01 de novembro de 2010, da Vila Setembrina do Continente de São Sepé, Bruno Lima Rocha
No momento em que escrevo estas palavras, a economista Dilma Rousseff (PT) acaba de ser eleita como primeira mulher presidente do Brasil. A derrota da dobradinha “clássica” PSDB-DEM, José Serra e Índio da Costa, demonstra um novo arranjo político e de parcelas do poder no Brasil. Mas, a eleição da ex-ministra em chefe da Casa Civil não significa necessariamente um avanço por esquerda, longe disso. A coligação de dez legendas, tendo ao deputado federal pelo PMDB quercista de São Paulo Michel Temer como vice, representa por si só a ampla margem de negociação e desistência de perspectivas históricas do reformismo radical dos anos ’80. E agora?
Para além do óbvio, analisando a vitoriosa composição de aliança política e de classes.
O pensamento socializante brasileiro tem algumas constatações relevantes, para as quais aporto meu grão de areia nesta reflexão. Temos duas novidades neste pleito, duas dentre várias. Elegeu-se uma ex-guerrilheira e mulher (estando separada em sua vida conjugal) para chefiar o Poder Executivo da 5ª economia do mundo e o país líder latino-americano do G-20. Não é coisa de pouca monta. Ou não seria. Esta mesma operadora política, com grande capacidade de execução de agenda, viu-se obrigada (ou se obrigou dado o volume de compromissos) a abandonar temas de convicção consensual no que resta das esquerdas com perfil militante no Brasil. Em termos de reivindicação imediata, o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos, peça esta que Lula não assinara, traçaria um senso comum daqueles que entendem – ainda que por dentro do aparelho de Estado – como prioridade a divisão de recursos e de poder. Pois bem, esta mesma peça consensual e imediata, foi refutada, negada, afastada, retirada de pauta, por parte da candidata. Na ponta do problema, o tema do aborto, entrando pela porta dos fundos através dos factóides políticos e dos poderes de veto do obscurantismo nacional.
Não ficou por aí. A aliança da legenda de Luiz Inácio teve a “sabedoria” eleitoral de costurar com aqueles que serviram, em sua própria iniciação da vida política, de objeto de ódio na figura do inimigo visível. Sei que é chato, mas é inevitável lembrar o apoio dos oligarcas como Sarney, Jucá, Calheiros, Geddel & Cia ou o reforço de opinião de operadores pró-ditadura como o ex-ministro Delfim Netto ou o ex-reitor da Universidade Mackenzie do CCC, Cláudio Lembo; de agentes econômicos como os líderes do mercado financeiro, materializado nos bancos (FEBRABAN), na indústria automobilística (ANFAVEA), das transnacionais e mega-conglomerados nacionais de telecomunicações (SINDITELEBRASIL) capitaneados no Brasil pela Telefônica de Espanha e na fusão absurda que dera na BROi e após na compra de uma parte da nova super-empresa por parte da Portugal Telecom (PT). Não parou por aí.
Na mídia, frente de batalha prioritária no embate político-eleitoral, abriu-se uma cunha entre os líderes do oligopólio nacional das comunicações. Se por um lado as famílias, Marinho (Globo), Mesquita (Estado de SP), Frias (Folha de SP) e Civita (Abril-Naspers), de outro, grupos do porte da Rede Record, do portal Terra (Telefônica de Espanha), da estirpe da Carta Capital, no alinhamento recente do Grupo Três (Alzogaray, cujo veículo líder é a revista Istoé) e na posição rachada do empresariado dos radiofusores entre a ABERT (liderada pela Globo), e a ABRA (liderada pela Rede Bandeirantes, da família Saad). Ressalto este aspecto, pois a luta política migrara para o espaço midiático (que de público pouco ou nada tem) e a coligação governista sabiamente (espertamente, pragmaticamente) optou pela solução Getúlio Vargas encontrando o seu – no caso, os seus – Samuel Weiner. Poderíamos seguir narrando as composições com agentes econômicos líderes dos respectivos oligopólios do capitalismo operando e existente no Brasil, mas basta com ressaltar o perfil agro-exportador do Brasil e a relação mais que promíscua entre o Ministério da Agricultura e o latifúndio.
Para além do sectarismo, porque estamos piores organizados?
O que me assusta é o lado de cá do balcão. Lula deixa o poder conseguindo uma proeza paradoxal. Seria leviano dizer que os brasileiros e brasileiras vivem em condições piores do que a oito anos atrás. Não seria correto. Ao mesmo tempo, seria tão ou mais leviano afirmar que as forças sociais, muitas delas ainda tributárias do mesmo processo de reivindicações e protagonismo de luta popular dos anos ’80, a mesma matriz do PT e seu líder histórico, estão mais organizadas. Nossas entidades e movimentos populares estão piores organizados, mobilizam menos, milita-se menos, há um distanciamento muito maior entre dirigentes e bases, não têm uma entidade que seja transversal para os movimentos (como uma central ou confederação sindical mais à esquerda e livre das práticas do viciado aparelhismo e disputa sectária de correntes) e o próprio MST perde sua capacidade de liderança da luta popular uma vez que se esvai em posições tênues, abrandadas, e terminando por ir a reboque da União e do melhorismo. Para quem julga ser isto exagero deste analista, sugiro que leiam os embates na interna do jornal Brasil de Fato ou simplesmente converse entre a militância detentora de algum nível de responsabilidade.
