Os Jogos Olímpicos da distopia midiática e o “caos urbano” no Rio
Vivemos as Olimpíadas no auge de um anticlímax político, econômico e social. É como que ao fim de uma realidade fabricada, despertássemos todos diante do anunciado pesadelo da quebra do pacto de classes. Mais do mesmo, os conglomerados econômico-midiáticos que venderam a ilusão, agora vendem a resiliência, ao invés da realidade. Lembremos.
Quando no longínquo ano de 2007, o Rio de Janeiro sediou os Jogos Panamericanos, o país vivia um ambiente político diferente. O estado fluminense era governado pelo ex-tucano Sérgio Cabral Filho, homem vinculado a grupos empresariais arrivistas no período lulista, como a Delta Engenharia e o Grupo X, de Eike Batista. Como base da aliança de governo de Cabral Filho, a presença do PT local e a pavimentação da aliança com a legenda de Michel Temer. As realizações do Rio vieram acompanhadas do lado mais bárbaro e sinistro do Estado pós-colonial brasileiro. Nos meses anteriores ao Pan, que quebrara recordes de superfaturamento nas obras e contratos emergenciais, o número de mortos pela ação violenta da Polícia Militar ultrapassara os do Iraque em plena guerra civil. Uma parte razoável destes dados macabros à época podem ser conferidos no domínio Rio Body Count 2 (http://riobodycount2.blogspot.com.br/).
Em outubro de 2009, se verificarmos as imagens registradas na 121ª sessão do Comitê Olímpico Internacional, veremos discursos do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a presença do prefeito Eduardo Paes (o mesmo, já no PMDB), do governador Sérgio Cabral Filho, à época presidente do Banco Central e hoje ministro da Fazenda do governo interino-golpista Henrique Meirelles, e do então ministro do Esporte, Orlando Silva, hoje deputado federal pelo PC do B de São Paulo. Esta representação da aliança entre a centro-esquerda, oligarcas e financistas marcou o segundo mandato de Lula e a eleição da sucessora do ex-sindicalista, em outubro de 2010.
Logo após a primeira eleição de Dilma e Temer, o país assistiu a um espetáculo midiático chamado “A Guerra do Rio”, com as câmaras de TV projetando a ocupação do Complexo do Alemão, iniciando com a fuga de traficantes da Vila Cruzeiro, transmitida ao vivo pelas redes de TV líderes (neste link é possível compreender o momento: https://www.youtube.com/watch?v=PDPMPesOaQg). O impacto de ver centenas de homens armados de forma ilegal, em plena luz do dia, dá uma impressão de excepcionalidade. Longe disso, pois se trata simplesmente do cotidiano vivido por mais de três milhões de pessoas apenas da Região Metropolitana do Rio. A “exceção” não é o fato, e sim a transmissão.
Com o acionar coordenado de mídia, tecnocratas do mundo jurídico-policial e agências de marketing digital a serviço dos ultra liberais, a frágil aliança de classes entre ex-reformistas, oligarcas, industriais e financistas foi rompida. Junto desta, podem estar indo para o ralo, tanto a diminuta soberania popular, assim como a maioria de nossos direitos trabalhistas e sociais. Eis as Olimpíadas da distopia.
Apesar do bom desempenho, ainda não temos um modelo de desenvolvimento esportivo
Antes de escrever estas linhas e durante a exibição das Olimpíadas, as quais acompanhei com intensidade, revisei meus escritos a respeito do mesmo tema. A ausência do Estado na promoção do esporte escolar como base para o desenvolvimento olímpico nacional. Ou seja, buscando incessantemente as estruturas de Estado como garantidoras do direito ao esporte como parte fundamental da cidadania, especialmente como parte do direito à infância e a adolescência. Se formos levar em conta este absurdo e os poucos centros de excelência para o desenvolvimento esportivo brasileiro, veremos que os “resultados” em termos de competição, resultam em verdadeiro “milagre” nacional.
O Brasil fechou sua posição nos Jogos do Rio em 13º – mesmo levando em conta o absurdo que é a contabilidade de ouros coletivos como equivalentes a ouros individuais. À frente do país estão, em ordem decrescente, EUA, Grã Bretanha, China, Rússia (desfalcada do atletismo), Alemanha, Japão, França, Coréia do Sul, Itália, Austrália, Holanda e Hungria. Nas sete posições abaixo do Brasil estão, Espanha, Quênia, Jamaica, Croácia, Cuba, Nova Zelândia e Canadá. Nas dez posições sequentes estão: Uzbequistão, Cazaquistão, Colômbia, Suíça, Irã, Grécia, Argentina, Dinamarca, Suécia e África do Sul; nas posições de 31ª a 40ª, estão: Ucrânia, Sérvia, Polônia, Coréia do Norte, Bélgica, Tailândia, Eslováquia, Geórgia, Azerbaijão e Bielorússia. Assim, dentre os 40 primeiros países, verificamos sete Estados nacionais sem modelo de desenvolvimento desportivo, sendo estes: Brasil, Quênia, Jamaica, Colômbia, Argentina, África do Sul e Tailândia. Como o que vale para o Comitê Olímpico Internacional (COI) é o número de medalhas de ouro, alguns países, como Jamaica e Quênia, se especializam em determinadas modalidades ou provas específicas de atletismo e a partir desta base modelam seu desempenho. Proporcionalmente em termos de recursos, instalações e número de praticantes de base, o Brasil foi muito bem, dentro das quadras, deixando para o momento posterior a mesma situação de incerteza e desespero fora dos locais de competição.
O mérito para tais resultados vêm das políticas de alto rendimento (incluindo a polêmica dos atletas “militares”, da abnegação de atletas dedicando-se ao profissionalismo e dos raros exemplos de confederações que têm centros de excelência, ligas profissionais e planejamento. Como modelo fechado, neste sentido, temos apenas a Confederação Brasileira de Voleibol (CBV), não sendo à toa a presença do cartola Carlos Arthur Nuzman na Presidência do Comitê Olímpico Brasileiro e que um dos seus dois sucessores na CBV , Ary Graça Filho, ocupe a Presidência da Federação Internacional de Voleibol (FIVB).
Sendo a CBV o modelo para o desenvolvimento de modalidades olímpicas no país, ressaltando que os esportes coletivos têm outra dinâmica dos individuais (como por exemplo, a necessidade de tipos e atributos físicos pré-condicionados para os coletivos), nota-se que o desporto se desenvolve apesar da ausência do Estado como formulador e implantando as políticas necessárias.
O ciclo de qualquer modalidade com ambições olímpicas é difusão, participação e competição (o que na gíria denomina-se no amadorismo ou nas divisões inferiores como “atleta federado”); partindo dos resultados desta última selecionam-se o alto rendimento e daí os programas de incentivo e permanência no desempenho ranqueado internacionalmente. Sem esta base, fazer do esporte brasileiro um direito de todas e todos é simplesmente uma missão em vida de treinadores abnegados, como o técnico de boxe da comunidade do Vidigal – zona sul do Rio de Janeiro -, Raff Giglio. De seu projeto, além das centenas de crianças que atendem aos treinamentos ao longo de mais de duas décadas, saiu um medalhista olímpico e outros dois selecionados em 2016. Já o aluguel de seu ginásio, após haver sido despejado, é pago com o mecenato de um ator global! Histórias como estas e absurdos institucionais correspondentes, mais que justificam o choro e a raiva de atletas de alto rendimento e os técnicos de base.
Apontando duas conclusões
Aponto, por fim duas conclusões deste texto. A primeira aponta para a injustiça estrutural da mancha urbana do Rio como um espelho das distorções do país. Cada cidade brasileira e sua correspondente Região Metropolitana; acostumaram a organizar grandes eventos e trabalhar com a possibilidade de atração turística sem com isso modificar a injustiça e a pobreza espacialmente dividida.
Já o modelo do esporte de base, ou pior, a ausência deste, simplesmente exaure as forças dos difusores das modalidades desportivas. Como resultado, além das narrativas típicas do capitalismo, onde se destacam os empenhos e valores individuais de superação, temos mais do mesmo. O Estado opera como modelo de acumulação e também atende, parcialmente, a alguns direitos sociais, todos incompletos. Como o direito ao esporte, infelizmente, trata-se do mesmo abandono e injustiça estrutural.