Ainda na crise, lembremos que a primeira vitória foi conseguir descaracterizar algo engendrado na máquina do governo como simplesmente episódico. Não o foi, em nenhum momento. Indo ao limite da responsabilidade, podemos afirmar que toda a estrutura central do partido foi preparada por seus operadores de modo que proporcionasse condições de governabilidade para Lula. Considerando o padrão de comportamento dos políticos profissionais, de seus negócios de governo e dos investidores dos consórcios político-eleitorais, não é nenhum exagero dizer que executaram um comportamento “tolerável”.
Este grau de tolerância está na raiz da hipótese que levantamos aqui. Não é preciso ser especialista dos bastidores de Congresso e ministérios para saber que o jogo é pesado. Nenhum governo é coisa para amadores, e isto é uma premissa válida para todo e qualquer regime político. Não estamos com isso dizendo que a corrupção é algo inevitável, portanto, cinicamente deve ser tolerada. Muito pelo contrário. Digo que a forma de proceder vai ao encontro de uma normatividade real, aceita como instituição de regras informais, não escritas, mas de fato exercidas.
A “tolerância” começa na própria narrativa discursiva. É refletida nos eufemismos de linguagem, a mesma que retira direitos históricos, adjetivando de “flexibilização”. A carga de linguagem trás consigo o contrabando ideológico. Trata de restauração como reforma, e de reforma como revolução pacífica. Ou seja, desmagnetiza as palavras para amortecer seus efeitos na escala de consciência do cidadão comum e desorganizado.
A sabedoria popular já identificara o hiato de representação e a crise do modelo de partido político como estrutura intermediária entre representantes e representados. Vejamos. O grau de confiabilidade nos políticos profissionais é da ordem de 8%. Já em suas legendas, os partidos legais que tomam parte no jogo eleitoral, a confiabilidade é de 10%. A maior parte dos brasileiros já tem como idéia pré-concebida que a carreira política é algo duvidoso. Portanto, quando o quesito confiabilidade cai, a questão que entra em jogo é o interesse material direto e a identificação com este ou aquele candidato.
Consideramos que o discurso conservador marcou o tom da campanha de ambos os candidatos. Isto porque a idéia de mudança veio acompanhada da garantia de “responsabilidade”. Assim, mantivemos a certeza da linha de continuidade na cultura política histórica. A mesma que levou a uma abertura “lenta, gradual e restrita”; seguindo na lógica de um presidente da “Nova República” que era pilar de sustentação da ditadura militar; passando por um filho da oligarquia nordestina e nesta linha seguimos.
Em 2002, a linha conservadora migra para a esquerda de passado reformista. Os acordos proporcionados pelos enlaces de Palocci e a Banca geraram a governabilidade ancorada no Copom, no pagamento dos serviços da dívida e no superávit primário. Ou seja, mantendo tudo o que está no seu lugar, tudo mais pode ser mexido. Isto é, desde que assim o faça sempre em doses homeopáticas. Políticas públicas e planejamento estratégico, nem pensar.
No momento que os setores de classes desfavorecidas identificam o mandato do presidente como um paliativo de uma situação estrutural, terminam por escolher pelo mal menor. Entra em campo o voto útil e a identidade afetiva. Por mais que se diga que Geraldo Alckmin tem origem humilde, o mesmo com Heloísa Helena, a carga de estudo formal, o domínio da linguagem e concordâncias, contam mais do que se pode imaginar. Não digo com isso que a identidade popular seja “irracional”. Tal afirmação seria preconceito puro e absurdo. Mas, que os afetos se posicionam além do discurso meramente racional, isto é um fato consumado.
Em uma campanha conservadora, movida por ataques midiáticos, sem nenhum interesse estratégico em jogo e com militância apática, o resultado era esperado. Primeiro, porque a máquina do Estado foi e sempre será usada no jogo da reeleição. Já manifestei antes, penso ser o estatuto da reeleição um absurdo em um país como o nosso. Como há pouco controle e muita tolerância do poder estatal no uso da estrutura gerada com o esforço público, a tendência é o presidente reprisar o mandato. Termina transformando a eleição em um plebiscito de seu governo.
Segundo, porque na essência da proposta de governo, podemos afirmar que o mandato inicial de Lula foi equivalente ao governo de FHC por oito anos. Não entro no aspecto valorativo, até porque tenho discordância com os dois governos. Mas, na essência das decisões, o governo Lula foi ao encontro das margens que o antecessor deixou negociáveis por dentro do jogo. Não quis nem tentou avançar em nada estratégico e tampouco o fará nos próximos quatro anos.
Terceiro, pela forma pragmática pensar da chamada opinião pública das classes média baixa, trabalhadora e dos que estão abaixo da linha de pobreza. A maioria desorganizada escolheu Lula pelas poucas vantagens materiais que este governo lhes proporcionou. Não estou falando apenas de Bolsa Família, mas também o Prouni, o aumento do crédito e a sensação de crescimento do emprego formal. Reitero a afirmação, o que importa na sociedade não é o dado de realidade, mas sim como cada um o recebe e o vive. Assim, não se pode falar em uma realidade, mas em várias realidades vividas ao mesmo tempo.
Quarto e por fim, sedimentando a todos estes aspectos, está a questão da identidade. Recordo que na campanha de 2002, o vice-presidente reeleito e então candidato José Alencar, disse que Lula expressava a materialização do “sonho americano”. Por mais estapafúrdio que pareça, se fosse ineficiente como produto de comunicação de massa, tampouco haveria a indústria de cantores bregas e afins.
Infelizmente para a trajetória histórica dos povos brasileiros, a identidade de um líder nascido da migração rural transforma-se em alternativa conservadora para um receituário já executado. Não me refiro a disputa das candidaturas, mas sim ao conjunto do processo social.
Identidade popular é coisa séria e fundamental para os destinos de um povo. Importante demais para ser desgastada em uma corrida eleitoral pré-definida. Tal como nossos recursos naturais e talentos tecnológicos, outra vez o país joga fora um de seus bens mais preciosos.
Artigo originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat