Outra vez mais, arrisca-se jogar fora a água e a criança junto. Neste texto, ao invés de seguirmos a crítica do modelo pactado de corte de gastos e orçamento apertado, aportamos uma proposta alternativa. Não necessariamente medidas concretas, mas ferramentas iniciais de uma outra forma de pensar o desenvolvimento sustentável. Este, se aplicado a partir do uso dos fundos públicos, tais como o FAT, as verbas de investimentos do Banrisul, da Caixa RS e o que cabe ao estado daquilo que vem – ou teria de vir – do BRDE, do BNDES, do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal, pode ser o motor de um outro tipo de “indústria”. Isto é, àquela que economiza recursos da sociedade aplicando sua energia em algo construtivo e com alto grau de produtividade. Têm por base, não os indicadores gerenciais das tropas da restauração arinconadas em Montpelier, mas o bom e velho fio de bigode, quantificado em grau de confiança interpessoal.
Como parte das ferramentas necessárias para executarmos um determinado tipo de trabalho, a atividade intelectual precisa de referentes e pressupostos onde podem ser aplicados os conceitos. Pensemos os conceitos como a ferramentaria de um artesão especializado. O conceito aqui apresentado, o de capital social, acreditamos ser a ferramenta necessária para o início deste debate. Como referência teórica, trazemos a produção de Hemerson Luiz Pase, pesquisador da Fepagro/RS, doutor em ciência política, professor da UERGS e colega de núcleo de pesquisa. Os trechos aqui apresentados são parte de um artigo acadêmico (Capital Social e Desenvolvimento Rural: uma abordagem cultural das desigualdades), texto esse condensador de sua tese de doutorado, recentemente defendida na UFRGS.
Segundo Pase, “o capital social é uma capacidade que empodera o cidadão, cuja confiança aprimora a democracia, produz desenvolvimento institucional quando constitui regras claras de comportamento com sanções para os desertores, produz desenvolvimento econômico na medida em que possibilita acesso a informações e estimula solidariedade, e constrói uma cultura política baseada em valores humanitários”.
É inevitável uma pergunta para um leitor pouco avesso a debates de fôlego. Afinal, que relação tem o capital social com a crise fiscal do estado com maior IDH no país? Afirmamos que tem toda e qualquer relação imaginável. A pesquisa realizada por Hemerson nos trás resultados concretos na aplicação de micro-crédito em base ao capital social. Isto levara a um maior desenvolvimento econômico, em bases sócio-ambientais justas, aplicadas em uma estrutura de economia cooperativada, sob controle público e não-estatal. Em semanas anteriores citamos aqui a própria Sicredi, cooperativa gaúcha com mais de 1 milhão de associados, e que tem por base o micro-crédito. Iniciativas como estas, se integradas e articuladas através das verbas estatais simplesmente tragadas pela jogatina financeira ou dadas a fundo perdido aos oligopólios de sempre, podem ser a força motor de um desenvolvimento que pouco a pouco vai revalorizando o tecido social onde este capital é aplicado.
Pase realizou sua pesquisa na área de abrangência do Conselho de Desenvolvimento da Região Nordeste Gaúcha, (Corede Nordeste) e os indicadores foram todos positivos. Segundo ele, “a hipótese de trabalho afirma que o investimento em políticas públicas específicas, de constituição de cooperação e confiança recíproca entre os cidadãos, constitui e/ou desenvolve e aprimora capital social, cuja existência contribui decisivamente para minimizar as desigualdades sociais e regionais e estimular o desenvolvimento equitativo e sustentável, através da melhoria da qualidade de vida”.
Temos de compreender a origem destes conceitos como a instrumentação de uma forma de vida em sociedade. Experiências típicas de regiões com laços familiares ainda fortes, estrutura fundiária tendo por base a agricultura familiar (cuja origem é o minifúndio nas colônias) e vínculos de integração social operando no plano ideológico (tanto de valores como de comportamento). Para tornar estas iniciativas como políticas públicas de largo alcance, levando-as a todo o estado, é preciso tomar a construção destas redes como a teia de desenvolvimento alternativo ao modelo concentrador, excludente e fator de crise fiscal. Na base da pirâmide social pode estar a solução, como na ação conjunta de alguns serviços públicos, operados por empresas estatais e associados a setores organizados de movimento popular.
Poderia usar vários exemplos de iniciativa onde se pode aplicar o capital social. Alguns deles saltam aos olhos e podem ser fonte de trabalho para milhares de pessoas. Exemplos concretos são as associações de radiodifusão comunitária, emissoras sob controle social e operadoras de uma outra carga de valores e vida em sociedade. A própria agricultura familiar, base material das redes de capital social já funcionando. Uma possibilidade de realocação de mão de obra especializada seria a autogestão em escala industrial de fábricas retomadas, tais como as que compõem o parque fabril do couro, cujas plantas, financiadas pelo Banrisul, estão simplesmente apodrecendo.
Uma outra possibilidade é o subsídio público para o trabalho de catação realizado por cooperativas de catadores, especificamente as vinculadas ao Movimento Nacional de Catadores de Material Reciclável (MNCR). O Brasil já é o país onde mais se recicla no mundo e seria muito mais producente para a diminuição da dívida social a aplicação de parte dos recursos para o controle direto desta categoria à beira da marginalização. Isto sem falar no absurdo existente em grande parte dos contratos de limpeza pública, notória lavanderia de dinheiro para caixas de campanha. Para piorar, esta área é cartelizada por um grupo empresas tão “complicado” como as grandes empreiteiras, ambas “curiosamente” sempre vencedoras de licitações públicas.
Voltando ao estudo que baseia o artigo, este nos apresenta, nas virtudes destas políticas públicas, a própria defesa desta ferramenta de incidência e organização social. Hêmerson conclui afirmando que, “o entusiasmo de teóricos e estadistas a respeito do conceito de capital social relaciona-se a sua potencialidade de estabelecer uma nova relação entre a sociedade civil e o Estado. Este conceito possibilita à ciência analisar possibilidades inovadoras de relação entre as pessoas comuns e o “poder” enquanto tal”.
Mesmo considerando ser o assunto largo e profundo, pensamos que o conceito de capital social pode balizar um outro tipo de desenvolvimento. Para o Rio Grande sair da crise, as redes de capital social são tão importantes quanto o teto salarial, o fim dos cargos de confiança, a caça ao nepotismo, o término de repasse de dinheiro público para cofres privados e a renegociação da dívida pública do estado para com o governo central. O caminho das alternativas para a crise, não está nem nunca esteve nas manobras e “caneteadas” dos responsáveis pela própria crise. Os assuntos públicos somente podem ser solucionados por seus maiores interessados.
Artigo originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat