumulação capitalista brasileiro, onde o novo entrante, o PT, no reparto do botim do orçamento da União, viu-se em posição inferior diante dos oligarcas anteriores e os cartéis das empreiteiras (mas poderíamos abordar qualquer outra área-chave da economia brasileira) e terminou sendo alvo de sua própria derrota ideológica ao mimetizar com a direita empresarial perspectivas de país e com a direita política modelos de se locupletar a partir do aparelho de Estado.

IHU On-Line - O que está em jogo nesse cenário político brasileiro para além do impeachment ou da permanência da presidente Dilma?

Bruno Lima Rocha - As direitas brasileiras, dentro e fora do governo, estão diante do impasse de atender as demandas sociais ou ajustar-se na crise que vem de fora e de dentro e cortar o tamanho da intervenção do Estado como garantidor dos direitos sociais adquiridos. Lula tem uma agenda, Agenda Brasil, Temer tem a sua, a Fiesp e o empresariado tem a sua, os grupos de mídia semiarticulados no Instituto Millenium têm a sua e todas convergem para o avanço no retrocesso de direitos adquiridos, como no PL 4330, PLS 131, PEC 215, Nova Lei das Estatais (com abertura de capital em 20% para empresas que movimentem mais de R$ 90 milhões ano), na “reforma” da Previdência, na abertura de mercados estratégicos para empresas transnacionais, e a lista segue e é enorme.

Esta agenda é mais negociada com Dilma sobrevivendo e talvez Lula à frente da composição ministerial, mas estrategicamente esta agenda é o botim da vitória sobre uma ex-esquerda que já não é mais necessária e para as direitas brasileiras que definitivamente não querem ver um Brasil como potência média no Sistema Internacional no marco do capitalismo do século XXI. Para os movimentos populares e para a esquerda restante — fora do pacto lulista — os dias, meses e anos que seguem são sombrios e de muita, muita luta e capacidade de reinvenção permanente.

IHU On-Line – Quem são os principais personagens e quais os seus papéis no jogo político nacional?

Bruno Lima Rocha - Como acredito que citei-os acima, e abaixo tem uma pergunta sobre a Nova Direita, vou avançar no tema de setores da tecnocracia de Estado, como o Judiciário e os procuradores federais (mas também magistrados e procuradores estaduais), assim como setores importantes de delegados federais que parecem agir com um modus próprio e ultrapassando as raias da responsabilidade funcional como no caso do grampo da conversa da presidente com Lula.

Como indivíduos, vemos o juiz Sérgio Moro, o ex-presidente Lula, a atual presidente Dilma e o mal afamado presidente da Câmara, o deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Como protagonistas pró-impeachment por fora da intermediação indireta, notadamente a Fiesp puxa a ala empresarial, assim como a Globo puxa a pauta e a gravitação dos grupos de mídia.

Note-se a ausência de um protagonismo por direita política, visto que os neoconservadores e ultraliberais não atendem a estes intermediários, embora os veja como uma espécie de “mal necessário”. O fantasma que protagoniza as ideias de fundo é a agenda da embaixada dos EUA, mais especificamente o acionar oficioso das trocas de regime, e, no caso latino-americano, na esteira da reação aos governos de centro-esquerda (no nosso caso, centro ex-esquerda) a exemplo do golpe paraguaio, quando o presidente Fernando Lugo foi derrubado quase sem resistência por parte do Poder Executivo do país guarani.

IHU On-Line – Como compreender o papel que vêm exercendo os movimentos sociais, os sindicatos e as entidades de classes (como tal me refiro a associações como Fiesp, OAB etc.)?

Bruno Lima Rocha - Vamos separar os conceitos. O movimento popular brasileiro tem no MST e movimentos associados a sua hegemonia. Nesta se encontra a Frente Brasil Popular, uma frente político-social que espelha a base do PT e do PC do B. Um pouco mais à esquerda, mas ainda dentro deste guarda-chuva, está à frente Povo sem Medo, liderada pelo MTST de São Paulo e com alguma envergadura nacional. Esta também se encontra no guarda-chuva do governo ainda que com críticas. Já as federações empresariais não são “sociedade civil” no sentido mais estrito, pois estas representam o agente econômico e seus interesses diretos. Neste caso, é visível que a posição da Fiesp, CNI, Fecomércio de vários estados e entidades afins é rasgar a CLT e realizar a retirada de direitos garantidos tanto na Constituição como em legislação anterior.

Uma das razões da queda de Vargas em 1954 foi, além da Petrobras, o aumento de 100% do salário mínimo, assim como a formalização da Justiça do Trabalho. Rasgar esta estrutura de defesa e amparo do trabalhador é fundamental hoje para manter o nível de acumulação e também enfraquecer o poder da mão de obra no Brasil.

Já a posição da OAB é algo controverso e entendo que prejudica a legitimidade da instituição. Não sou nenhum pouco simpático aos colégios de profissionais, tradição esta que vem da Idade Média e é anterior aos sindicatos. A OAB, que junto da CNBB e ABI esteve à frente do processo negociado de abertura política, rasga esta tradição recente e se reposiciona como em 1964, quando esteve a favor do golpe.

IHU On-Line – Que nexos é possível estabelecer entre a Operação Lava Jato e a Operação Mãos Limpas? A quem interessa uma operação Mãos Limpas à brasileira?

Bruno Lima Rocha - A Operação Mãos Limpas foi um ato interessante de tentar quebrar as relações umbilicais entre o sistema político italiano de pós-guerra e o jogo empresarial, além da presença da máfia no sul da península. Já a Lava Jato foi a possibilidade de concretizar a relação promíscua entre o oligopólio da construção pesada e empreiteiras no Brasil (criado com reserva de mercado estabelecida em 1967 pela ditadura) e os diretores da Petrobras.

Por um lado, é interessante e causa simpatia na população ver os cartéis sendo punidos; por outro, trata-se de evidente punição seletiva e andando junto da difusão midiática. O limite desta tensão foi a difusão das gravações da presidente Dilma Rousseff conversando com o ex-presidente Lula, este sim alvo de investigação, mas ainda não réu. A Lava Jato assim materializa a ousadia midiática de um juiz de primeira instância que galvaniza o salvacionismo do Brasil, antes em 2013 e 2012, capitaneado por Joaquim Barbosa. Ambos os sistemas políticos, o italiano e o brasileiro, são endemicamente corruptos e hegemonicamente fisiológicos. Logo, a destruição da legitimidade do sistema político sem a substituição desta ideia de representação profissional pela democracia direta abre ainda mais lugar para a espetacularização da política (como com Silvio Berlusconi e agora Donald Trump) e discursos que criam o mito do corruptor que nada podia fazer diante do poder dos corruptos.

IHU On-Line – O que a Lava Jato põe em xeque em termos constitucionais?

Bruno Lima Rocha - Em termos constitucionais a Lava Jato coloca em xeque a capacidade do Poder Executivo de controlar apropriadamente o aparelho de Estado, em especial a Polícia Federal na operação de grampo da presidente assim como de ministros de Estado. Também gera a profunda — e entendo que correta — desconfiança no processo político, considerando que a Constituição entende um eleitor/a, um voto; e o poder dos conglomerados empresariais, diante da lista da Odebrecht, por exemplo, demonstra como os grandes agentes econômicos têm um poder que supera, e muito, qualquer representação coletiva como luta sindical ou movimentos reivindicativos, além de explicitar a relevância do aparelho de Estado como fator de acumulação de poder e capital no Brasil.

Logo, ao colocar contra a parede o papel do Estado, por tabela, a Lava Jato afirma o Estado punitivo, o Estado meio gendarme, e ajuda a retirar a frágil legitimidade do Estado brasileiro, algo que favorece a agenda da embaixada dos EUA, mesmo que de forma indireta.

