A origem da violência popular contra a classe política se manifesta como ódio de classe com a Rebelião do Caracazo, em 1989. - Foto:wiki
A origem da violência popular contra a classe política se manifesta como ódio de classe com a Rebelião do Caracazo, em 1989.
Foto:wiki

28 de maio de 2009, Bruno Lima Rocha

“!Oligarcas temblad, Viva La Libertad!”

Em janeiro de 2009 pude conhecer Caracas e seu distrito metropolitano. Afirmo que viajei a trabalho e sem nenhum vínculo ou despesas pagas por governo algum. É importante reafirmar a condição da viagem porque, infelizmente, a capital do país de Simón Rodríguez e Ezequiel Zamora, está servindo de lugar de romaria para uma esquerda latino-americana carente de referenciais e recursos. Não é o caso dos anarquistas especifistas politicamente organizados, onde modestamente me incluo.

Uma das razões de ir à Venezuela foi conhecer o pensamento e ação libertários dentro do movimento bolivariano. Os objetivos foram cumpridos. Fizemos contato com valorosos companheiros, isolados internacionalmente e caluniados por uma ala esquálida que se diz libertária. Existem militantes anarquistas, nucleados em um pequeno grupo que se alinha com o especifismo, mas ainda se portando como grupo de afinidade, chamado de Teseracto Bolivariano Anarquista Salom Mesa (Teseracto). Este grupo se relaciona com dois referentes, veteranos militantes que dedicaram suas vidas à causa ácrata, embora por vezes de forma muito heterodoxa.

Falo especificamente de dois compas, Floreal Castilla e Maurício Torres. O primeiro começou no anarquismo ainda nos anos ’60, logo depois de se afastar do Movimento de Izquierda Revolucionaria (MIR-Venezuela), organização político-militar que pegou em armas nas montanhas do oeste. Já Maurício tem uma trajetória que inicia em 1983, sempre com muita dedicação. Torres foi expulso da escola de formação de professores e por quase vinte anos trabalhou de forma precarizada. Dentre várias atividades, tomou parte do levante cívico de 27 de novembro de 1992 (o de Hugo Chávez y Pancho Arias foi em 4 de fevereiro daquele ano), que tentou pela segunda vez depor o presidente corrupto Carlos Andrés Pérez.

O vínculo dos militantes do Teseracto, além de companheiros soltos em movimentos bastante combativos, com estes dois referentes vivos, assegura a continuidade da ideologia no país. A partir do início dos anos ’80, o anarquismo venezuelano tenta pôr a cabeça para fora dos círculos de idéias e difusão, mas com intentos de inserção social e ação direta. Não faltaram erros, mas sobrou generosidade política. A falta de modelos organizativos pode ter levado a vários equívocos, mas nunca o pior erro que um libertário pode cometer: a omissão política.
Após os dois levantes de 1992, a libertação dos insurretos em 1995 (incluindo o próprio Chávez, indultado pelo Congresso) e a eleição do tenente coronel pára-quedista, o país mudou. A radicalização política veio num crescente, tendo como auge, a tentativa de golpe midiático de abril de 2002. O morro desceu e a barriada não deixou a direita retomar o poder político. Nas ruas, de forma individual ou em pequenos grupos, estavam militantes hoje reconhecidos como anarquistas bolivarianos, levantando a bandeira negra e vermelha dentro das bases sociais mobilizadas. De comum os une uma definição de estar junto ao processo de câmbio, mas sem se alinhar como chavistas e nem ingressar na legenda oficial, o Partido Socialista Unido de Venezuela (PSUV).

O problema é expor essa posição sem consistir em uma alternativa política definida (como o especifismo) e com o ideal libertário contaminado pela desinformação. Construir esta alternativa política é a tarefa a qual todos temos de ajudar.

O anarquismo de tipo de gorila se complica e confunde ao seu redor

Em 1993, cai o presidente corrupto, e junto com ele, todo o sistema político instituído no Pacto de Punto Fijo (1958), onde Ação Democrática (AD, “adecos“), Copei (Democrata Cristão, “copeyanos”) e União Republicana Democrática (URD) se revezavam no poder. O acordão oligárquico e vende pátria fez com que a política na Venezuela fosse um jogo para poucos. Esse elitismo, também de corte intelectual, contaminou o comportamento de todas as esquerdas, incluindo suas alas extremas. O “anarquismo” não escapou desse mau.

Seria leviano omitir a existência de uma ala libertária com maior visibilidade mundial, mas que no seu país, marcha ao lado da direita oligárquica, cumprindo muitas vezes um papel de tropa de choque dos políticos profissionais derrotados pelo populismo. Esta vergonha não é exclusividade de “anarquistas” desorientados ou manipulados por intelectuais com trajetória de “adecos”. Outros grupos, como Bandera Roja (marxista com tradição de luta, inserção e mártires), hoje joga na 5ª coluna e alinha com as legendas da direita. Infelizmente, nada disso é novidade na América Latina.

A difícil tarefa de manter a independência política no contexto venezuelano

O que hoje ocorre na Venezuela, de uma parte do anarquismo se equivocar e considerar que o corte autoritário da liderança política impossibilita todo um processo de avançada popular – ainda em aberto – já se deu em outras conjunturas. O correto seria manter uma posição crítica, à esquerda do governo populista, e não alinhando com os golpistas financiados pela CIA. A organização Resistência Libertária da Argentina dos anos ‘70 e a extrema-esquerda chilena durante o governo Allende (MIR e MAPU, por exemplo) abriram um caminho onde se pode atuar de forma contundente sem ter posturas nem adesistas e nem anti-povo.

O pensamento libertário está presente numa parte das bases bolivarianas, especialmente nos movimentos de cunho autogestionários – a chamada esquerda social. Transformar este conjunto de idéias em pensamento e ação políticos é trabalhar num terreno fértil. Embora o processo venezuelano seja marcado por uma liderança carismática, a crítica da democracia representativa habilita a compreensão de que os líderes políticos devem estar sob comando das bases e a serviço das causas coletivas.

Dentro dessa lógica, identifiquei movimentos de luta onde os anarquistas têm espaço amplo para se inserirem, tais como: Anmcla, Misión Boves, Movimiento Campesino Ezequiel Zamora, nas esquerdas estudantis, em centenas de comunidades de base e no reconstituído movimento sindical. Se os compas venezuelanos trabalharem socialmente e tiverem afinco na construção política orgânica, em breve, as classes oprimidas da terra de Bolívar terão uma ferramenta de luta pelo socialismo e pela liberdade.

Observação: este artigo foi originalmente publicado na versão impressão do jornal Socialismo Libertário, órgão oficial de difusão do Fórum do Anarquismo Organizado (FAO), instância de coordenação nacional onde a FAG pertence.

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