Eleitoralmente, e esta não é a opção militante deste que escreve, os índices foram pífios. PSOL, PSTU, PCO e PCB não são a mesma coisa, tem diferenças de origens políticas (ressaltando-se este último) e tampouco representam alguma forma de consenso da esquerda que ainda crê na via eleitoral. Seus resultados sequer passam de 1% das intenções de voto e o escrutínio não veio acompanhado de um avançar de lutas sociais a ser galvanizada através da participação nas regras da democracia de tipo liberal e representativo. É difícil crescer eleitoralmente em conjunturas de pouca ou nenhuma mobilização e onde a tensão social está ausente da política.
Já da parte das organizações políticas que não optam pela via eleitoral por dentro do sistema – sendo esta a opção deste analista – o que se vê é uma grande chance de crescimento qualitativo, desde que seja explícito um projeto político para o curtíssimo e curto prazos (2 e 4 anos, respectivamente). Será necessária uma maturidade de outro tipo, quando as minorias ativas têm de compreender que a sensação popular é que suas vidas melhoraram, e ao mesmo tempo, os projetos de poder de transformação profunda estão mais distantes do que estavam no final dos anos ‘80 e, como um todo, o movimento popular brasileiro está muito mais confuso do que estava na segunda metade dos anos ’90, em pleno auge do neoliberalismo e da Era FHC.
Trata-se de um paradoxo de difícil compreensão para quem tem pressa – e é difícil fazer política apressadamente. De um lado a massificação reivindicativa se complica, uma vez que a sociedade como um todo (incluindo os setores de classe tradicionalmente organizados) está mais desorganizada, fragmentada e dispersa. De outro, o romper com as práticas viciadas e o manifestar de uma cultura política distinta pode e vem atraindo significativamente militantes com trajetória ilibada e que não concordam com as vias do legalismo-reformista (como a ilusão de fazer política radical através do Judiciário e do Ministério Público) e menos ainda com o compartilhamento de postos de poder tanto com inimigos históricos (como a leva de Arenistas presentes nos oito anos de Lula) e menos ainda com o espaço enorme dado e garantido a setores pelegos oriundos do sistema corporativo (como a Força Sindical, a CGTB e a recalcitrante UGT). O racha sindical que leva a construir a CTB é declaradamente uma peleia por recursos derivados da legalização das centrais sindicais e reflete também uma aproximação – em função de clivagem eleitoral – de PC do B e PSB. Romper com estas práticas é algo muito factível. A luta sindical abre um oceano de perspectivas de crescimento com qualidade da militância recrutada e é possível fazer desta uma via que dê oxigênio para as agrupações mais à esquerda e programaticamente distantes das urnas.
Apontando conclusões
É duro admitir que a guerrilheira que caiu de pé e não cantou sob tortura, resistindo com dignidade aos suplícios da Operação Bandeirantes e da estrutura do DOI-CODI do II Exército em São Paulo não representa sequer um projeto reformista. É mais duro ainda admitir que esta mesma pessoa, uma mulher, representa de por si uma quebra de paradigma. E, por fim, o mais duro de tudo é perceber a forma como se governou nos últimos oito anos e quanto esta prática política está distante da tensão social necessária para aumentar os níveis de organização popular para poder, de fato, acumular forças rumo a um câmbio profundo. Lula tem mais de 80% de aprovação é isto não implica (e nem poderia implicar) uma guinada à esquerda do povo brasileiro. Repito, é hora de refletir e buscar a consistência através de um crescimento qualitativo, rompendo com a cultura política viciada e dirigista.
Entender este momento e fazer política para ele é uma atitude construtiva. É diferente de afirmar que o melhorismo da coligação de centro-esquerda é idêntico da histeria de tipo udenista da coligação de centro-direita. Afirmar isso seria leviano e absurdo. Os projetos que chegaram ao segundo turno não são idênticos, e mesmo que através de Dilma as políticas sociais permaneçam, é preciso ter a firmeza e a maturidade para assumir que há governos de turno que melhoram a vida das maiorias e não constroem projetos de poder para estas mesmas maiorias serem donas de seus destinos. Este é o caso brasileiro e continuará sendo nos próximos quatro anos.
Se o objetivo determina o método segundo as condicionalidades, os sessenta dias restantes do ano servem para gerar a reflexão necessária a respeito das condições de existência e expansão da proposta que visa organizar desde abaixo, acumulando forças – através da luta popular em sua forma direta – no sentido da radicalização da democracia através de sua forma direta e participativa, socializando recursos e poder entre as maiorias. Fazer oposição por esquerda não é tarefa fácil. Há muito trabalho pela frente.