A indiferença para com a maioria não é uma exclusividade das polícias civil e militar do Rio. Também não são as únicas a terem problemas de funcionamento. Mas, é preciso reconhecer que estas instituições estão no limite. Ao não atender um chamado em área de favela, o Estado abre mão de exercer o poder público. Na ausência deste, entra a atuação paralela.
Além da omissão estatal, repete-se o mito da desinformação dos políticos profissionais. Pressionado, o governador Sérgio Cabral Filho diz estar surpreso. É possível? Considerando que o governo de Rosinha Matheus, aliou-se com o PMDB, herdeiro de Chagas Freitas e capitaneado pelo ex-senador, essa afirmação torna-se infundada. No Rio assim como no Brasil, todos sabem de tudo e ninguém fala abertamente o que sabe.
Naturalizada a promiscuidade absurda, depois os juros são cobrados pela parcela excluída dos direitos básicos. O pior é que nada disto é novidade. Na mesma cidade considerada capital mundial do samba e do carnaval, segundo o Gabinete Militar da Prefeitura do Rio, as Milícias de para-policiais tomam uma favela a cada 12 dias. A notícia aparece como nota no rodapé de jornal. Assim, um absurdo entra como detalhe. Uma comunidade de favela, onde em média vivem mais de 10.000 brasileiros, passa a ser controlada por uma versão local das Autodefensas Unidas de Colômbia (AUC). Antes, já havia controle territorial por traficantes, coligados em uma rede de quadrilhas. Troca-se de cinismo, mas ninguém é punido.
Enquanto a extensão paralela da repressão estatal avança, o Rio comemora o carnaval. A festa popular autêntica tem a presença fixa de um setor da ilegalidade bastante tolerado. Nesta indústria, a Banca do Bicho é aceita, convivendo nos camarotes ao lado de autoridades eleitas, executivos de transnacionais e estrelas da mídia. Assim como o controle das favelas e a ausência da polícia, não se trata de coisa nova. Os bicheiros, versão brasileira de jogo ilegal, operadores de caça-níqueis, redes de transporte clandestino, transferindo dinheiro líquido, sem fonte, receita ou destino, pouco são incomodados. Ao contrário, são “folclóricos”.
Os “banqueiros” do bicho são tolerados na cidade há quase 100 anos e no carnaval carioca há pelo menos 50. As redes de quadrilhas, conhecidas como Comando Vermelho (CV), Terceiro Comando (TC) e a caçula delas, Amigos dos Amigos (ADA) convivem na metrópole fluminense há no mínimo 25 anos. Agora, fundindo a prática do “arrêgo semanal” com a da “polícia mineira”, para tristeza da história da esquerda, os para-policiais ganham denominação de Milícias.
Esta é a soma do pior que tamanha omissão e promiscuidade conseguiram gerar. Em uma estrutura fluida e paralela, o saber acumulado dos grupos de extermínio, esquadrões da morte, homens de ouro, da corrupção e autonomia policial ganha a forma de poder de fato. Se isto não for motivo suficiente para a intervenção de uma força-tarefa federal na Secretaria de Segurança Pública deste estado, em todos os seus mandos e escalões hierárquicos, então não existem motivos para nenhuma outra política de segurança no Brasil.
Caso considerem exagero, peço que acompanhem o raciocínio. Alguém em sã consciência pode admitir que uma autoridade não esteja informada a respeito das Milícias? Seguindo o raciocínio, como pode um coronel, tenente-coronel ou major, comandante de um Batalhão da PM, desconhecer algo que ocorra em uma comunidade de favela localizada em sua área de atuação? Ou o Serviço Reservado da Polícia Militar (P2) daquela unidade não o informa, ou então este oficial se omite. Resultado lógico, ou este comandante perdeu o poder de mando, ou então se recusa a exercê-lo.
O mesmo vale para os delegados da região, suas redes de X-9 (informantes), os respectivos enlaces com a Coordenadoria de Inteligência Policial (Polícia Civil) e a Subsecretaria de Inteligência da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. É inadmissível que a autoridade policial utilize o argumento de ser “surpreendida” pela atuação das Milícias. Detalhe indigesto, estes esquadrões são compostos por membros e ex-membros dos aparelhos policiais. Caso de fato se confirme esta desinformação, estes Serviços estão inaptos para a função que teriam de exercer.
É preciso ser insistente e vigilante com o tema. Mil vezes pior do que um bandido armado controlando um território de periferia é um policial sem farda ou distintivo matando e morrendo pelo controle deste terreno. Não se trata de indícios e sim de certezas. As tais Milícias vão caminhando a passos largos para serem indissolúveis. Ao que tudo indica, ou o Estado toma as rédeas sobre seu aparelho repressivo, ou o problema se tornará incontrolável em curtíssimo prazo.
Artigo originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat