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Cota de ministras e políticas de gênero

samuelcelestino

A luta de gênero que ganha formato no início da industrialização monopolista no século XIX não se vê refletida na chegada ao Poder Executivo de uma ex-guerrilheira que ganhou como política, mas não levou como mulher em luta. Para chegar ao poder, teve de abrir mão de bandeiras históricas das próprias mulheres.

11 de novembro de 2010, da Vila Setembrina do Continente de Anita, Juana Azurduy y Valientes, Bruno Lima Rocha

A presidente eleita Dilma Rousseff vem reforçando um discurso de composição ministerial a partir do recrutamento de uma cota de mulheres, vindas da composição de partidos do bloco de governo. Embora não se trate de novidade, é uma progressão do modelo já aplicado. A política de cotas, indicando que as legendas tenham ao menos 30% de suas listas compostas por candidatas do gênero feminino já é corrente e aceita. Embora ainda de difícil cumprimento, em virtude das dificuldades em recrutar o percentual necessário, em geral essa posição cai bem. Isto estimula as mulheres para a vida pública e implica uma oxigenação da vitrine do poder.

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É óbvio que o fato de ser mulher por si só não assegura o bom proceder no exercício da função. O senso comum diria que, além do gênero, a pessoa deve ter competência e capacidade de gestão. Como já afirmei em outras ocasiões nesse blog, tal noção traz implícita a idéia do tecnicismo como substituto da política. Neste caso, o raciocínio simplista diria que, “sendo uma boa técnica, não importa o gênero da ocupante do primeiro escalão”. São duas balelas que, infinitamente repetidas, transformam-se em factóides de fácil digestão. Tanto é balela a noção de bastar ser mulher e correligionária para ocupar uma função executiva, como é ainda mais absurda a segunda idéia, a tecnicista. Mais uma vez repete-se o problema do pressuposto falso e da premissa neoliberal oculta. A administração privada não é administração pública e governar não é gerenciar. Todo ato de governo é político e isto subordina a tudo, incluindo os limites do possível (ou desejável segundo as alianças) e as margens de manobra dos operadores, sejam homens e mulheres.

A aplicação das cotas ministeriais, para além de seu sucesso ou não, acarreta um ganho de poder simbólico para as brasileiras. É inegável o reconhecimento da mulher para além de funções social e culturalmente definidas na correlação de forças de um mundo construído sob o gênero masculino. Tal fato se acentua considerando estarmos no Brasil, país criado sob o signo da escravidão e cujos símbolos públicos (como bustos, estátuas e nomes de rua), cultuam próceres e patriarcas, quase sempre de duvidosa trajetória. É muito bom quebrar paradigmas machistas de um país que foi governado, ao longo de quase dois séculos, por imperadores, generais, doutores e bacharéis. O conflito que apresento aqui é outro.

O tristemente curioso é ver esta proposta vir à tona em um momento em que os partidos da coligação capitaneada pela centro-esquerda se vêem no embate (pouco republicano, como sempre) pelas parcelas de poder (espólio do Estado pelo conceito clássico) no primeiro escalão da república. Conforme já tive a oportunidade de afirmar em outras ocasiões, é uma pena que a discussão de mulheres nas pastas ministeriais não venha acompanhada do debate das bandeiras históricas das lutas de gênero, como os direitos reprodutivos e a conseqüente legalização do aborto; uma política nacional de creches e educação da primeira infância, beneficiando a maior parte da população economicamente ativa (composta em sua maioria por mulheres); a necessária escola de turno integral, com a implantação das atividades para-didáticas, culturais e desportivas no contra turno escolar; e, dentre as medidas mais polêmicas, a necessária regulação das campanhas publicitárias, peças que insistem em caracterizar o corpo da mulher na forma mercadoria, auxiliando a “coisificação” da espécie humana.

Nada do que narrei acima trata de novidade, longe disso. Reconheço também não haver citado nem a metade de um programa histórico e construído a partir de debates, agendas de ativismo, produções acadêmicas e lutas de mulheres presentes no Brasil há mais de trinta anos. Triste é constatar que estas bandeiras estão passando bem longe do debate das ministeriáveis.

Este artigo foi originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat






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