20 de dezembro de 2014, Bruno Lima Rocha
A reaproximação progressiva entre Estados Unidos e Cuba foi anunciada na tarde de 4ª, 17 de dezembro, com a solenidade devida. Simultaneamente, o presidente dos EUA Barack Obama e o comandante em chefe (com status de general) Raúl Castro, informaram ao mundo e em especial para a América Latina que as relações entre os dois países passarão por uma distensão progressiva. Vários são os eixos de análise possíveis para discutir o caso. Neste breve texto damos ênfase para a dimensão geopolítica, dentro da projeção dos EUA e suas esferas de influência diretas e indiretas para a América Latina e no Caribe. Também observo, sob um ângulo geoestratégico, a preocupação dos EUA com o aumento da presença de capitais chineses em Cuba e a franca adesão do chefe de Estado cubano a uma linha chinesa pós-Deng Xiao Ping. Reconheço que para a sociedade cubana e a percepção da ilha como espaço de resistência anti-imperialista em nosso continente, o ambiente doméstico dentro da terra de José Martí e a contraparte dos gusanos na interna da direita cubana-estadunidense é mais relevante. Deixo esta análise para outra ocasião, concentrando-me agora no aspecto estratégico para os Estados e não para as forças político-sociais correspondentes.
Washington vê com certa temeridade a projeção da China como parceiro econômico da América Latina e com especial participação no eixo dos países membros do Mercosul e Unasul. Beijing está financiando a construção de uma rota marítima alternativa ao Canal do Panamá – o novo Canal Interoceânico - passando pelo Lago da Nicarágua e onde terá papel importante o novo porto de Mariel, em Cuba. Esta impressionante obra de engenharia – com custos ambientais e para os povos originários da Nicarágua – traz a uma ironia macabra. Ironicamente o país de Sandino tem seu nome em homenagem ao cacique Nicaróguan e tal obra atropela o direito ancestral destes povos! Mas, como se sabe, quando há razão de Estado todos os demais direitos são considerados como danos secundários ou “custos de segunda ordem”. O que preocupa ao Pentágono, além da dimensão das rotas para os navios de classe Post-Panamax (as belonaves com calado superior ao Canal na entrada Atlântica das reclusas de Colón, Panamá) é um fato contundente, impensável no período de Guerra Fria.
Desde a crise dos mísseis que não há a chance real de presença ostensiva de vasos de guerra da armada da Rússia na região. O Kremlin ofereceu sua marinha como força protetiva da nova rota interoceânica promovida pela China. Assim, caso este projeto evolua em sua plenitude, o Comando Sul dos EUA teria em seu costado a uma aliança comercial-estratégica entre China e Rússia, com tratado de cooperação assinado por 50 anos e tendo como entreposto a ilha cubana. Os EUA operam como força protetiva da via entre o Pacífico e o Caribe/Atlântico, garantindo a “segurança” do Canal do Panamá apesar da devolução do território do mesmo e a plenitude das operações ao Estado panamenho a partir de 1997. Logo, a presença chinesa em Cuba como parceira comercial pode implicar numa perda de influência direta maior do que a representada pelo poderio militar do Comando Sul das forças armadas estadunidenses. Para evitar isto, o governo Obama estaria seguindo os passos da própria China que começou a financiar seu crescimento nos anos ’80 ao facilitar a repatriação de capitais chineses ultramarinos evadidos do país após 1949. A administração Obama aposta nos interesses comerciais e mundanos das famílias de origem cubana, não se deixando chantagear pela direita bipartidária que controlava a agenda da reaproximação com Cuba. Diante do desafio, a Casa Branca moveu-se primeiro. Os EUA não poderiam dar-se ao luxo de não participar da expansão de processos capitalistas dentro do Estado que fora seu adversário por mais de 50 anos.
O reatamento das relações diplomáticas e o afrouxamento do bloqueio econômico terão efeitos no curtíssimo prazo. As previsões iniciais são um aumento em torno de 6 milhões de turistas, passando de 3 milhões em média de visitantes na ilha para 9 milhões, sendo a imensa maioria destes estadunidenses. Somente com o acréscimo do turismo, e a consequente presença de redes hoteleiras dos EUA, as receitas advindas desta indústria equivaleriam a 25% do PIB cubano ao ano. O envio de dinheiro de tipo transferência familiar pode aumentar o fluxo de capital de pequena monta (como uma segunda renda para milhares de unidades familiares), reforçando a posição dos cerca de 500 mil micro e pequenos empreendedores hoje atuando em Cuba.
De sua parte, o governo de Raúl Castro ganha novas condições de barganha diante dos parceiros poderosos – como China e por tabela, a Rússia – além de se fortalecer com os aliados secundários, como o Brasil (investidor no porto de Mariel já supracitado). Do lado cubano, é urgente sobreviver, aumentando a condição de manobra diante das urgências nas parcerias comerciais e de troca de produtos fundamentais é uma imposição do Estado cubano. A Venezuela, cujas trocas e aportes com Cuba representam cerca de 18% do PIB da Ilha, vê-se hoje diante de uma encruzilhada. No cenário internacional, o Palácio Miraflores e a PDVSA estão contra a parede. Ao ancorar sua receita nas exportações de petróleo, os ganhos reduzem-se constantemente, em função da queda do preço desta commodity manipulado pela produção da Arábia Saudita, com incentivo dos EUA, visando derrubar os ganhos da Yukos e Gazprom russas. Internamente a Venezuela também vive um momento de instabilidade política que pode resultar na possibilidade de uma derrubada do governo Maduro (mesmo eleito) e um bloqueio ao bloco político chavista.
A vontade do Departamento de Estado de aumentar o aporte de capitais cubano-americanos e o tempo de navegação na internet por cidadãos cubanos também é uma operação de “corações e mentes”. Com a proximidade e os laços históricos de amor e ódio junto aos EUA, os jovens dentre os 10 milhões de cubanos, com o enfraquecimento ideológico – advindo também da ausência de democracia interna e possibilidade real de organização social não-estatista – podem ser absorvidos ideologicamente pelo universo do consumo (diante da escassez) e da tecnologia barata. A administração Obama vê o bloqueio econômico como forma ineficaz para derrubar o castrismo (sendo o regime hoje um adversário de segunda monta), terminando por gerar maior coesão ao Estado na população da ilha. Mais expostos ao modo de vida dos EUA, os cubanos poderiam vir a aderir ideologicamente ao mundo do consumo suntuoso e do individualismo identificando-se assim com a superpotência. Assim, reforçam a presença dos Estados Unidos em seu mare nostrum (o sistema Caribe/Antilhas), prevenindo-se da projeção estratégica comercial chinesa com a Rússia como provável aliado de segunda monta, mas com capacidade militar.
Infelizmente, esta etapa herdeira da Guerra Fria é superada sem uma alternativa ideológica e estratégica a contento para a América Latina e o Caribe.