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A outra identidade da história política Farrapa


Assim como Simon Bolívar, Bento Gonçalves da Silva morreu isolado, enfermo e desgostoso com os rumos da epopéia que ele comandara, mesmo que por muitos momentos, duvidando de sua própria capacidade de vitória.

19 de setembro de 2006, Vila Setembrina dos Farrapos, Continente de São Sepé

Enquanto a disputa pelo poder central arrasta a república para práticas cada vez menos limpas, no rincão mais ao sul do país, a Semana Farroupilha demarca a disputa pela identidade política da região. Da direita agrária sugadora dos recursos do estado a extrema-esquerda que nem participa do processo eleitoral, a hegemonia ideológica é motivo de peleia porteira adentro. Embora o restante do país não o perceba, se avizinha o 20 de setembro, data mais importante da história do Rio Grande do Sul.

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Em meados de 1835 estala a guerra contra o Partido Conservador, caramuru, aliado do Rio de Janeiro. Cerca de um ano depois, o general da cavalaria farrapa Antônio de Souza Netto, comanda a tomada de Porto Alegre. Com a vitória contra as tropas do Império luso-brasileiro, Netto e seus oficiais proclamam a República Rio-Grandense. A historiografia discute se a república foi um golpe de propaganda ou um caso pensado. Hoje, 171 anos depois, isto pouco ou nada importa. Sabemos que a história é feita de saltos, rupturas e descontinuidades. O gesto político do comandante das tropas farroupilhas deu vazão a um turbilhão político que até hoje pode mudar a correlação de forças no estado mais ao sul do Brasil.

Não há condições de aqui fazermos um debate histórico profundo, mas, algumas referências têm de ser citadas. A proclamação da República libera sentimentos e alianças diretamente relacionadas à formação política e étnica dos territórios lindeiros ao Rio Grande. Esta parte da história, além de não ser reivindicada pelos altos conselheiros do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), tampouco será visto na minissérie global “A casa das sete mulheres”.

As fronteiras atuais do país com a ex-província Cisplatina foram demarcadas somente em 1828. Os exércitos do Norte, comandados pelo general uruguaio Juan Antonio Lavalleja, tinham como meta a reconquista das Missões Orientais, território onde hoje se encontram os 7 Povos das Missões Guaranis (do lado oriental do Rio Uruguai). Conseguindo pouco mais que um empate militar, a delegação da Banda Oriental assina com o Império do Brasil o tratado de demarcação definitiva. Lembrando, isto aconteceu apenas sete anos antes da deflagração do conflito na Província de São Pedro.

Um outro fato do lado de lá da fronteira foi fundamental para os rumos da Guerra e da Revolução Farroupilha. Após a traição do caudilho Fructuoso Rivera, o cacicado dos povos Charruas e Minuanos aposta todas as suas chances históricas na República Rio-Grandense. Estas duas nações, constitutivas da pampa e do tipo humano do gaúcho original, tiveram participação estratégica no projeto político mais ambicioso da região em toda a sua história. Antes, haviam sido duplamente traídas. Primeiro durante a chamada Gesta Artiguista, ou segundo o seu nome mais político, na Liga Federal dos Povos Livres.

O próprio ex-capitão dos Blandengues, José Gervasio Artigas fora traído pelo patriciado de Montevidéu, cuja aliança com os comerciantes centralistas do porto de Buenos Aires, provocara seu banimento e exílio para o Paraguai. O grosso de sua cavalaria era composto pelos ginetes charruas, exímios lanceiros dotados de um senso de organização composto por conselheiros e chefes militares eleitos. A segunda traição foi realizada pelo Brigadeiro Rivera, homem leal aos interesses imperiais portugueses na pampa. Este chefe político e militar, no Uruguai recém independente, convocou os caciques para uma trégua. No local marcado, suas tropas preparam uma emboscada, dando vazão a um dos maiores genocídios da história da América Latina.

Os sobreviventes do massacre de Rivera cruzaram a fronteira ainda viva, rumando ao norte. Poucos anos depois, se somam na tropa republicana. A composição étnica do exército farroupilha reflete os anseios dos mais oprimidos. Quando da guerra, de cada três peões-soldadoss farrapos, um era negro ou indígena. A identidade da Pátria Grande não pára aí O próprio idioma falado, era muito mais parecido ao portunhol, ou dialeto bajano, ainda existente nos mais de mil quilômetros da fronteira com o Uruguai. O português era a língua franca dos negros e de somente parte da oficialidade-estancieira. Além do portunhol, os idiomas indígenas (charrua, minuano, guarani e tape) eram correntes na tropa e nos acampamentos farrapos.

A outra identidade olvidada é a dos afro-descendentes, cuja expressão bélica foi o esquadrão de cavalaria dos lanceiros negros. Comandados pelo oficial republicano e abolicionista Joaquim Teixeira Nunes, o Gavião, a rendição incondicional dos negros em armas foi exigência de Osório e Lima e Silva para o acordo de paz. Outra vez traídos pelos escravagistas mais preocupados com o preço do charque do que com as instituições republicanas, a derrota se consuma na “batalha” dos Porongos. Nesta localidade, o corpo de Lanceiros Negros foi dizimado, sem armas, surpreendidos pelo abandono da posição defensiva de David Canabarro. Este seguira a orientação de “diplomatas” gaúchos como Vicente da Fontoura, o mesmo que assinara o “tratado” de Ponche Verde pelas costas, criando o fato consumado da “derrota honrosa”.

Aprofundando-nos além dos episódios pontuais, vemos na história esquecida justamente a identidade política que não se quer deixar circular. A presença de negros e indígenas foi fundamental para o ambicioso projeto federalista comandado por Artigas, congregando as Províncias Unidas do Prata sob a estrutura política da Liga Federal dos Povos Livres.

Avançadíssimo para seu tempo, o programa era embasado em uma grande mobilização de massas, abolicionista e com reforma agrária incluindo as nações indígenas e os afro-descendentes. A extensão da Liga englobava as hoje províncias argentinas de Corrientes, Entre Ríos, Paraná, Misiones, a totalidade do Uruguai, partes do Paraguai e mais de um terço do atual território gaúcho. A expressão nativa e africana não constituía a bucha de canhão das guerras, como foi o caso do exército brasileiro e antes das bandeiras de São Paulo. Mas sim o próprio Estado-Maior da Liga Federal, e particularmente dos conselheiros de Artigas.

Recuperar o debate da presença indígena e negra no seio do maior Movimento de cultura nativa e regional do Brasil, o MTG, é essencial para o resgate da ala liberal-radical da República Rio-Grandense, de orientação federalista e contra a escravidão. De tão polêmico e perigoso, o assunto é simplesmente ignorado pela grande mídia local. Isto porque, refletindo a moldura institucional da oligarquia gaúcha, aliada aos grandes capitais (locais, nacionais e transnacionais), os quatro maiores grupos de mídia do Rio Grande do sul não podem permitir vazar um sentimento desta ordem no grosso da população.

Em um mundo globalizado, disputar as raízes da própria história não é pouca coisa. Para um país como o Brasil, cujo controle da comunicação reflete o domínio de enclave de alguns quarteirões do Rio de Janeiro e de São Paulo, o assunto pode ser o pano de fundo para um novo pacto federativo. Ganhando substância, como a renegociação ou moratória da dívida do Rio Grande, a memória pode virar munição para virar uma conjuntura morna e sem interesses estratégicos de fundo.

No ano que cumprimos 250 anos do martírio do cacique guarani Sepé Tiaraju, uma leitura substancial da epopéia Farroupilha é necessária. Esta Revolução gaúcha, mesmo com todas as suas contradições e mazelas, teve cara, cor e cheiro dos povos constitutivos deste pedaço de mundo. Esta identidade, caso seja resgatada pelos seus próprios protagonistas, pode reescrever a história do Rio Grande nas próximas décadas.

Artigo originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat






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