Bruno Lima Rocha, da Vila Setembrina dos Farrapos; Continente dos valentes de Teixeira Nunes; Liga Federal de los Pueblos Libres del Sur – 06 de maio de 2009
Em 7 de fevereiro deste ano a Bolívia promulgou a sua nova Constituição. O referendo para aprovar ou refutar o texto, realizado em 25 de janeiro, teve o voto SIM de 61,5% dos eleitores. A carta magna espelha duas tendências. Uma, é o experimentalismo institucional. Outra, o fortalecimento do Poder Executivo através do presidente Evo Morales. Qualquer leitura superficial pode considerar a peça uma “aberração jurídica”. Eu afirmo o contrário. Fruto de uma luta interna de mais de uma década, este pode ser o marco jurídico para outra forma de vida em sociedade.
No segundo parágrafo do texto, já se espelha este anseio: O povo boliviano, de composição plural, desde a profundidade da história, inspirado nas lutas do passado, na sublevação indígena anticolonial, na independência, nas lutas populares de libertação, nas marchas indígenas, sociais e sindicais, nas guerras da água e de outubro, nas lutas pela terra e território, e com a memória de nossos mártires, construímos um novo Estado.
Além da poética entusiasta, o que há de novo e relevante nessa carta? Começo com a idéia de pluralismo jurídico, onde parte da vida em sociedade poderá ser regulada mediante o direito comunal, base jurídica do Estado composto por autogovernos. Na verdade, o texto constitucional reconhece no papel o que as sociedades urbanas e rurais, descendentes ou originárias das nações que ali vivem há mais de 5000 anos, já exercem. A nova definição do país é de Um Estado Unitário Social de Direito Plurinacional Comunitário. É como que um jurista viesse a sacralizar perante o Estado a usos e costumes milenares. As formas de democracia aprovadas refletem essa vontade política. Reconhece tanto a democracia direta e participativa (com referendos, plebiscitos e consultas massivas), como a representativa (mediante eleições de representantes) e a comunitária, por meio de eleições ou nominação de autoridades e lideranças locais e indígenas. Este modelo político vai ao encontro dos princípios expressos no Capítulo Quarto, “Dos direitos das nações e povos indígenas, originários, camponeses”, com ênfase no Item II, sub item 5. Que suas instituições sejam parte da estrutura geral do Estado.
Nesse sentido, vale ressaltar que concretizar um país plurinacional está anos luz do folclore e do regionalismo. Atendendo uma peleia de mais de 500 anos, o plurinacionalismo comunitário é o autogoverno indígena, tanto em território urbano como rural. Isto significa, além de uma nova institucionalidade, o reconhecimento de que o Estado boliviano é a soma de contribuições conflitos advindos com a invasão espanhola. Por exemplo, os idiomas oficiais, além do castelhano, passam a ser outras 36 línguas indígenas, sendo as mais faladas, o quéchua e o aimará.
É uma lógica simples. No antigo Alto Peru, mais de 60% da população, sendo ou não um povo originário (como aimarás e quéchuas), querem reverter sua própria história. Ou seja, condenar a colonização e sua herança, redescobrindo as raízes mediante um projeto de país independente. Para as massas indígenas e camponesas, apenas este reconhecimento constitucional já é muita coisa. Mas, ao levar à prática o auto descobrimento e a rejeição da conquista, outra parte da Bolívia se põe em pé de guerra.
A política tradicional e a nova perspectiva de país
Em agosto de 2008 assisti a uma palestra do ex-presidente boliviano Carlos Mesa, durante a reunião da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP). Na ocasião, pairava a ameaça de guerra civil secessionista, onde os departamentos da Media Luna, liderados pela oligarquia cruceña (de Santa Cruz de la Sierra) contestavam agressivamente ao governo eleito. Em sua fala, Mesa se disse “horrorizado” com as posturas de quem estava à esquerda do governo, como o Movimento Pachakuti, encabeçado pelo ex-guerrilheiro Felipe Quispe. Seu horror se expressava também no texto constitucional, fruto da prática política do conflito. Segundo o ex-vice de Sánchez “El Goni” de Losada, na Bolívia, qualquer setor social está acostumado a tomar na raça aquilo que entende que é seu por direito. O próprio Mesa, que assumiu em 2003 após a derrubada do governo de Goni, recebeu um ultimato, espécie de aviso prévio, dando-lhe 120 dias para começar a implantar uma série de reivindicações. Não foi à toa que terminou sendo obrigado a renunciar.
É nesta mesma cultura política de fazer valer pela força, a oposição de direita se articula É de se supor que não iam entregar sem luta um país que era seu, em sociedade com as potências estrangeiras, desde 1825. O passo está sendo dado pelos prefeitos de quatro departamentos, Beni, Tarija, Chuquisaca e Santa Cruz. Conformaram uma frente única, chamado de Conselho Nacional Democrático (Conalde), visando às eleições gerais de dezembro próximo. Até lá, é provável que ocorram dois fenômenos. Um é o aumento da popularidade de Evo, beirando os 70% de aprovação. O outro é a tentativa de deslegitimar a Constituição que representa no papel e na lei, um país virado de ponta cabeça.