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ISSN 0033-1983
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Por uma democracia social com partidos políticos de outro tipo – 2

O habitus sincrético dos cortiços uniu as classes oprimidas no Rio de Janeiro no período da reforma sanitária que disparara o estopim para a Revolta da Vacina

ciencia.hoje

13 de maio de 2010, da Vila Setembrina de Lanceiros Negros traídos em Porongos, Bruno Lima Rocha

Neste segundo artigo desta nova série de difusão científica abordamos o tema do arraigo e da incidência das propostas e da chamada cultura orgânica. Para tanto, é necessário destrinchar um conceito-chave, que elencamos como o de habitus, conceito esse formalizado por Pierre Bourdieu com tal denominação, mas cuja aplicação dá-se no Cone Sul da América desde, no mínimo, a década de ’20 do século passado. Este conceito, se aplicado para além do relevo de comportamentos aparentes, implica no domínio e inteligibilidade dos códigos das classes onde se está, a idéia de inserção social e o recrutamento adequado.

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Cabe aqui uma nota explicativa. No texto citado de Bourdieu (1979, cap. 8), a referência do habitus é o da classe operária francesa do final dos ‘60 e início dos ‘70. Na série que aqui se apresenta, apontamos uma variedade de setores de trabalho porque o exemplo de partido a ser analisado não é o Partido Comunista Francês, como o faz Bourdieu, mas um modelo de partido a partir da flexibilização e desregulação das relações de trabalho, desenvolvendo-se em países latino-americanos, com índice alto (mais de 50% em muitos dos casos) de desemprego e economia informal.

Já o distanciamento do PC Francês também se dá por distintos motivos, sendo alguns deles: - a aceitação da linha do eurocomunismo o que equivaleu a afirmar durante a Guerra Fria na impossibilidade de um processo de acumulação revolucionária da Europa Ocidental do Pós-Guerra; - sua estrutura leninista e seu comportamento de conciliação de classes; - sua trajetória de conduta nefasta como força hegemônica do mundo do trabalho francês, salvo a rara exceção durante a Resistência Francesa; - enfim, seus próprios princípios teórico-metodológicos que, quando culminados em vitórias políticas, resultaram em ditaduras de inspiração marxista (sem liberdades políticas para as matrizes igualitárias, e tampouco liberdades culturais, étnicas ou religiosas), como foi o caso da União Soviética após a derrota das forças populares não-bolcheviques logo a partir da derrota militar do Exército Insurrecional dos Camponeses da Ucrânia, em 1921 (ver a referência bibliográfica).

Feita essa ressalva, apenas para citar que no texto de Bourdieu o parâmetro partidário não é aceitável no modelo aqui apresentado, seguimos. Vamos entrar em específico no tema da inserção social, tanto da instituição (organização política) como de seus operadores (quadros médios, militantes plenos). Entendemos que o tema do habitus também gera identidade e coesão. Tem relação, em sua maior parte, com as fontes de recrutamento e a inserção social. Por inserção entendemos como permanência e desenvolvimento institucional ao longo do tempo e em determinados espaços sociais escolhidos e possíveis. Também tem relação específica com o treinamento do membro já ingressado. Já os mecanismos coercitivos, executivos, deliberativos e com capacidade de sanção, tem relação com a estrutura interna e o desenvolvimento organizativo do partido.

Assim, o treinamento, desenvolvido por instância adequada e determinada com mandato coletivo da organização política, é, neste caso hipotético, um processo com etapas fixas, mas que se desenvolve de forma permanente. Seu objetivo é dotar de capacidades equivalentes as potencialidades dos membros plenos (com plenitude de direitos e deveres) de uma determinada instituição política com missão rigorosamente definida. O conceito chave deste treinamento, além dos conteúdos, é a equivalência entre os membros, buscando se atingir um patamar mínimo desejável pelo conjunto e com vias de crescimento de acordo com a necessidade e o planejamento estratégico da organização.

Vamos considerar que este partido hipotético aponte como necessário para realizar seu programa, dotar a instituição de quadros treinados e ambientados em segmentos sociais das classes oprimidas. Não se trata especificamente de fábrica ou favela, mas um conjunto de setores, segmentos e territórios a serem encarados como frentes de trabalho. Possibilidades organizativas são várias, seja por sujeito social excluído como mulheres, negros, indígenas ou juventude marginalizada; por categoria de trabalhadores assalariados ou por conta própria do campo ou da cidade (operários, biscateiros, catadores, bóias-fria); espaço geográfico excluído (associação de moradores de vila, periferia ou bairros operários); dentro do campo da Informação, da Comunicação e da Cultura; ou constituindo movimentos mais orgânicos e dotados de estrutura própria (como o movimento sem-terra, sem-teto, de trabalhadores desocupados). Enfim, nesta série não cogitamos a hipótese de apontar um setor prioritário frente ao conjunto para ser trabalhado na intenção de organizá-lo. Considerando estes serem o tipo de setores para co-organizar, via inserção social, a ambientação dos militantes com responsabilidades (quadros) passa a ser o tema central.

Antes já consideramos que o treinamento político específico se dá na interna da organização e ao longo do tempo, e a ambientação com o meio social que se quer trabalhar é o tema central. Então, o determinante para o trabalho de partido passa a ser a gravitação em meios populares, e fundamentalmente, através da ambientação de seus quadros. Basta fazermos um exercício de hipótese mínima para chegarmos à seguinte premissa. Quem tem a melhor inserção em um determinado meio social são aqueles indivíduos cujas trajetórias, origens familiares, gostos, domínio dos códigos culturais, penetração no tecido social e pertencimento geracional são oriundos neste mesmo espaço.

