4ª, 1º de agosto de 2007, Vila Setembrina dos Farrapos, Continente de São Sepé
Todo grande evento demonstra a capacidade de realização de um país. Ao mesmo tempo, expõe as mazelas de uma população que se acostuma a viver momentaneamente melhor. Foi o que ocorreu com os XV Jogos Pan-americanos do Rio de Janeiro. Aumentou a "sensação de segurança" e os números do crime caíram 60%. É a parábola do Brasil, deixando três lições, que ressalto no artigo.
A primeira lição é simples. Temos capacidade realizadora e recursos humanos de sobra. O que não temos é prioridade e planejamento estratégico. Quando mandantes e gestores do Brasil conseguem formar um consenso em torno de idéias simples, a realização é possível. A associação de um grande evento com apoio midiático e fortes investimentos do Estado sempre levam a um bom resultado. Para o Pan, assim como na Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente ( Eco 92), o Rio de Janeiro deu exemplos de urbanidade. Após os Jogos, tudo volta ao normal. É como no poema de Drummond: " a festa acabou, e agora José?"
Na década passada aconteceu o mesmo. Menos de dois anos após os chefes de Estado terem ido embora, sofremos com as chacinas da Candelária e de Vigário Geral. A chamada "sensação de segurança" se foi juntamente com os visitantes e as lentes do mundo. Porque vivemos a espetacularização da vida cotidiana, é mais fácil mobilizar recursos para as Olimpíadas de 2016 e a Copa de 2014 do que para assegurar os direitos da cidadania. Não se trata de chavão, mas do contrato social republicano.
Esta é a segunda lição. Mobilizamos recursos e prestamos contas para terceiros, e não para nós mesmos. O manto do cinismo e da "invisibilidade" traz a uma outra poesia, esta de Marina Colassanti: " eu sei que a gente se acostuma, mas não devia". Não basta culpar ao governo de turno. Como quase sempre acontece, a iniciativa privada se coloca na posição de observadora, agindo apenas na lacuna das contas de governo. Por 17 dias a metrópole carioca teve dias maravilhosos. Depois dos Jogos, mais de 2 milhões de brasileiros residentes no Rio continuam sem direito a quase nada.
Não sou psicanalista, mas suponho que esta falta de alteridade deve ter origens profundas no inconsciente coletivo. Porque não nos enxergamos como iguais perante a lei, aplicamos a vontade de potência em tudo menos nesta igualdade de direitos e deveres. É a mesma energia de realização que vibrou com os 90 milhões em ação e terminou endividando o Brasil nas obras faraônicas do " Milagre Econômico". Estávamos sob ditadura e a dissidência se expressava em armas. O surpreendente é que agora, em regime de democracia representativa, ocorra o mesmo.
Não sou contra o esporte, menos ainda o olímpico. Muito pelo contrário. Artigos anteriores neste mesmo blog provam o que digo. Ressalto apenas o absurdo. Não podemos ter uma emoção maior em um jogo de basquete do que com uma chacina policial. Mas temos. Depois das medalhas de ouro, as pessoas vítimas da violência sistemática continuam sem ter o direito a ligar 190 às duas da manhã e ver uma rádio-patrulha chegar ao seu auxílio.
É a terceira e última lição debatida neste texto. O tema em pauta é sempre o inverso. Escolhemos o "bife e deixamos o boi", como afirmava o jornalista Aloísio Biondi. No quesito segurança pública no Rio de Janeiro, o exemplo é óbvio. Com 10.000 policiais na rua a "sensação de tranqüilidade" estava garantida. Isso custou para a União R$ 562 milhões de reais . São gastas fortunas em política reativa e nada na proativa. Traduzindo. Se os três níveis de governo tivessem investido paulatinamente na urbanização das áreas de favelas, com certeza o custo da "idéia de segurança" seria muito menor.
Para um estrangeiro desavisado, isso pode ser visto como burrice estrutural. Não é. É uma opção ideológica e constitutiva das elites brasileiras. O Estado pode fazer política e o governo pode governar, mas sempre cumprindo uma regra. Tudo será mudado desde que permaneça no mesmo lugar. No caso do Rio, é gritante. Podem investir bilhões de reais em segurança, desde que o modelo policial não mude e a favela continue favelizada.
A antiga capital do Império exagera na ausência de Estado e falta do exercício de autoridade. É uma parábola do Brasil que sequer consegue controlar duas empresas de aviação.
artigo originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat