SOBRE A LAVAJATO, PROPINOCRACIA E A PRETENSÃO DE ALGUNS PROCURADORES FEDERAIS
Realmente a impressão que dá, é a convicção dos jovens procuradores de terem sido eleitos, através de concurso público, para uma missão renovadora republicana. A impressão é justo o oposto, passando a percepção de abuso de poder. Pois, cabe perguntar: - Quem votou nos procuradores federais para promoverem uma reforma constitucional, a ponto de inventar um termo que define conceitualmente a forma de governo de fato no Brasil?
No intento de afirmar um posicionamento analítico e normativo, é necessário um esforço de assertivas. Começo afirmando que, sim, entendo que houve corrupção estrutural com Lula, José Dirceu, Vaccari e cia. E, sim, houve certa continuidade entre o Mensalão e os esquemas de propina da Petrobrás. Obviamente que isso não se constitui em uma conspiração de primeiro escalão, para criar uma forma de governo e seguir à frente do Poder Executivo de forma ilícita;
Já a tal da "Propinocracia" não é uma evidência de modus operandi mesclado com modus vivendi. O que o procurador Deltan Dallagnol pronunciou ao vivo em Curitiba, no meu entendimento, é uma ópera político midiática, que de jurídica tem pouco e de ciência política nada! Porque, sejamos francos. Se houve tamanha corrupção estrutural, logo o primeiro escalão do governo de coalizão estava involucrado, sendo beneficiado, ou minimamente fazendo vista grossa. Se há acusação formal contra o lulismo, o aliado e vice-presidente Michel Temer também estaria involucrado, mesmo que o fosse de forma indireta.
Racionalmente me parece impossível afirmar com segurança a correção absoluta do primeiro escalão do partido de governo deposto. Logo, se os dirigentes petistas sim se beneficiaram, o fizeram em uma escala semelhante ou inferior dos partidos de governo das coalizões anteriores. Afirmar que houve uma exceção no período lulista é um absurdo. Não há excepcionalidade, e sim variação do modelo de acumulação.
Ao mesmo tempo que as baterias estão voltadas contra o PT, o inverso também é verdadeiro. O fato das delações que implicam em dirigentes tucanos não serem transformadas em acórdãos de delação premiada é uma evidência da punitividade seletiva e da exposição midiática cuidadosamente censurada.
No interior do aparelho de Estado temos um problema enorme. Procuradores, magistrados e delegados de alçada federal estão passando dos limites, se transformando em uma nova tecnocracia com ambições próprias e ideologicamente alinhadas com o liberalismo como forma ideal de governo e desenho do Estado. Equivalem aos kemalistas, "jovens turcos" do liberalismo, uma camada tecnocrática, afirmando o próprio mérito e fazendo uma cruzada seletiva no Brasil.
Do ponto de vista político temos um problema ainda maior. Entendo que se houve um crime do PT, este é político. Cometeram um crime com a esquerda brasileira como um todo, ao expor a maioria de nosso povo a esta condição vexatória de se imiscuir com o inimigo, andar ao lado do inimigo, viver como o inimigo, mesclar-se com o inimigo e terminar "traído" pelo ex-inimigo de classe, oligarca, racista e pró EUA. Quem traiu quem? Quem se corrompe ao ficar semelhante aos inimigos do povo? Ou quem se aliou com a ex-esquerda por conveniência, e a abandona por convicção?
LULA E SEU LABIRINTO
Durante a fala, defesa pública e fala com a mídia realizada por Lula na tarde de 15 de setembro, fui recortando pedaços de seu discurso e realizando um debate mais estrutural. Entendo que a síntese da crise política brasileira se baseia no seguinte conflito: a oligarquia se aliou com a ex-esquerda por conveniência e com esta rompeu por convicção. O inverso também é verdadeiro. O outrora partido legítimo, oriundo das lutas populares brasileiras no período da Abertura e Transição, torna-se uma legenda pragmática, visando o exercício do Poder Executivo para promover melhorias materiais sem avanço ideológico ou organizativo das classes populares e subalternas. Assim, a aliança com a oligarquia e o empresariado nacional, liderado este movimento por Lula e o PT, foi feita por convicção. E sua ruptura, se deu não pela vontade do partido de governo, mas por determinações de forças que compunham a própria aliança, a começar pelo próprio vice presidente reeleito.
Vejamos alguns trechos da fala do ex presidente. Podemos começar pela caracterização sua da aliança de classes. Lula afirmou o lucro das empresas e a ampliação da rede bancária, facilitando acesso ao sistema financeiro e por consequência, também para a bolha de crédito. Ao reproduzir esta fala, não “acuso” Lula de nada, apenas constato que esta aliança não tinha um fiador, algo que assegurasse a lealdade de setores que têm da deslealdade e na política de ocasião sei acionar por excelência.
Ao defender as instituições e a institucionalidade, Lula aparenta praticar um sistema de crenças inquebrável nas bases do Estado burguês e pós-colonial. Sinceramente, parece crer mais do que a própria burguesia brasileira ou as tecnocracias de carreira no Estado. Mesmo sabendo que o discurso político passa também por uma capacidade interpretativa, o ex presidente por vezes exagera. Ao pedir “compreensão aos meninos de Curitiba”, parece desconhecer ou menosprezar a presunção e arrogância dos jovens profissionais concursados, a missão auto imbuída de “limpar” o Brasil, e também a noção difusa de racismo de classe, como precisamente caracteriza Jessé Souza.
Lula também se comparou a Lech Walesa. Sinceramente, conforta a comparação pois por mais de uma década eu a fiz e quando a publicava, era severamente ofendido pelos seguidores de Lula e correligionários. Walesa também foi um sindicalista que não compartia ideias de combate de classes embora tivesse hábitos incorporados da classe trabalhadora polonesa. Terminou alinhando-se muito mais à direita do que Lula, e no ostracismo político. Com Lula não há ostracismo, até porque a direita que não fez parte do governo de coalizão e os oligarcas que o traíram, jamais permitirão que o ex presidente tenha paz.
APONTANDO CONCLUSÕES: UM ESFORÇO DE CATEGORIZAÇÃO POLÍTICA NESTA CRISE
Como analista normativamente vinculado bem à esquerda do espectro político, cabe a tarefa permanente de categorização desta crise política. Categorizar é sempre mais um esforço de demarcar os campos. Vejamos. Sim, estamos diante de um golpe parlamentar, onde a frágil soberania popular está sendo ludibriada. No epicentro deste processo, a “república de Curitiba”, capitaneada por magistrados, procuradores, delegados e auditores com pretensões próprias de poder e desenho de Estado. E, ainda assim, não podemos confundir os níveis. Lula não é um militante de esquerda e majoritariamente seu partido tampouco. Isso não invalida a tese do golpe e menos ainda a resistência a este golpe.
Repito novamente. Todos conhecemos centenas de petistas que pensam ao contrário do que afirmamos acima e não estão "sujos". Discordo deles e delas, mas respeito suas posições por desejarem o melhor para a maioria. Respeito não é condescendência. Discordo profunda e estrategicamente, pois estas posições se encontram muito distantes daquelas que, organizadamente, eles mesmos a abandonaram, logo após a derrota eleitoral no final da década de '80. Mesmo não compartilhando a tese do reformismo radical (abandonada pelo PT já na década de ’90), seria incorreto não reconhecer esta legitimidade de outrora. Na conjuntura atual, separar as categorias é quase como um manual de sobrevivência política.
Logo, as posições vêm com relativa autonomia. Estar contra o golpe não significa aderir à defesa de Lula, Dilma e cia. Isto porque estar contra o golpe e mais à esquerda implica em lutar pela manutenção e ampliação dos direitos coletivos, assim como aprofundar o alinhamento do país com a América Latina e as relações Sul-Sul. Ou seja, ir contra o viralatismo, o entreguismo, os imperialistas e toda uma camada dirigente e dominante composta por mentalidade de colonizados.
Enfim, é possível estar contra o golpe sem reboquismo, sem política de mal menor, e tampouco aderir ao lulismo.