O último dos escândalos foi “admitir informalmente” que o Estado, representado pelo governo paulista, negociara com “condenados, marginais, ladrões, traficantes e assassinos”. Sem adjetivos desnecessários, o que houve foi algo típico das regras da guerra, mesmo que informal. A negociação com a cúpula do Partido do Crime não ocorreu quando o avião do estado de São Paulo foi a Presidente Bernardes levando os encarregados de prosear com Marcola. A negociação e o temor dos efeitos da transferência estavam claros na reunião da 6ª feira; a mesma das pizzas e do xis-picanha com fritas. Sentados no interior do DEIC, outrora comandado por Sérgio Paranhos Fleury, o Dr. Godofredo negociou com os “oito cobras do Partido”. Como dois agentes inimigos que se respeitam enquanto adversários, o aparelho repressivo deu provas de sua incapacidade preventiva e discutiu com os apenados. Na impossibilidade do acordo, outra linguagem foi empregada.
A lição de São Paulo soma Sun Tzu com Clausewitz. A antecipação por meio de informações privilegiadas foi o sábio aprendizado, adquirido nas duras condições das “faculdades” do sistema correcional paulista. A operação de contra-inteligência foi executada por intermédio de dois advogados, “coincidentemente” presentes no Congresso Nacional, no mesmo momento, que dois altos mandos da hierarquia da inteligência policial iriam depor. Estes representantes dos interesses de seus clientes conseguiram o bem mais valioso nos dias de hoje: informação privilegiada, a inside information, sempre geradora de dores de cabeça para os auditores da CVM e do CADE. agora estava à serviço de “outro mercado”.
Sim, a espionagem amadora do Partido do Crime saiu vitoriosa e se antecipou uma jogada perante a cúpula da segurança pública do mais rico estado do país. Estivessem os dois advogados sob vigilância e nada disso teria acontecido. Se não estavam, então cabem as autoridades técnicas na área explicarem o porque. E se estavam, como nada foi feito para impedir a transação de R$ 200,00, cujo custo adicional já ultrapassa 150 vidas?
A verdade é a seguinte. Ninguém quer mexer na babel policial brasileira. Golbery do Couto e Silva e Orlando Geisel estiveram à frente da complexa tarefa de unificar o sistema de informações, subordinar os poderes policiais dos estados e centralizar os órgãos. Assim, diminuíram a concorrência entre agências e operaram fino quando precisaram. O Sistema SNI (SISNI) e o Sistema Doi-Codi tinham complemento mútuo e funcionaram. Mas, vivia-se a guerra fria, havia dinheiro de sobra e bons instrutores de campo, como o famigerado Dan Mitrione. Em tempos de democracia, poucos ousaram pôr a mão nesta área com intuitos reformadores. Os que o fizeram, foram sumariamente fritados, como é o caso de Luiz Eduardo Soares.
A academia brasileira pouco a pouco foi se aproximando dos aparelhos repressivos. Tenta “humanizá-los”, oferece cursos e reciclagem. Mesmo quando tentam acertar, erram o alvo. Não é só problema de formação. A crise tem dois sentidos. O primeiro é de razão de classe. A polícia, ou melhor, as polícias daqui não operam com isonomia. Traduzindo. Pau que dá em Chico não pega em Dr. Francisco. Nunca. Trabalha-se com defesa patrimonial e manutenção da ordem pública. Dentro dos códigos toleráveis e desiguais, está a aceitação de fato do descontrole territorial sobre algumas áreas do espaço urbano. No caso do Rio de Janeiro, é visto como mal menor. O Comando Vermelho, Terceiro Comando e ADA matam-se mutuamente, pingando os “arregos” semanais ou mensais, e sempre deixando o morro no lugar. O problema é quando há “disputa por fatias do varejo desse mercado informal”; e problema maior ainda, é quando estas guerras ocorrem na badalada Zona Sul carioca.
O problema é o fato da polícia não defender o cidadão de bem residente em área de favela. Acreditem, embora a literatura recente nos oferece boas obras a respeito, o que escrevo foi visto com os próprios olhos quando residia no Rio.
O segundo problema da crise estrutural é a própria estrutura caótica. No governo Lula, houve uma chance cabal de transformar a situação. Tudo começaria pela elite das polícias, a PF, dotada de exigência de nível superior para ingresso, concurso disputadíssimo e bons níveis de trabalho. A demanda era simples. Concurso e academia única para todos, admissão de novos membros, segundo critérios de necessidades da própria polícia. Fim do cargo de delegado como se entende hoje. Este seria um cargo da progressão de carreira, e sem o pré-requisito de serem bacharéis de direito. O mesmo se daria na forma de trabalhar. O conhecido IPL deixaria de existir, sendo substituído por aquilo que a Justiça exige. A prova material fruto, da perícia e não da argüição mediante pessoas intimadas a dar depoimento. Como a mudança estatutária não houve, somada a luta por melhores salários, veio a greve de agentes, peritos, papiloscopistas e demais servidores não-delegados. Derrotada a greve, joga-se fora a água e a criança. O governo de Luiz Inácio não implementa nada do Plano Nacional de Segurança Pública, apenas mantêm a Força Nacional e contingencia a maior parte das verbas. O resultado é visível.
Se e caso ocorresse a reforma na PF, estaria aberto o precedente para começar a operar sobre as Polícias Civis dos estados. E, possivelmente, teríamos a chance de acabar com a esquizofrenia de termos duas polícias concorrentes e que não se completam. Já a militarização da polícia e seu modelo de oficialato, como é o caso das PMs, é típico de força de segurança auxiliar, tropa de defesa interna e não polícia ostensiva. Já a polícia judiciária, que deveria ter como atividade-fim a investigação e a captura, tem mais viaturas caracterizadas do que discretas. Muitas vezes, sai em operações públicas, portando-se como tropa; o que deveria, em tese, ser o papel da PM. Já a inteligência da Polícia Militar, termina por investigar mais do que os investigadores da Civil. Some-se a babel o crescimento das Guardas Municipais, muitas delas atuando de forma ostensiva e concorrendo com o papel da polícia militarizada.
Tudo isto é apenas a ponta do iceberg. Teríamos mais a abordar, incluindo absurdos como a existência de foro especial para servidores militares. Além dos custos da Justiça Militar, com seus ministros e desembargadores, sendo que em tese bastava a Corregedoria, também está presente a idéia de privilégio. Porque os policiais militares tem direito a uma justiça exclusiva? Quem paga esta conta?
Conta esta por sinal, que já se transforma em dívida para a sociedade. Não vendo no aparelho policial um elemento de segurança, a classe média e alta tira do bolso para aumentar um pouco mais sua sensação de segurança. Ocupando estes postos de trabalho, temos presentes muitos policiais. Sim, porque aos baixos salários são somados os ganhos dos outros empregos. Isto é reconhecido no próprio esquema de plantão de 24 por 48 horas. Muitas vezes, seus patrões são os superiores hierárquicos, em geral oficiais PMs ou delegados de polícia. Houvesse a dedicação exclusiva, turno único com rodízio de plantões (como fazem os médicos), uma só polícia desmilitarizada com salários adequados e não haveria nenhum destes problemas.
Poderíamos ficar listando a balbúrdia no interior do braço repressivo do Estado por centenas de páginas. Aliás, conforme já foi dito, obras a este respeito não faltam. Mas, a necessidade aqui é de debate conceitual. A “segurança pública” é um tema que dispensa alarmismo e histeria. Se houver um motivo para ficarmos todos histéricos, acreditem, não é a rebelião do PCC, mas a falta de planejamento estratégico, racionalidade, integração sistêmica e otimização dos recursos policiais brasileiros.
Já não cabem histerias reacionárias nem saídas mágicas, e sim soluções integradas. Quanto mais lento for este processo, pior será o dano.
Artigo originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat