3ª, 5 de setembro de 2006, Vila Setembrina dos Farrapos, Continente de São Sepé
A menos de 30 dias do primeiro turno, escutamos por todos os lados a mesma reclamação. A de estarmos acompanhando uma corrida eleitoral com recursos de marketing diminutos e ausentes de conteúdo. Ou seja, mesmo com cenário reduzido, a teatralização segue igual.
Durante a ditadura militar, quanto mais se reprimia, mais fantásticas eram as telenovelas da emissora líder. Na democracia minimalista brasileira, a fábula perde de goleada para a realidade. Assim, o horário eleitoral e a campanha midiática, recobram em mesmice e desmagnetizam a capacidade de exercício de mando do povo. Conforme é de sabedoria do senso comum, não vale um tostão furado os programas de governo apresentados para o Planalto e menos ainda para os governos estaduais. Apresentando plataformas e programas de faz de conta, as candidaturas apostam no pensamento mágico e na empatia para arrecadar os votos. Não funciona mais assim, nem aqui nem em rincão algum de nossa América Latina.
Na maioria das vezes, a classe política nacional, muito zelosa de si, insiste em olhar para o Norte, mirando nos países de capitalismo desenvolvido como uma sorte de tipo-ideal. Olhassem ao sul do muro que separa o deserto de Sonora e a Baixa Califórnia da antiga terra de Aztlán, dominada e revendida na guerra com otados Unidos em 1848, e poderiam enxergar melhor aquilo que por aqui ninguém quer ver. Sim, estamos tratando da República Mexicana e da crise que encerrara a hegemonia do Partido Revolucionário Institucional (PRI), após 70 anos de poder contínuo.
No auge desta crise, sobre os escombros das investigações da Procuradoria Geral da República (PGR), dos agentes de serviços do PRI e os enlaces com o Cartel do Golfo, chegou a um momento que nenhuma pessoa sem acesso às informações sigilosas poderia compreender o que realmente se passava entre os mandatários do país. Raúl Salinas de Gortari, irmão mais velho do então presidente Carlos Salinas de Gortari, foi preso acusado de ser o executor de seu ex-cunhado, José Francisco Ruiz Massieu, assassinado em maio de 1994. Passados pouco mais de dez anos, outro irmão da trágica família, este de nome Enrique, foi encontrado morto com um saco plástico asfixiando-o. Passados mais três meses, Raúl sai da cadeia e termina inocentado do crime contra Massieu.
Infiltrações sem fim, cortinas de fumaça e corrupção a descoberto. A sociedade mexicana, atônita, compreendia não ter os instrumentos para poder analisar a política de seu país com base no jogo real. Simultaneamente, o EZLN lança ofensiva contra o “mau governo” que assinava o Tratado de Livre Comércio (Nafta) e o novo governo estabelece as bases para o controle externo na Petróleos Mexicanos (Pemex), transformando-a em “paraestatal”. Vale lembrar que os grupos de poder na interna do PRI quebraram seus acordos de procedimentos e literalmente, passaram a se matar. Massieu não foi o único assassinato público, incluindo também a morte de Luis Donaldo Colosio.
No meio da tormenta, com bombardeios midiáticos por todos lados, mesmo os mais bem informados se viram perdidos. Exercendo humor refinado, o escritor e prêmio Nobel de literatura, Octavio Paz, ainda em 1994, de forma muito solene declarara:
-“Em meu país, a realidade superou completamente a ficção!”
No México, de trajetórias e biografias tão admiráveis de Ricardo Flores Magón, ninguém meteu a mão na cumbuca fecal e tudo ficou como estava. Garantida a transição pacífica, com um último suspiro priista no governo de Ernesto Zedillo, houve câmbio no modus operandi e no setor político mandatário. Ainda assim, as relações estruturais seguiram as mesmas. Hoje quem é acusado de fraudar eleições é o Partido de Ação Nacional (PAN), garantindo a Felipe Calderón como sucessor de Vicente Fox.
No Brasil, de vidas também tão admiráveis como a de Joaquim Teixeira Nunes, os escândalos de 2005 revelaram a vocação da classe política brasileira em igualar-se por baixo. O grande público, sem estar de posse das informações estratégicas e dos jogos de poder imbricados, terminou por assistir a tudo como uma grande telenovela. Mais atraente, complexa e repugnante. O giro da comparação com a realidade mexicana, onde os fantasmas de Massieu e Enrique Salinas de Gortari ainda pululam é um intento de chamar a atenção para nossa própria realidade e condição de fazer política.
A trilogia de artigos, conclui agora algo que seria uma oferta de ferramentaria de análise política. Sinceramente, muito gostaria de discutir a fundo as parcelas de poder real que são passiveis da decisão da maioria e as correlações de força necessárias para alcançarmos estas metas. Mas, reconheço, o senso de realismo me obrigou a girar o eixo do debate. Preferi apontar o exemplo mexicano para os leitores poderem ver como somos parecidos com os demais paises que co-habitam este pedaço de mundo invadido por Colombo, Cabral, Cortez e Pizarro.
Se os candidatos se dignassem a falar serio e não de forma tragicômica, apresentaria aqui um debate de fôlego. Uma vez que este tema não tem eco, me parece mais prudente atiçar a memória do eleitor, comparando o Brasil de 2005 com o México de 1994. Fossem outras as condições de organização do povo brasileiro, e a classe política se veria ameaçada em sua própria condição de elite especializada. Como a ex-esquerda igualou-se a velha direita, ajudando a desorganizar a esquerda na sociedade, este jogo de 1º de outubro já tem vitorioso.
Adoraria debater idéias e propostas de regulação social das concessões públicas para usufruto da maioria dos brasileiros; de orientação para o bem comum da política econômica; de uma economia política em escala, aumentando nosso grau de soberania e autodeterminação; da implantação de uma rede de infra-estrutura micro-regionalizada e adaptada às condições dos biomas do país; e de urgentes políticas públicas de inclusão e treinamento para nossos milhões de jovens atingidos pelo sub-emprego estrutural.
É duro admitir, mas o atual modelo de Estado neoliberal não é para isto. Os recursos dragados pelo botim impositivo escoam pelo ralo, alimentando os serviços da dívida e aumentando o capital de quem já tem o bastante para, em tese e noutras, se autofinanciar. O debate de fundo é de modelo e não de palanque. Portanto os atores que contam tem duas falas, uma pública e outra oculta. Sendo assim, a fala de coxia é a válida, o resto, bem o resto é apenas o resto.
Já que tomei a ousadia de comparar as mazelas político-criminais de Brasil e México, faltou apenas um detalhe. A fala vazia dos candidatos está há anos luz de distância das esquetes de cômicos profissionais e de talento. O palanque como está se aproxima de um falso picadeiro.
Sendo assim, era preferível ver atores realmente populares, tais como Cantinflas e Oscarito.
Artigo originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat