4ª feira de cinzas, 06 de fevereiro de 2008, Vila Setembrina dos Farrapos, Continente do Rio Grande de São Sepé
Amanhã é a data de um pedaço da história do Cone Sul que ainda está em disputa. Se alguém associou o dia 7 de fevereiro com o martírio do corregedor do cabildo de São Miguel, o cacique eleito Sepé Tiaraju, acertou. Na próxima 5ª o Rio Grande celebra de forma não oficial o dia em que uma das lideranças dos tapes-guaranis caiu em combate, no Arroio Caiboaté, perto da coxilha do mesmo nome, no ano de 1756. O sítio histórico hoje pertence ao município de São Gabriel, localizado na micro-região da Fronteira Oeste do Rio Grande, outrora Misiones Orientales. A tendência é que o local torne-se ponto de romaria e reivindicação de uma identidade ainda oculta.
Já me referi ao mesmo tema em artigos anteriores, abordando o fato histórico e a reflexão ocorrida quando dos 250 anos do martírio do índio Sepé. Insisto no tema por entender que a historiografia brasileira, em seus diversos matizes, não dá conta de compreender o fenômeno. O caso é mais profundo. Reivindicar a raiz missioneira do Rio Grande não é folclorismo, mas sim posicionamento. Se a Capitania de São Pedro (depois Província) nasceu com a fundação da cidade do Rio Grande, na barra da Lagoa dos Patos, a nova civilização nascera cem anos antes, quando da fundação das reduções jesuíticas.
Infelizmente, temos uma história mal compreendida e de cunho oficialista ou economicista. Com todo respeito às correntes hegemônicas da historiografia, não sei qual é a pior. A identidade de um povo, seus mitos fundadores e sua forma de estar no mundo e tão ou mais importante do que os modos de produção e circulação de bens e serviços ou das instituições de decisão centrais de uma sociedade. Ou seja, a identidade e a ideologia são tão ou mais fundamentais do que a economia e a política. Quando ressaltamos o mito de República Guarani estamos dizendo que o Rio Grande não nascera da ocupação açoriana no litoral sul e menos ainda nas bandeiras dos mamelucos de São Paulo de Piratininga. Em outras palavras, afirmar a Sepé é renegar uma versão da história oficial e afirmar o protagonismo dos povos originais e do tipo humano surgido da mestiçagem.
Todo este vazio também ocorre porque duas obras fundamentais para compreender o Rio Grande ainda são quase desconhecidas. Tratam-se dos livros magistrais de Rubens Vidal Araújo, Jesuítas dos 7 Povos (1990) e Tempestade sobre o Rio da Prata (1993). O advogado, jornalista e escritor natural de Cachoeira do Sul narra a história da Campanha sob outro ponto de vista, partindo de fontes originais e sem preconceitos economicistas. Se aplicados como leitura obrigatória nas invernadas dos CTGs, muda a concepção popular da formação do pago.
Esta forma de narrativa, embora pouco reconhecida no Brasil, não é nenhuma novidade nos países hermanos. Dentro da historiografia platense, é conhecido como revisionismo histórico. Trata-se de um esforço de redescoberta do povo como protagonista, da crítica ao colonialismo, e a compreensão do papel fundamental que tiveram as rebeliões populares de cunho federalistas, conhecidas como montoneras. Em toda a América Latina, existe uma forma de reivindicação autóctone chamada de campo nacional-popular. Serviu de inspiração para vários movimentos populares e organizações de esquerda ou extrema-esquerda desde os anos ’50.
Da vizinha Banda Oriental vem o melhor exemplo de fusão do pensamento nacional, popular e latino-americano com o revisionismo histórico. A partir da década de ’50 a epopéia da Liga Federal dos Povos Livres, capitaneada por José Gervasio Artigas é redescoberta. Da pesquisa nos arquivos originais para a criação de bens simbólicos através da imprensa e da música foi relativamente rápido. O mesmo poderia haver passado no lado de cá da fronteira, caso não houvesse dois fatores.
A historiografia contestadora gaúcha, de base marxista, simplesmente ignorou o conceito de povo-classe e durante décadas associou a Guerra Guaranítica apenas como uma luta entre dois impérios (Portugal e Espanha) contra a Companhia de Jesus. Simultaneamente, a reconstrução da identidade gaúcha, formadora do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), estava em mãos de pioneiros folcloristas. O resultado foi o divórcio entre identidade e história e a entrega dos mitos fundadores ao controle das camadas mais conservadoras de nossa sociedade.
Por vezes, a compreensão de um país e seu povo está ligada a um momento histórico trágico. No Peru, a rejeição ao passado colonial (hispanismo) e a redescoberta do indígena como fundador da idéia original de “pátria” surgiu com a derrota nacional em uma guerra no século XIX. Coube ao intelectual libertário González Prada abrir o caminho ao reencontro do Peru com suas próprias raízes. Livros como “Nuestros Índios”, “La Cuestión Indígena” (1905), “El Problema Indígena” (1906), desbravou a trilha para a geração dos anos ’20, que tinha à frente José Carlos Mariátegui e Luis Eduardo Valcárcel, dentre outros. A soma explosiva de discurso histórico, com reivindicações justas e protagonismo popular construiu as identidades coletivas.
Como tudo no Brasil é mais lento e conservador, o sentido profundo da República Missioneira ainda tropeça na ausência de um discurso fundacional e de rigor. A redescoberta iniciou na década de ’70, através das guitarras e gaitas de artistas como Noel Guarany, missioneiro da Bossoroca. Perseguido pela ditadura militar, Noel Borges do Canto Fabrício da Silva (1941-1998) ousava cantar a milonga nativa como um hino nacional:
“és a lírica bandeira / quando em rondas galponeiras / um payador missioneiro/ num sapucay de guerreiro / te evoca de mil maneiras”
Este artigo foi originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat