Desde que foi iniciado o Plano Nacional de Segurança Pública que as polícias brasileiras vêm sendo alvo de debate. Na maior parte das vezes, a polêmica supera a lógica, e terminamos por entrar em temas indiretos. Ou seja, a pergunta está sendo mal feita, e no meu entender, propositadamente. A sociedade brasileira tem de se perguntar e com urgência, qual o modelo de polícia que se quer manter, implantar ou modificar.
O curioso neste país de Macunaímas é o contraste entre a linha dura e a eficiência. Não há como evitar um problema estrutural, sendo reproduzido em escala crescente. A irracionalidade gera mais violência, aumenta o subemprego dos agentes de polícia, reitera privilégios de cúpula e reforça a sensação de perigo. Seria um descalabro afirmar que a violência urbana é uma fantasia. Ao contrário, esta é real, atira uns contra os outros, em especial povo contra povo. Mas, quanto maior o desespero, menor a capacidade de resposta.
Como todo tema delicado, um painel de preconceitos e percepções construídas sobre a base de falácias e mitos tem de ser combatidas. Para isso, um debate franco exige a exposição das premissas. Afirmo aqui algumas delas: - é necessário um controle social sobre o aparelho repressivo, de modo a garantir a plena independência funcional e nenhuma autonomia em relação aos poderes; - a lei tem de ser aplicada para todos, sem distinção de classe e intensidade (justo o oposto do que hoje ocorre); - o sistema de duas polícias, concorrendo entre si e com atividades quase idênticas tem de ser extinto; - a militarização das polícias, com escolas de formação separadas para praças e oficiais é um absurdo; - o mesmo vale para o modelo de investigador/agente/ escrivão subordinados aos delegados.
Considerando o volume e a dimensão do problema, a lógica nos leva a crer que a única solução para a crise sistêmica é uma saída coletiva e nacional. Na crise do ano de 2006, motivada pela rebelião do PCC em São Paulo, as vozes dos especialistas mais lúcidos clamaram por um mini-Constituinte revisora e exclusiva para o tema da segurança pública. Conforme esperado, nada foi feito a não ser peças publicitárias para a campanha eleitoral. O significado deste descaso é simples. As autoridades e a pressão da mídia clamam por uma solução inviável. Isto é, desejam para ontem um remodelamento que necessita de no mínimo cinco anos para ser aplicado.
Para não ficar apenas batendo, mas também cumprindo o dever acadêmico de ser propositivo, sigo afirmando algumas possíveis saídas óbvias. Seriam estas: os Gabinetes de Gestão Integrada entre os poderes municipais, estaduais e federal precisam ser efetivados em todo o país, e com dotação orçamentária própria; - o emprego de forças-tarefas, integrando, repressão, inteligência, fiscalização fazendária é a saída viável para poucos recursos e uma pressão crescente da sociedade; - o sistema de turno de 24 hs por 48 hs de folga é a estrutura do subemprego policial e precisa ser extinto; - as firmas de segurança privadas sob controle de coronéis e delegados, ainda que colocando esposas e parentes como administradoras, tem de ser vendidas ou fechadas; - o IPL e as investigações que não forem acompanhadas de provas materiais devidamente periciadas são desnecessárias e prejudiciais; - a carteira funcional que outorga poder de polícia não pode ser usada fora de serviço e esta infração precisa ser exemplarmente punida; - a mudança de modelo, tendo a academia e cargo inicial único precisa ser implantado imediatamente, começando pela PF e depois reproduzindo-a como modelo para todas as polícias brasileiras, devidamente unificadas e sob regime civil; - e para dar exemplo na sociedade, o fim imediato do privilégio da prisão especial para portadores de diploma de curso superior e o foro especial para autoridades e parlamentares.
Estes são apenas alguns exemplos, fruto do debate lógico e tendo como referência os modelos de polícias que funcionam. Infelizmente, as mudanças propostas são o oposto do serviço que o Estado brasileiro oferece. No país dos escândalos, a violência das redes de quadrilhas escandaliza mais do que as organizações criminosas vestindo elegantes ternos e gravatas de sedas. Para que a sociedade volte a crer em suas instituições de coerção e na Justiça, são necessários alguns golpes de força, encarcerando aqueles que roubam dos cofres públicos.
Caso contrário, o próprio debate da redução da maioridade penal corre o risco de ser apenas mais um discurso desesperado. O Brasil que não pune a mensaleiros e sanguessugas, não pode e nem deve ser ainda mais rigoroso com os delitos cometidos pelas classes mais baixas. Enquanto o 190 não for para todos, de nada servirão medidas salvacionistas.
Artigo originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat