A luta contra o entreguismo vende-pátria por vezes toma contornos de classe e noutros extrapola, assumindo-se como luta cívica. Não precisamos ir para os países hermanos e verificar ao vivo estas modalidades de luta. Sim, dessa vez falo daqui, da Região Metropolitana de Porto Alegre e especificamente da cidade bicentenária de Viamão. Os leitores de fora do Rio Grande podem abstrair e compreender, como exemplo, uma demanda que unifica o município em defesa de sua viabilidade econômica. Do outro lado, uma medida judicial tomada por um desembargador do Tribunal de Justiça do RS, o Comando do Policiamento Rodoviário da Brigada Militar e a empresa ocupante da via pública, a concessionária chamada Univias.
Vale retornar às origens do problema para compreendermos o processo. Corria o ano de 1998, o último do ex-governador Antônio Britto, então no PMDB. Parte da política de privatização promovido pelo ex-ministro da Previdência de Itamar passava pela concessão de rodovias estaduais ou então, de rodovias federais cedidas ao governo do estado. Este foi o caso da RS 040, uma via que nasce na divisa de Porto Alegre com Viamão e termina na cidade balneária de Pinhal, servindo de acesso às praias de mais baixo poder aquisitivo do litoral norte. Antes de conceder a estrada, hoje batizada de Tapir Rocha, como de praxe a faixa asfáltica foi recapeada e o trecho reformado. Depois de empregar dinheiro público através de recursos do Banrisul, também como de costume a via foi entregue a uma concessionária, esta chamada Univias.
Seria mais um caso corriqueiro de entrega de patrimônio público para gestão privada através de recursos do Estado. O problema desta rodovia é que ela atravessa todo o município de Viamão. O local onde foi posta a cancela de pedágio é justamente na metade do território viamonense, na prática separando a área rural do perímetro urbano e impossibilitando o desenvolvimento da região. Isto porque, ao contrário do que manda a lei, não há via de acesso alternativa.
Assim, o conjunto de moradores hoje são onerados em R$ 5,10 a cada vez que passam de um lado e do outro. Se um agricultor familiar ou morador e chacreiro da região vai ao centro da cidade resolver pendências bancárias, vender produtos primários ou simplesmente ir conversar com o gerente do banco, seu custo diário é de R$ 10,20. Considerando que o desemprego no município ultrapassa os 25% e a receita de ISSQN gerada com o pedágio não cobre nenhum gasto da prefeitura, fica a pergunta:
- “ De que serve para os viamonenses a praça de pedágio?”
Quando da colocação das cancelas, a prefeitura tentou embargar a obra, recorreu na Justiça e desde então vêm se dando uma disputa de tribunais e inter-poderes. Isto porque, também como de costume, a população do município não foi consultada e tampouco realizaram um estudo de viabilidade econômica e vocacional da zona. O Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem (DAER), órgão do governo do Rio Grande responsável pelas rodovias, realiza sim um outro tipo de estudo. Declarado pelo presidente da concessionária Univias, Marcos Picarelli, em entrevista semana passada para uma rede estadual de rádio, o DAER estuda a viabilidade econômica do pedágio garantir a margem de lucro que consta em contrato. Conceitualmente, isto é uma apropriação do órgão público funcionando a serviço dos interesses privados diretos. Ou seja, o estado do Rio Grande defende o lucro da concessionária e não a economia metropolitana. Detalhe, entra governo, muda partido, sai legenda e a situação não muda.
Como a própria Univias declara, o pedágio só dá lucro no local onde está, no meio de município. E portanto, não aceita as demandas da população local, de transferir a praça de cobrança para a divisa com Capivari do Sul ou isentar os veículos emplacados em Viamão. A atividade fim de uma empresa é o lucro. E a do poder público, qual será? Gerar o bem estar da maioria dos cidadãos ou servir de garantia dos lucros privados, subordinando a máquina estatal ao interesse dos grandes grupos econômicos?
A resposta a este tipo de pergunta vem sendo dada desde a entrada do ano. No segundo semestre de 2005 a Justiça havia assegurado isenção de pedágio aos 50.000 veículos emplacados em Viamão. Uma liminar concedida à concessionária na virada do ano de 2005 para 2006, trás um novo quadro, obrigando o pagamento a todos, moradores ou não. Desde então seguidos protestos vem sendo realizados na própria rodovia, junto à praça de pedágio.
Há três semanas o desembargador Irineu Mariani, do TJ gaúcho, decretou a proibição de manifestação na RS 040, liberando a Brigada Militar a reprimir. O último episódio desta luta pública se deu no domingo 19 de fevereiro. O protesto fora marcado no final da tarde, justo para atingir o movimento da rodovia na volta das praias. Cerca de cem homens do Batalhão de Operações Especiais (BOE) e do Batalhão Rodoviário atacaram com bombas de gás e tiros de borracha a duzentos manifestantes. O resultado foram oito manifestantes e quatro policiais feridos, além de uma profunda revolta no município.
No próximo fim de semana, com o feriado de carnaval, toda uma cidade, histórica e de profundas raízes gaúchas, atingirá seu ápice de tensão. Resta saber se o tenente-coronel Heitor Sá de Carvalho Júnior, comandante da repressão no último domingo, ordenará novamente o ataque à população viamonense. Além do aspecto repressivo, é preciso saber o que está em jogo e a relevância da demanda do protesto.
Entendo ser preciso ir além dos fatos e aspectos cinematográficos de uma ação como esta. Não se trata das páginas policiais, mas sim de política e economia. O que está em jogo é toda a viabilidade de um município dependente de uma estrada de rodagem privatizada. Até por isso esta luta extrapola divisões internas de “típica politicagem local” e ganha contornos de luta cívica. O Rio Grande já realizou outras lutas por direitos postando-se em desobediência ao governo central e seus aliados na província. É do conjunto de fatos pontuais como estes que vai sendo forjada uma nova teoria e forma de fazer política.
Qualquer semelhança da luta em Viamão com os embates históricos do povo gaúcho, assim como da peleia pelo controle público da água e do gás boliviano, não é nenhuma coincidência.
Artigo originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat