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Democracy Now! em Português
a coluna semanal de Amy Goodman traduzida para o português

04 de setembro de 2010, coluna semanal de Amy Goodman

V Day

V Day é uma bela iniciativa, ajudando a reconstruir a história e o protagonismo das mulheres em lugares onde existam opressões permanentes

Eve Ensler: calva, valente e bela

Calva, valente e formosa: palavras que mal dão para começar a captar a extraordinária Eve Ensler, a mulher que se sentou ao meu lado na semana passada, no meio de sua batalha contra o câncer de útero, para falar de Nova Orleans (no estado da Louisiana, EUA) e da República Democrática do Congo. Ela é autora da conhecida obra de teatro “Monólogos da Vagina” e criadora de Dia V, um movimento ativista mundial para deter a violência contra mulheres e meninas. Eve me contou como “o câncer tem sido um enorme presente”.

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O emotivo ensaio de Eve “Congo Câncer”, publicado no jornal londrino The Guardian começa dizendo: “Algumas pessoas podem pensar que é possível que uma mulher se deprima quando tem diagnosticado câncer de útero, depois sofre uma importante cirurgia que a leva a sofrer um mês de infecções debilitantes para ser seguida depois com meses de quimioterapia; mas a verdade é esse não foi meu veneno. Não é esta a sensação que vem batendo dentro de mim noite adentro e me mantém acordada e disposta. Não é esta a razão que me empurra a momentos de insuportável escuridão e depressão.” Seu veneno, afirma Ensler no ensaio, foi a epidemia de abusos sexuais, torturas e violência contra mulheres e meninas na região oriental da República Democrática do Congo.

Eve, que escreveu “Monólogos da Vagina” em 1996 como uma forma de celebrar o corpo da mulher e o empoderamento feminino, conta: “Durante os primeiros tempos da obra e em todos os lugares do planeta aos que ia, as mulheres literalmente faziam fila após a peça. No começo pensei: que bom, elas vêm me contar a respeito de seus maravilhosos orgasmos e suas excelentes vidas sexuais, vou poder agregar esses relatos na obra. Mas, de fato, 90 ou 95 por cento das mulheres faziam fila para contar-me que tinham sido vítimas de violação, maus tratos, incesto ou abuso. Claro que antes eu já sabia que existe violência contra a mulher, eu mesma sou sobrevivente de violação e maus tratos, mas não tinha idéia de que essas violências tivessem as proporções de uma epidemia. Não tinha idéia de que, e estas são cifras estatísticas da ONU, uma de cada três mulheres no planeta é violada e espancadas, como sofreram de abuso ou incesto durante sua vida. De repente, essa porta abriu-se para mim.”

Foi então que Ensler começou a produzir a obra com o objetivo de arrecadar fundos para a criação de linhas telefônicas de emergência no apoio a mulheres em situações de risco a situações de crise por violação e para diversas organizações de mulheres nos Estados Unidos. “Ocorreu-nos a idéia de fundar o Dia V que pode ter dois significados. Tanto pode significar ‘Dia para terminar com a Violência’, como também é o ‘Dia da Vagina’ e que reivindica que o Dia de São Valentim (obs. do tradutor: esta data é conhecida no Brasil como o Dia dos namorados) seja uma data de amabilidade e boa vontade para com as mulheres. Começamos com uma produção da peça de ‘Monólogos da Vagina’ em Nova York, quando participaram atrizes consagradas como Whoopi Goldberg, Susan Sarandon e Glenn Close. Essa noite foi como um catalisador, simplesmente deu impulso a este movimento, e isso já faz treze anos. Agora estamos presentes em 130 países. No ano passado tivemos 5000 eventos em 1500 ou 1600 lugares. Arrecadaram-se cerca de USd. 80 milhões de dólares, que foram totalmente destinados a iniciativas de caráter local e comunitário.”

O movimento Dia V levou Eve a alguns dos lugares com situações mais graves na Terra: Haiti, a República Democrática do Congo e a Nova Orleans após a passagem do Furacão Katrina. Eve passou um ano com mulheres de Nova Orleans, recopilando, em uma série de monólogos, as descrições que as mulheres davam de suas vidas e do impacto do Furacão Katrina. Esta recopilação chama-se “Nadando contra a corrente”. Incrivelmente, em plena quimioterapia, Eve vai dirigir duas seções especiais em meados de setembro, na própria cidade de Nova Orleans e no Teatro Apollo do bairro do Harlem em Nova York.

O Congo Oriental, uma região devastada pela guerra no país mais empobrecido do mundo, é onde Eve Ensler e Dia V têm dedicado a maior parte de seus esforços mais recentes. Desde 1996, centenas de milhares de mulheres e meninas têm sido violadas na região oriental da República Democrática do Congo, vítimas do que Dia V chama de “feminicídio.” No mês passado, rebeldes de Ruanda e do Congo tomaram populações desta região do país e violentaram um grupo de quase duzentas mulheres e cinco meninos. As violações múltiplas ocorreram entre o dia 30 de julho e 3 de agosto, a poucos quilômetros de uma missão de paz da ONU e foram denunciadas passadas três semanas desta violência em massa.

Estas violações são brutais, deixam as vítimas com feridas profundas e feridas internas (fístulas) que requerem cirurgia. O Movimento Dia V tem trabalhado conjuntamente com o Hospital Panzi de Bukavu, a única instituição médica da região onde as mulheres podem receber tratamento médico adequado. Ao lado deste hospital, o Dia V está construindo uma zona segura controlada por mulheres chamada “A Cidade da Alegria”.

Eve afirma que foram as próprias mulheres quem desenvolveram o planejamento da Cidade da Alegria: “Passamos meses e meses com mulheres do Congo, fazendo entrevistas, falando com elas a respeito de quais eram seus maiores anseios, o que mais precisavam e, todas falavam de um lugar onde pudessem se curar, um lugar sadio, para treinar, se converter em líderes, onde pudessem desfrutar de tempo e poder respirar para reconstruírem-se a elas mesmas e reorientar as energias para suas comunidades.” Se tudo ocorrer bem com seu próprio tratamento, Eve vai se unir a elas, em fevereiro próximo, para a abertura da Cidade da Alegria.

O trabalho do Movimento Dia V, segundo me disse Eve, define o que ela chama “um tipo de V de três vias entre Haiti, Congo e Nova Orleans” e, vai além na explicação: “As pessoas fazem coisas de maneira inconsciente e somos levadas a certos lugares inconscientemente, é então quando nos damos conta de que existem todas estas interconexões assombrosas. Quando estava em Nova Orleans e trabalhávamos no ‘Dia V a todo vapor’ falávamos a respeito de onde íríamos pôr em cena essa enorme mostra e me disseram que eu tinha de ir ver a Praça Congo, um pouco surpreendida lhes perguntei se em verdade existia um lugar chamado Praça Congo em Nova Orleans; e de fato a Praça Congo era o lugar a onde os escravos iam nos fins de semana para reivindicar sua herança originária. A maioria dos escravos que chegaram a Nova Orleans proviam do Congo. Isto foi, e é, uma espantosa conexão. Claro que também estamos agora trabalhando no Haiti e vemos este tipo de V de três vias entre Haiti, Congo e Nova Orleans. Foi então, uma vez que tínhamos feito tudo isso, que tínhamos trazido ativistas a Nova Orleáns no ano passado, ao doutor Mukwege do Hospital Panza, a quem rendemos homenagem nesse grande evento, e a Christine Schuler Deschryver. Ao estar ao lado do doutor Mukwege, que é um dos grandes médicos e líderes do Congo, e também realizar a marcha, acompanhados de Mukwege, desde a Praça Congo até o estádio Superdome, compreendi de que maneira o mundo se encontra tão profundamente interconectado. Nossa história vai criando um futuro que, se não pesquisamos a história, faz que continuemos com o mesmo tipo de opressão e colonialismo, de violação e destruição que continuam hoje no Congo, em Haiti e em Nova Orleans.”

Com um lenço na cabeça depois de ter perdido seu cabelo durante os tratamentos contra o câncer, Eve Ensler está a dias de começar sua quarta sessão de quimioterapia. Perguntei como ela faz tudo isso:

“As mulheres do Congo me salvaram a vida. Todos os dias me levanto e penso comigo mesma: posso seguir em frente. Se uma mulher no Congo se levantou esta manhã após ter uma parte de seus órgãos internos extirpados, penso: diante da vida das mulheres congolesas, quais são os reais problemas que tenho? E depois penso como estas mulheres dançam. A cada vez que vou ao Congo, dançam e cantam e seguem adiante apesar de ter sido esquecidas e abandonadas pelo mundo. E penso que tenho que melhorar a mim mesma, que tenho que viver para ver o dia em que as mulheres do Congo sejam livres, porque se essas mulheres são livres, as mulheres de todo mundo seremos livres e seguiremos adiante.”

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Denis Moynihan colaborou na produção jornalística desta coluna.

© 2010 Amy Goodman

Texto traduzido do castelhano e revisado do original em inglês por Bruno Lima Rocha, blimarocha@gmail.com ; originalmente publicado em português em Estratégia & Análise

Amy Goodman é a âncora de Democracy Now!, um noticiário internacional transmitido diariamente em mais de 550 emissoras de rádio e televisão em inglês e em mais de 250 em espanhol. É co-autora do livro "Os que lutam contra o sistema: Heróis ordinários em tempos extraordinários nos Estados Unidos", editado por Le Monde Diplomatique Cono Sur.






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