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As Milícias e a falência da segurança pública


A comoção popular com a morte absurda do menino João Hélio termina por abafar o debate de fundo. Não há correção possível com o modelo policial totalmente falido.

3ª, 13 de fevereiro de 2007, Vila Setembrina dos Farrapos, Continente de São Sepé

O assassinato do menino João Hélio Fernandes é mais um capítulo da falência múltipla dos órgãos de segurança pública no estado do Rio de Janeiro. Afirmo a falência múltipla lembrando o conceito empregado, ao menos nos discursos, quando o Brasil clamava pela intervenção federal no Espírito Santo. Corria o ano de 2002, e Fernando Henrique Cardoso junto de Paulo Sérgio Pinheiro escolhem a urna e não a cidadania. A tragédia se repete agora no Rio de Janeiro, todos fazem eco na indignação e para solucionar os problemas propõe-se mais do mesmo. Assim não se conserta nada.

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Tive a oportunidade de, como bolsista Capes, desenvolver o mestrado em ciência política concentrando o estudo na segurança pública. Especificamente a dissertação estudou as disputas internas na Polícia Federal (PF) após 1988. Na pesquisa e entrevistas, constatei o óbvio. O modelo faliu. É impensável promover segurança púbica com duas polícias estaduais que concorrem entre si, com a dinastia dos delegados-bacharéis de direito, aplicando infindáveis laudas de Inquérito Policial (IPL), onde todos falam e nada se prova.

Para destrinchar o problema, podemos começar pelo IPL. A Justiça só aceita a evidência material como prova, é isso ou confissões, que podem ser negociadas em troca do alívio da pena. Tudo o que é apurado no IPL tem de ser novamente provado perante o juiz. Quem produz prova é a perícia, e custa caro, tem de ser preservada a cena do crime, precisando de tecnologia e recursos humanos de ponta. Ainda que tenha orçamento curto, a PF tem seu nível de excelência. E os estados? Quantos crimes são investigados pelas polícias civis estaduais? Quantos assassinatos ficaram sem nenhuma resposta? Ou será que as forças da ordem só se mexem com a pressão da mídia?

Quando um equipamento não funciona, termina por só pegar no tranco. É isso o que ocorre nos aparelhos policiais brasileiros. Vivemos uma babel, onde todos falam e ninguém se entende. Esta idéia não é minha e sim de Luiz Eduardo Soares. Aliás, falando em caos nas polícias fluminenses, a grande chance foi perdida. O ex-governador Antônio “Garotinho” Matheus de Oliveira optou então pelo caminho mais fácil. Aceitou as reclamações corporativas e “fritou” ao reformador. Crise de paradigmas, o oposicionista político dos anos 70 hoje é o maior defensor de uma racionalidade policial.

Luiz Eduardo foi queimado e o Rio ficou como está desde o inicio da década de 80. Para entender a situação caótica da capital fluminense e sua Região Metropolitana, é necessária uma breve volta no tempo. A segunda geração da Falange Vermelha, logo depois rebatizada de Comando Vermelho, passou a operar o varejo das drogas ilícitas a partir do Complexo do Morro do Juramento. Quem gerenciava o empreendimento era o líder dos irmãos Encina, José Carlos, o “Escadinha”. O ano era o de 1983, justo quando assume o governo estadual Leonel de Moura Brizola. Orientadas as forças policiais a serem menos repressivas, criou-se o ambiente propício para o controle territorial dos morros. De lá para cá a situação só piorou.

Em 1987, nos primeiros meses do governo de Moreira Franco, a Operação Mosaico I e II, munida dos devidos mandados judiciais, levou a morte e a prisão de várias dezenas de narcotraficantes. Dentre eles, os homens fortes da Rocinha, Naldo e Cassiano. No mesmo ano, houve uma guerra travada entre o Terceiro Comando e o Comando Vermelho pela posse do Morro Dona Marta. Esta comunidade é localizada em Botafogo, Zona Sul carioca, vizinha do Palácio da Prefeitura, defronte ao 2º BPM e a poucas quadras da 10ª DP. Definitivamente, ficou claro para todos que o Estado, representado pelo governo do Rio de Janeiro, não tinha nenhuma vontade política de assegurar a segurança para todos os seus cidadãos.

Voltando um pouco na linha do tempo, no início da década de ’80, houve guerras no interior de algumas favelas. Basicamente, um conflito de controle daquelas micro-sociedades, protagonizados por migrantes nordestinos, muitos deles pequenos empreendedores informais. As “pessoas de bem” tomaram conta da comunidade, expulsando “traficantes e vagabundos”. Incorporou-se na favela a prática de “polícia mineira”, comum na Baixada Fluminense. É simples. Comerciantes locais pagam aos operadores de segurança clandestina para garantirem seu patrimônio e integridade física. Estes saem a “mineirar” e aos poucos vão ganhando autonomia de gerência e operacional. Considerando que boa parte deles é composta por policiais, ex-policias, bombeiros, agentes penitenciários, eis o embrião das Milícias.

Assumindo que o Estado não tem condições políticas e operacionais de prover segurança a todos os cidadãos, no vazio do poder oficial entra o paralelo. A sociedade brasileira está escandalizada com a crueldade dos bandidos no caso do menino arrastado pelo carro em movimento. É certo, todos devemos nos indignar diante de nossa própria desumanidade. Mas, será que a maioridade penal soluciona o problema? Que problema queremos solucionar?

O assunto será retomado na próxima semana, mas deixo um posicionamento. No caso do Rio de Janeiro, de nada adianta uma tropa federal ostensiva, como a Força Nacional de Segurança Pública. Para consertar as polícias fluminenses, uma força-tarefa composta de delegados federais com ficha exemplar, auditores, peritos, agentes de inteligência policial e administradores seria muito mais útil. Não há como escamotear o problema. Todo o aparelho de segurança tem de sofrer intervenção direta do Ministério da Justiça. Do contrário, em breve as Milícias serão incontroláveis. Caso alguém duvide do tamanho do problema, sugiro que olhe para as Autodefesas Unidas de Colômbia (AUC) e depois reflitam.

Artigo originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat






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