Ou seja, está à frente na pugna pela inserção quem tem o habitus de classe já incorporado, como ponto de partida mínimo. Isto é o inverso do capital cultural e das redes de conhecimento para o ingresso nas elites existentes e que são pré-requisitos para mobilidade social e alguma forma de arrivismo político. Voltando ao tema da inserção social tendo as classes oprimidas como protagonistas, a entrada de pessoal já ambientado nos setores escolhidos para o partido atuar, poupa anos de treinamento (justo de ambientação) e de carga de informação necessários para neste espaço se inserir.

Cabe aqui outra ressalva. Absolutamente não estamos afirmando de forma estrutural-determinista que indivíduos de setores excluídos, caso tenham o treinamento e a incorporação, não possam ter mobilidade social. O que sim afirmamos é que a regra vale tanto para cima (mobilidade de incorporação nas elites) como para baixo (inserção de indivíduos com origem e habitus de classe média em setores populares). Fatores de motivação política e oportunidade pela via institucional (ex. bolsas de estudos, para cima; e o contraponto, trabalhos de extensão universitária ou através de pastorais sociais, para baixo) podem alterar de forma individualizada esta norma, mas geralmente exemplificando a própria regra.

A capacidade de interpretação destas relações sociais e de informação empírica cabe a própria organização gerar as ferramentas necessárias, via treinamento específico, e com aplicação interpretativa por seus quadros. Assim afirmamos que o habitus (em sentido amplo, de classe e povo) é uma característica fundamental para este tipo de instituição política se desenvolver através de seus militantes nestes meios inseridos.

Como o habitus é algo que se adquire ao longo do tempo, via trajetória, o tema essencial então é o esforço concentrado para o recrutamento diretamente nestes mesmos setores excluídos onde se quer organizar. O treinamento político passa a ser tarefa da organização, agregando valor e orientação política normativa aos usos, códigos, costumes e preferências já existentes e que são trazidos via militantes destes meios socais. A integralização de habitus, ferramentas organizativas e interpretativas, somadas com um conjunto de valores do tecido social-produtivo integrado as instituições sociais de um mesmo território ou fração de classe, somada a produção de bens culturais e identitários que façam a fusão de trajetórias, ancestralidades e interesses é algo próprio e necessário para uma instituição política integrativa e de tempo integral.

Vale aqui outra ressalva. Esta não é, de forma alguma, a afirmação teórica da necessidade de profissionalização da militância. Até porque trabalhamos a modelagem de associações políticas voluntárias, portanto não de profissionalização proibida, mas secundária e controlada. A mesma ressalva vale para o reforço do caráter integrativo, como característica fundamental deste tipo de instituição.

A conclusão advinda do parágrafo acima é que a politização da vida social e cultural, agregando sentido coletivo e idéia de destino comum (a partir do pertencimento geracional e familiar) para um conjunto de militantes sociais, militantes políticos, quadros políticos e seus ambientes de gravitação é uma característica necessária para este modelo de organização política. Diminuindo a distância entre a vida privada e a coletiva, dando idéia de pertencimento e destino coletivo através do trabalho político e social, o habitus e o esforço integrativo (instituição, com coesão política através da afirmação de valores, normas de conduta, além do programa partidário e dos interesses de classe) são tão determinantes para uma possibilidade de sucesso político como o são os temas de conjuntura e especificamente políticos (como campanhas, discurso, formas organizativas e de níveis de conflito pela defesa e avanço de direitos).

Isto aponta para outra característica, necessário como pressuposto teórico. O recrutamento, condicionado por habitus e vida política integrativa em tempo integral (para seus quadros, parcial para sua órbita), aponta para o modo endógeno. Instituições de tipo integrativo, com condicionantes de força (ex. o Exército Brasileiro) e ambiente externo adverso (como este partido hipotético, às voltas sempre com deserções, saídas individualistas, desemprego de seus membros e possibilidade repressiva) deveriam, nesta hipótese, ter um recrutamento (majoritário, não-absoluto) de tipo exógeno, mas fortalecido, através da inserção social, também com laços de família ou amizade.

Este debate entraria aqui em temas mais próprios da organização, como lealdade, motivação e compreensão de objetivos coletivos. Mantendo a fidelidade com a discussão de teoria política específica, afirmamos que este tipo de condicionante é um inibidor, constrangendo elementos com motivações individuais vinculadas a alguma possibilidade de recompensa privada material, de tipo free rider (ver Olson, 1999, caps. 2 e 3). Em termos de custos sociais, as sanções e condenações de seus pares, podem fazer com que um indivíduo (e por tabela seu núcleo familiar e aqueles de seu grupo de relações diretas) calcule que a motivação material não é compensadora o bastante para romper uma série de lealdades adquiridas e reforçadas ao longo do tempo.

No sentido de conclusão:

Afirmamos que este tipo de treinamento é fruto de pensamento estratégico e vontade política, portanto, rigor conceitual e motivação normativa. Nesta instituição política é reforçada a necessidade de aumento da capacidade de análise, ao identificar o jogo real (regras formais e informais, dentro de parâmetros legais e ilegais) e a arena prioritária onde este partido se lança. As identidades geram a coesão interna necessária, o que em tese, diminui os custos de coerção. E o quesito identidade é reforçado não apenas na origem, mas a identidade de povo (ancestralidade e pertencimento a um território) e de classe (compreendendo classe também como antagonismo).


Bibliografia empregada:

ARCHINOV, Piotr. História do movimento Macknovista: a insurreição dos camponeses da Ucrânia. Lisboa, Cadernos Peninsulares, 1976.

BOURDIEU, Pierre. La Dinstinction. Paris, Minuit, 1979.

OLSON, Mancur. A lógica da ação coletiva. São Paulo, EdUSP, 1999.


Este artigo foi originalmente publicado no portal do Instituto Humanitas Unisinos (IHU)






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