IHU On-Line – Em que medida a Lava Jato pode ser interpretada como judicialização da política? Quais os riscos?

Bruno Lima Rocha - Eu perguntaria risco de quê? O Judiciário opera como poder moderador hoje na República, uma vez que a política representativa não o faz ao fiscalizar o Executivo e, ao mesmo tempo, sobrecarrega o STF como guardião da Constituição. O ativismo judiciário é presente e dá o sentido de “fazer Justiça” através do Poder Judiciário, quando na vida concreta a lei é diferente do direito e, por vezes, ambos muito distantes da Justiça. A Lava Jato é o clímax da aliança empresa midiática e a capacidade investigativa do Estado em nível federal e traz a evidência de que o senso comum recebe as mensagens dos emissores com pouco ou nenhum senso crítico.

IHU On-Line – Como analisa as últimas manifestações pró e contra impeachment? Qual vem sendo o papel das ruas nesse processo?

Bruno Lima Rocha - As ruas atuam como arena de massificação, fazendo do espetáculo da política midiatizada um fator de legitimar ou não as medidas de governo ou tomadas de decisão. A direita ter coragem e mostrar-se como direita na rua foi uma novidade na Nova República, sendo algo só visto nos momentos pré-1964 e nos meses anteriores ao AI-5. A presença de gente organizada nas ruas contra o golpe paraguaio traz a visibilidade de que não vai ser tão fácil, ainda que seja muito difícil separar a luta contra o golpe branco da defesa de um governo que entendo como, do ponto de vista militante e de esquerda, algo indefensável.

IHU On-Line – Que leitura é possível fazer das posições da grande mídia nacional? O que se apresenta como alternativo aos grandes veículos de comunicação do Brasil?

Bruno Lima Rocha - A grande mídia nacional atua contra seus interesses de longo prazo ao fortalecer a posição de uma direita mais oligárquica e também ideologicamente ligada ao capital transnacional. A mídia brasileira é um dos setores da economia capitalista brasileira que têm muita expertise, como é o fato da Globo como central de produção audiovisual em escala planetária. Para os interesses imediatos, manipular a opinião pública através da opinião publicada é central para reforçar o poder relativo dos grandes grupos de mídia, que embora sejam conglomerados econômicos, são grandes produtores de sentido e ideologia difusa pró-capitalista.

Em momentos de tensão como este, há uma difusão ideológica direta, tanto na exibição seletiva dos desvios de grupos de poder e elites dirigentes, como em manobras bastante grosseiras, como suspender programação da grade de domingo para exibir o ato central pró-impeachment na Avenida Paulista. O mesmo se dá no jornalismo, onde o contraditório só ocorre quando alguma das fontes se indigna com os enunciados e exige direito de resposta.

Internet: a alternativa midiática ou alinhamento ao lulismo?

A alternativa aos grandes veículos de comunicação está na internet, na outrora chamada blogosfera, mas que também se caracteriza por um grande alinhamento ao lulismo (linha crítica deste) e através de distribuição de verbas federais. Como o Estado em seus três níveis de governo é o maior anunciante do país e como também a esquerda brasileira só associa democracia política com a social-democracia decadente, terminamos por não defender um modelo de jornalismo como sinônimo de democracia de tipo direta ou semidireta. Assim como não é vista como estratégica para montar uma musculatura política a favor das maiorias, a comunicação social não foi tocada pelo lulismo, mesmo quando tinha maioria no Congresso ou popularidade de mais de 80%!

Ao contrário, no momento de maior acumulação de forças, o lulismo optou pelo suposto jogo do ganha-ganha, também na comunicação. As empresas de mídia, oscilando entre críticas severas ou tréguas pontuais, representam o bastião do anti-latino-americanismo, voltando-se ao mundo ocidental como referência, uma espécie de manutenção do criollismo do período da independência. A mídia brasileira não é a única no Continente a agir assim, sendo, sim, o padrão operacional como porta-voz ideológico das posições mais à direita em toda América Latina.

IHU On-Line – O que, em todo esse processo político, tem levado à polarização que radicaliza o debate e revela as faces da intolerância nos mais variados espaços da sociedade? Como interpretar um momento em que o posicionamento político leva o debate até os limites físicos e morais da civilidade?

Bruno Lima Rocha - Primeiro eu entendo que a civilidade não é debater sem confrontar e sim ter a mesma indignação diante de um país com mais de 58 mil mortes violentas por ano e ainda uma sociedade das mais injustas no planeta. O acirramento dos ânimos políticos se dá em função da polarização da política porque temos projetos antagônicos, embora nem a oposição queira nada além de alinhar o país ao capital transnacional e a manutenção de privilégios ainda herança do período da colônia e o fato de que o governo de centro-esquerda hoje é de centro-direita e tem uma política keynesiana tímida e tardia sem romper com o capital financeiro.

Mas, a direita ideológica brasileira é tão pró-EUA que mesmo as políticas sociais e compensatórias — tímidas e por vezes inexistentes no mundo real —, ao implicarem em reconhecimento de setores marginalizados, trazem os brios do conservadorismo nacional. Aqui no Brasil, ninguém é de direita, até esta direita como silenciosa ver-se diante da possibilidade de que o reconhecimento das necessidades da maioria torne-se um imperativo.

Aí temos um conflito. Se a maioria não se organiza — como é o caso brasileiro — ou então é alvo de políticas sociais minimamente redistributivas, então as teses do ultraliberalismo conservador aparecem como “defesa da liberdade”. Vejo que o avanço do impeachment vai levar a uma radicalização ainda mais forte das posições políticas na sociedade brasileira, podendo inclusive superar a falsa identificação do lulismo — que é um pacto de classes de caráter conservador, mas distributivo — com a luta popular e podendo chegar a níveis mais intensos do conflito de ideias associadas à manutenção ou à perda de direitos coletivos.

IHU On-Line – Em que medida a crise política nacional expõe que o atual sistema de representatividade chegou a seu limite?

Bruno Lima Rocha - O Brasil tem mais legendas eleitorais do que ideologias existentes no planeta. Se há alguma novidade é a chegada de uma espécie de um Tea Party nacional, como expressão dos ultraliberais, através do Partido Novo e também do Partido Social Liberal (PSL, este bem pequeno). Por esquerda e com representação no parlamento, hoje tem apenas o PSOL, já que as demais legendas eleitorais não têm peso para conseguir votações expressivas. A centro-esquerda ficou reduzida ao PT e ao PC do B e aí temos uma série de legendas de aluguel ou sem definição própria. Hoje o sistema político tem três grandes partidos, PT, PMDB e PSDB, sendo que o PMDB é essencialmente uma coligação de oligarquias estaduais e sempre é governo.

Parece óbvio que o limite da representação e a crise da representatividade não é algo exclusivo do Brasil, mas sim a ausência de formas de deliberação coletiva, como seria viável através de mecanismos de tipo democracia direta. A esta acumulação de forças chegamos em 2013, mas não houve força da esquerda para aprovar a reforma política com elementos de democracia direta — conforme previsto no anteprojeto original — e ainda em junho de 2013, a ação da mídia e a penetração da direita nos atos de São Paulo e do Rio levaram a um sequestro da pauta manobrando para desviar a atenção nos protestos por direitos coletivos, no caso, do direito à mobilidade urbana. Assim, sim, vejo que o estatuto da democracia indireta está em crise profunda e é necessário avançar nos direitos coletivos através de elementos de democracia direta, mas seria pensamento mágico afirmar que isto pode ocorrer no curto prazo através da composição do Congresso.

IHU On-Line – Vive-se um momento de enfraquecimento da esquerda? Por quê?

Bruno Lima Rocha - Entendo que o lulismo como fenômeno proporcionou uma grande melhoria das condições de vida, mas, ao mesmo tempo, estamos em um período de fragilidade organizativa e um discurso cada vez mais “lavado” por parte tanto do partido de governo (PT) como de seu aliado estratégico (PC do B). Ao formalizar o pacto de classes, imediatamente enfraquece o conceito de luta de classes, luta popular ou qualquer conflito que não possa ser aparentemente processado por dentro do governo, repetindo a falácia do “governo em disputa”.

Ideologicamente a política de reconhecimento — justa e correta, mas pouca e mais simbólica do que efetiva — atiçou o conservadorismo brasileiro, popularizando as ideias mais à direita e de tipo conservadoras. Estas se somaram com a ofensiva do ultraliberalismo, sendo que a internet atinge a pessoas isoladas politicamente, vinculando-as a ideias na forma de signos publicitários, de tipo comunicação efêmera nas redes digitais. Ou seja, ideias conservadoras, mais à direita, sendo difundidas pela rede e massificando as direitas brasileiras.

Automaticamente, estas posições enfraquecem a esquerda. Não há como afirmar, de nenhuma forma, que há apelo popular no conservadorismo brasileiro, basta observar o perfil dos manifestantes pró-impeachment, mesmo quando nos atos massivos como os da Avenida Paulista. Por outro lado, estamos diante de uma enorme lacuna de organização de base, estando os 44 milhões de brasileiras e brasileiros ideologicamente flutuando. Estes que saíram da extrema pobreza ou tiveram alguma mobilidade social através de muito esforço e algumas políticas corretas vindas do governo federal são o alvo de disputa ideológica e representam o enfraquecimento da esquerda, justo por não poder organizá-los. Quando há queda da hegemonia de um setor da “esquerda”, denominando apropriadamente de ex-esquerda, é da ordem da política um período bastante largo até esta se organizar novamente e criar uma nova hegemonia com perfil mais combativo.

IHU On-Line – Quem é e como compreender a chamada “nova direita”? Em que medida as críticas vindas da própria esquerda ao modelo do governo de Dilma Rousseff de ser esquerda insuflam essa nova direita?

Bruno Lima Rocha - A nova direita, entendo-a como a massificação de ideias de tipo neoliberal, ultraliberal, neoconservadoras, passando como uma linha direta dos think tanks, dos centros de difusão, das fundações de apoio ao Tea Party e grupos afins, passando por “movimentos” que se organizam como agências de publicidade mobilizando redes cibernéticas, a começar pelo maior de todos, o chamado MBL. Esta nova direita é sucessora direta dos grupos neoliberais do Brasil, como o Estudantes pela Liberdade, o Instituto Mises Brasil, a juventude neoliberal vinculada ao Fórum da Liberdade e outras iniciativas difusoras do pensamento econômico neoclássico e da política neoliberal.

Outra ala da “nova direita” está no neoconservadorismo nacional, passando pelos neopentecostais e algumas linhas de encontro, como a base política do PSC, com os pastores Marco Feliciano e Everaldo à frente e com base emprestada pela família Bolsonaro. Impressiona ver como temas de fundo da nova direita dialogam com perfeição com o léxico da política dos EUA, com o dicionário da política estadunidense incluindo seus termos e suas bandeiras, como a estúpida campanha contra a ação afirmativa e as fracas e mais simbólicas do que efetivas políticas de reconhecimento e compensatórias.

Já as críticas ao governo Dilma por esquerda, sinceramente não vejo como uma pode fortalecer a outra. Vejo este argumento como o oficialismo, como a versão atual de uma tradição pelega e stalinista, onde a tentativa é sempre uniformizar a esquerda para servir como moeda de negociação com a direita que não está no governo. O pacto de classes necessita a uniformidade e coesão da esquerda através da centro-esquerda para garantir a negociação com os oligarcas e parcelas do capital nacional que ainda não aderiram à terra arrasada com o fim da CLT e outros severos ataques contra os direitos coletivos.

IHU On-Line – Como fazer a crítica ao atual sistema de governo e de representatividade sem ameaçar a democracia, inclusive radicalizando o conceito de representatividade democrática?

Bruno Lima Rocha - Acredito que o que está em disputa é o conceito de democracia; não há, como nos anos 30, algum elogio ao autoritarismo de nenhuma ordem e mesmo a esquerda de tradição mais autoritária não se afirma como defensora de ditadura de espécie alguma, embora sempre elogie governos mais duros desde que este projete a melhoria nas condições materiais de vida. A ameaça à democracia de tipo liberal e indireta está justamente na desconfiança na quebra das regras do jogo, com o apelo de impeachment através de um tema discutível e que entendo como não caracterizado como crime de responsabilidade, sendo mais um argumento de tipo ideológico e de defesa de um arranjo na política econômica e não como um crime tal como uma fraude ou algo semelhante.

Já o tema da democracia direta implica uma disputa na interna da esquerda restante e dos movimentos populares ainda no guarda-chuva do governismo e uma projeção de outro modelo de acumulação de forças sociais para algum tipo de câmbio profundo. Mas, tenho certeza de que se o movimento social não tem democracia interna, não consegue defender esta bandeira da democracia participativa e direta em escala nacional. Portanto, é uma luta de longo prazo e constituição de um paradigma de conflito social reivindicativo e voltado para construir entidades de base e movimentos massivos com plena participação interna e defesa de ampliação de direitos coletivos.

IHU On-Line – Qual a saída para o estado de crise nacional?

Bruno Lima Rocha - A crise que se abriu com o fim do modelo de crescimento a partir do pacto de classes não tem saída fácil nos marcos do capitalismo liberal-periférico onde vivemos e menos ainda uma saída popular para romper com a maldita herança pós-colonial e de dependência. A crise política que se implanta no final do ciclo lulista vai durar bastante, assim como a crise de hegemonia dentro da esquerda. Considero ambas as crises também positivas, pois abrem margens para novas acumulações, embora a tentativa de impeachment na forma de golpe institucional obedece à agenda da embaixada dos EUA. Há uma dimensão de ruptura do pacto político iniciado na Abertura e entendo que vamos ficar um bom tempo com essa polarização política. Espero que tal polarização implique na defesa da manutenção e ampliação dos direitos coletivos e o enfrentamento ao período de restauração neoliberal que estamos vivendo.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Bruno Lima Rocha - Sim, quase que um chamado de alerta para entendermos a complexidade do momento e a diferenciação necessária entre posicionar-se contra o golpe (pois impeachment sem crime de responsabilidade é golpe e a meta é rasgar os direitos coletivos, a começar pelos direitos trabalhistas) e não reproduzir o reboquismo que levou à falta de resistência em 1964. Entendo que o pacto de classes do lulismo é um pacto conservador e que ruiu; logo, abrem-se novas possibilidades, mesmo dentro da base dos partidos de centro-esquerda e dos milhões de brasileiros que se recusam tanto a apoiar ou defender um governo indefensável — basta observar, para exemplificar, a política indigenista! — como menos ainda aderir a uma aventura política conservadora do tipo “revolução purpurina”, “troca colorida de regimes” ou a palavras de ordem de tipo pensamento mágico, sem condições de operar na realidade concreta. Vejo que é possível fazer uma profunda crítica por esquerda e fortalecer as lutas populares de resistência diante da retirada de direitos coletivos. O período que se avizinha é muito difícil e para não perdermos nossas condições de vida precisaremos de todas as forças sociais possíveis.

João Vitor Santos e Patricia Fachin






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