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Para jornais, revistas e outras mídias

O assassinato de Jango na memória


João Melchior Marques Goulart foi ministro do Trabalho do último governo de Getúlio, vinculado a Leonel Brizola, vice-presidente eleito do Brasil e chefe de Estado. Ao evitar uma guerra civil, não forçou a reação ao golpe em marcha. Outra chance perdida para o país do quase-tudo.

4ª, 30 de janeiro de 2008, Vila Setembrina dos Farrapos, Rio Grande fronteira de águas com a Província de Corrientes

Uma história mal acabada ciclicamente sofre abalos. Um fato novo ou uma abordagem do assunto põe sobre a mesa as mazelas de um país sem memória, verdade e justiça. O pavio da Operação Condor foi novamente aceso a partir de uma repetição daquilo que já se sabia. Desta vez o mote foi o assassinato do ex-presidente João Goulart (Jango), ocorrido em 6 de dezembro de 1976, em uma de suas estâncias, localizada na cidade de Mercedes, província de Corrientes, região do litoral argentino. A forma de difusão foi um fato jornalístico com o potencial de se tornar um julgamento político.

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O tema ganhou mídia nacional no domingo 27 de janeiro, quando a Folha de São Paulo publicou a entrevista feita pela repórter da Agência Folha em Porto Alegre, Simone Iglesias, com o uruguaio Mario Ronald Barreiro Neira. Barreiro é ex-membro do grupo fascista Juventud Uruguaya de Pie (JUP), da falange paramilitar Garra 33, foi agente da ditadura e incorporado a polícia da Banda Oriental. Pertencia a um grupo de tareas, Gamma, encarregado da repressão política e utilizado na coordenação repressiva do Cone Sul. Em tese seu depoimento é válido.

Como muitos de seus colegas nos porões latino-americanos, Barreiro devotou-se a praticar como civil os conhecimentos que aprendera como homem de serviços. Eis o motivo de a entrevista haver sido realizada na Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (PASC), localizada na Região Carbonífera, próxima de Porto Alegre. O ex-agente de inteligência deixara a polícia uruguaia, viveu alguns anos na fronteira seca entre a Banda Oriental e o Rio Grande mudando-se depois para Gravataí, na Grande Porto Alegre. Está preso por crimes comuns desde 1999.

Como já se sabe, Barreiro faz uma série de acusações: ao governo do presidente Ernesto Geisel por ter ordenado o assassinato de Jango; ao delegado do DOPS de São Paulo, Sérgio Paranhos Fleury, como homem de ligação; a CIA (Central Intelligence Agency) como financiadora da operação; e consequentemente, aos governos e serviços do Uruguai e da Argentina por operarem em conjunto cumprindo a suposta resolução do governo brasileiro. Se comprovadas as ordens da cúpula do goerno Geisel, cai o mito do pacto político entre os “sorbonistas” da abertura lenta, gradual e segura e a oposição liberal-democrático-burguesa. O Brasil julgou a linha dura como o único terror de direita após a derrota da esquerda armada. As investigações sobre a Operação Condor, que durou até o governo Figueiredo, portanto em plena abertura, estão comprovando o contrário.

Entendo que o argumento de Barreiro é perfeitamente plausível. O fato de ele cumprir pena como preso comum, por tráfico de armas, falsidade ideológica, roubo e formação de quadrilha não tem muita relação com a veracidade ou não de suas palavras. Dentre os operadores uruguaios e argentinos, é bastante comum que ex-oficiais da repressão constituam uma organização criminosa. O caso mais gritante na fronteira uruguaio-brasileira é o do tenente-coronel de artilharia José Nino Gavazzo Pereira. Antes de ter sido preso por crime de lesa humanidade, já se envolvera antes com problemas legais. Se fosse por envolvimento com a delinqüência, nenhum ex-membro da baixa hierarquia dos porões poderia ser escutado. Tanto aqui como nos países vizinhos, o prêmio pela captura de opositores em armas era o botim de guerra sobre seus bens pessoais.

Outro motivo para não se levar a sério o depoimento seria a existência não comprovada de quarenta fitas cassetes com gravações de conversas de João Goulart ainda em vida. O ex-policial disse ter feito parte de uma equipe de vigilância sobre Jango, monitorando com escuta ambiental as conversas do estancieiro em sua fazenda no departamento de Maldonando, Uruguai. Barreiro prometera as fitas para a co-autora do livro O Beijo da Morte, de Carlos Heitor Cony e Anna Lee. Não as entregou e ainda enviou um emissário para cobrar uma quantia pelo material. O fato se repetiu com a repórter da Folha, porque nenhuma prova material foi apresentada. Estas fitas, se existirem, são as garantias de vida de Barreiro. E mesmo que seu não for completamente verídico é urgente que seja investigado.

Momentos como esses podem fazer a imprensa brasileira retomar para si o papel de outros tempos. Seria o momento para cair com tudo e pôr uma equipe de reportagem em busca de prêmio Esso. Isto porque segundo a repórter da Folha, Simone Iglesias, nenhuma pessoa ou instituição ligada aos acusados por Barreiro se dispôs a responder. Tanto o Exército Brasileiro, como a Embaixada dos EUA, a Embaixada do Uruguai, o ex-assessor de Geisel (Humberto Esmeraldo Barreto) e o filho de Fleury (o também delegado de Polícia Paulo Sérgio Fleury) sequer responderam a repórter. É o típico silêncio que antecede o barulho. A única manifestação foi a de familiares. Os de Ernesto Geisel afirmam que o depoimento é irreal. Já o filho do ex-presidente, João Vicente Goulart, também gravou entrevista com Barreiro e intenta reabrir o caso.

Entendo ser um absurdo condicionar as investigações e a possibilidade de abertura de uma CPI, com a veracidade do depoimento de Mario Ronald Barreiro Neira. Mesmo que cada palavra do uruguaio seja mentira, o caso continua sem solução e o país não sabe o que ocorreu. Uma boa medida para ajudar a solucionar estas passagens ocultas é a abertura de todos os arquivos das Forças Armadas durante a ditadura militar. Estes documentos estão escondidos, lacrados e se deteriorando. Enquanto não forem abertos, vão se corroendo os papéis e a memória da nação.

Artigo originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat






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