Vamos decidir se será proibida ou não a venda legal de armas de fogo e munição. Não fomos chamados sequer a discutir o Estatuto do Desarmamento, que por sinal, já foi aprovado em dezembro de 2003. Talvez sejamos proibidos de comprar uma arma curta, de uso civil e calibres não-exclusivos das forças armadas ou policiais. Mas, se por ventura o Não vencer, os eleitores brasileiros estarão discutindo e decidindo sobre um aspecto do Estatuto, entre vários já aprovados sem consulta popular.
Obviamente que nesta altura do artigo, esta argumentação já estará sendo refutada através de diversas teorias democráticas. As quais, sem nenhuma hesitação, chamo apenas de ritos procedimentais. Estamos vivendo um período de crise política, onde as estruturas de representação, destacadamente o Parlamento, os partidos políticos e os atores políticos individuais são objeto de desconfiança. Segundo pesquisa publicada no jornal semanal Brasil de Fato, foi feita a seguinte pergunta:
“Você confia ou não, nas seguintes instituições?” A listagem de instituições, em ordem decrescente de confiança, foi a seguinte; Médicos (81%), Igreja católica (71%), Forças Armadas (69%), Jornais (63%), Televisão (57%), Rádios (56%), Igrejas Evangélicas (53%), Sindicatos de Trabalhadores (51%), Advogados (48%), Poder Judiciário (45%), Empresários (37%), Polícia (35%), Senado (20%), Câmara (15%), Partidos Políticos (10%) e Políticos (8%). Para que não existam dúvidas quanto ao compromisso e a procedência, ressalto que esta pesquisa não foi feita por nenhum agrupamento radicalizado vindo de universidade pública. Não, a pesquisa foi realizada por ninguém menos que o Ibope, instituto que pode ser tudo menos contestador.
O mais agravante, é que estes números, com algumas variações, são repetidos em toda a América Latina. Ou seja, este modelo democrático está em crise de legitimidade. As pessoas comuns não confiam nas instituições criadas para regularem a vida coletiva. Para ajudar a sanear, tanto os valores democráticos como as formas e procedimentos para executá-la, os instrumentos de democracia participativa e direta precisam ser aprimorados. Sob esta ótica, todo e qualquer referendo é salutar. Este artigo questiona é se é apropriado ou não fazê-lo agora. E, o mais grave numa escala de importância, é este o tema que deveríamos estar decidindo?
A primeira pergunta tem uma resposta simples. O referendo do dia 23 de outubro, pode até não ter sido feito com este propósito, mas vem a calhar em um momento de crise. Em termos clássicos de estratégia, mais se parece com uma manobra diversionista. Para atrair atenção a outro flanco, uma das forças em combate lança uma isca, ou realiza uma ação sem importância estratégica, mas que desvia e baixa o nível de atenção do inimigo. Este intervalo de tempo, em luta real, é precioso. Pode servir para reagrupar forças, buscar outras saídas para algum impasse ou mesmo, ganhar um tempo valioso para retomar o fôlego para o centro da luta.
É o que parece ser este referendo. Trás uma questão externa e alheia para maioria dos brasileiros. Aqueles que tem condições financeiras de comprar uma arma legal, em geral já a possuem, e também não a necessitam. Tem suas vidas e patrimônios protegidos por empresas privadas e agências de segurança do Estado. A baixa classe média, os trabalhadores formais, os que estão na margem do subemprego, são os que em geral vivem em casas térreas e em áreas desprotegidas. Em tese, caberia a estes a tarefa de executar o seu direito à autodefesa, e dentro da lei. Eis então quando a injustiça econômica impera. A maioria dos cidadãos brasileiros que necessitam de uma arma legal, não tem condições econômicas de comprá-la. Mesmo assim, sob ameaças de punição uma vez que o voto é obrigatório, são estes os brasileiros que irão decidir sobre a proibição.
Quanto a segunda questão, se este é o tema que mais aflige ao povo brasileiro, é óbvio que não. Nunca somos consultados quando o tema é aumento de salário. Nesta arena, ou se peleia nas ruas, ou a derrota é certa. Para garantir o veto presidencial ao aumento de salário, o governo liberou, “por dentro e com rubrica”, quase R$ 1 bilhão de reais na forma de emendas orçamentárias. E isto num país onde, segundo o próprio IBGE, os 10% mais ricos concentram 75% das riquezas produzidas. Tivemos um crescimento econômico médio, entre 1945 e 1980, de mais de 7,5% ao ano. Mas, segundo o ex-todo poderoso Delfim Netto (por sinal, um dos gurus de Palocci), era o momento de fazer o bolo crescer para depois dividi-lo. A chance histórica de sermos um país sem miséria foi perdida neste período.
Agora, que a economia mundial cresce outra vez, consolidamos nossa democracia pagando uma dívida que já foi paga mais de 4 vezes desde 1994. Ganhamos a Copa do Mundo e também o torneio mundial de taxa de juros. Como reforçar a confiança nas instituições liberais-democráticas quando 40% da população economicamente ativa (27 milhões de trabalhadores) não tem nenhum direito social garantido?! Simplesmente não dá. Ainda segundo o IBGE, 1 em cada 4 domicílios brasileiros é considerado insalubre e impróprio para a existência humana. Para os trabalhadores mais pobres, aquelas com renda familiar de até dois salários mínimos, 77% do orçamento está comprometido com aluguel, impostos municipais, alimentação e transporte. Não é de estranhar que na democracia brasileira sejam lidos menos livros por ano do que na Colômbia, onde se convive com uma guerra civil desde 1964.
Estamos de frente a um problema histórico, teórico e prático. Como se pode consolidar uma democracia real sem o mínimo de aproximação econômica. Afinal, qual o poder de decisão da maioria que executa seu mando? Sm, democracia, mando do povo, em tese ao menos, deveria expressar às vontades e decisões das maiorias para as questões fundamentais. É isto o que se espera de um “bom governo” e dos mecanismos representativos e reguladores da vida social. No mundo real, acontece justo o oposto do predicado nos clássicos do liberalismo. Longe de fazer um discurso antidemocrático, este artigo busca contribuir para um debate abafado pela grande mídia e seu coro de “especialistas”.
Aqui no Rio Grande, em algumas prefeituras petistas, ainda temos um exercício de democracia direta e com mandato imperativo. Eles se dão no chamado Orçamento Participativo (OP). Nesta modalidade democrática, os mandatos são revogáveis uma vez que os delegados e conselheiros eleitos, não cumpram as metas decididas por seus pares que o elegeram. Imagina se a moda pega, se pudéssemos revogar o mandato de um deputado ou senador que votasse contra aquilo que se compremetera em campanha?! Pois bem, isto, se bem regulado, poderia terminar com os famosos “estelionatos eleitorais” aos quais estamos infelizmente acostumados.
Especificamente sobre o OP, há um problema de fundo neste mecanismo de “quase” democracia direta. A capacidade decisória dos delegados e conselheiros do OP fica restrita a disposição orçamentária das prefeituras. Em média, o OP decide no máximo por 4% da verba líquida de cada município. Para piorar, a maioria das prefeituras de cidades periféricas está endividada em quase 50% de sua receita bruta. Concluindo, não há democracia participativa real sem distribuição de renda. E como se sabe, não há justiça social sem organização popular disposta a conquistá-la.
Voltando ao tema do referendo, como todos os articulistas que escreveram a respeito, me sinto obrigado a posicionar-me. Apesar de titulação acadêmica e do status de profissional liberal, moro em vila e toda a comunidade convive com os efeitos da marginação social. Infelizmente, nossas residências térreas e em ruas sem calçamento, não são seguras. A polícia demora no mínimo 40 minutos, em média, para atender a um chamado desta zona. Não há vigilância privada nem zeladoria. Ou os vizinhos se ajudam, sendo que um e outro mais disposto sempre toma à frente, ou então o que nos resta é rezar. Qualquer vizinhança com mais de 50% de desemprego e sob efeitos da venda de crack é insegura e sujeita tudo.
Algumas famílias do bairro, entre os quais se inclui a minha, participa de militância popular com o intuito de diminuir a criminalização da pobreza, lutar pelos direitos coletivos, promover a paz entre as vilas e terminar com a guerra entre os moradores da periferia. Só que estas boas intenções não nos tiram do mundo real. E, às 3 da manhã de um fim de semana, o Estado de Direito tirou folga. Quero preservar o que restou do nosso direito a autodefesa dos trabalhadores, mesmo sem ter condições financeiras de comprar uma arma legal. Por isso, meu voto é NÃO.
Artigo originalmente publicado no blog de Noblat