Anthony Downs é um dos bastiões dos neo-neo-neo (neoinstitucionalistas, neoliberais, neoclássicos) e tem a pretensão de exercer pensamento único abolindo o debate sobre o poder, pressupondo um psicologismo universal nas expectativas de comportamento individual. Pura peça de propaganda. - Foto:cooperativeindividualism
Anthony Downs é um dos bastiões dos neo-neo-neo (neoinstitucionalistas, neoliberais, neoclássicos) e tem a pretensão de exercer pensamento único abolindo o debate sobre o poder, pressupondo um psicologismo universal nas expectativas de comportamento individual. Pura peça de propaganda.
Foto:cooperativeindividualism

27 de agosto de 2009, da Vila Setembrina, Bruno Lima Rocha

Dou seqüência nesta semana para o conjunto das críticas destinadas ao campo de saber e incidência ideológica apelidado ao mundo de neoliberalismo. Como quase sempre procuro fazer, exponho o pensamento da direita através de suas próprias palavras, em especial de algumas obras fundadoras e doutrinadoras. O eixo do debate passa pela colonização da linguagem, como base de raciocínio de recursos discursivos, obrigando aos reprodutores destas palavras a carregar consigo os conceitos que compõem a parte intrínseca do modo neoliberal de totalizar o pensamento.

Isto se verifica no absurdo dos discursos de análise fazendo analogia com jogos de salão ou cassinos. A forma portadora das ferramentas de análise é através da linguagem, dos exemplos comparativos e das analogias. Na figura de linguagem macro, para os neoliberais o mundo se trataria de um grande cassino. Se observarmos com atenção a justificativa de “racionalidade da escolha racional”, em texto original de Milton Friedman, já encontramos as mesmas analogias.

No livro cuja edição original é de 1990, Jogos Ocultos, George Tsebelis (1998, p: 44, para esta crítica utilizo a edição brasileira da EdUSP) apresenta o debate do pressuposto racional da sua escolha. Vejam que a afirmação é nada sutil. Ao questionar se “é realista o enfoque da escolha racional?” expõe a origem desta formulação que logo viria a ser universalizada para o campo da ciência política por Anthony Downs (em Uma Teoria Econômica da Democracia, a obra original é de 1957, eu utilizo nesta crítica da edição da Edusp, datada de 1999). Segundo Tsebelis, a resposta mais freqüente para a questão seria: “Não importa; as pessoas agem ‘como se’ fossem racionais”.

Um dos fundadores da matriz de pensamento neoclássico afirma exatamente o mesmo absurdo. Particularmente considero isso a doutrina e não teoria. Teoria é um conjunto de hipóteses coerentemente articuladas e testáveis (ao menos uma Teoria de Médio Alcance, na dimensão estratégica do conhecimento). As idéias-guia são a forma mais sofisticada da ideologia, ou seja, doutrina. As palavras que seguem são base de doutrinação pura, vejamos. Repito a pergunta. “É realista o enfoque da escolha racional? As pessoas em geral agem para maximizar ganhos materiais e minimizar estas mesmas perdas?” A forma totalizante de responder a este questionamento se encontra no artigo do economista Milton Friedman, The Methodology of Positive Economics. Friedman (1953: 14) afirma:

Descobrir-se-á que hipóteses realmente importantes e significativas possuem ‘pressupostos’ que são representações descritivas tremendamente imprecisas da realidade, de modo geral, quanto mais significativa for a teoria, mais irrealistas serão os pressupostos (nesse sentido). […] Para ser importante uma hipótese deve ser descritivamente falsa em seus pressupostos.

Friedman exemplifica em três exemplos diferentes para apoiar a “F-twist” (“tendência F”), como a tese do ‘como se’ fossem racionais.
– os hábeis jogadores de bilhar, que executam suas tacadas ‘como se’ soubessem as complicadas fórmulas matemáticas que descrevem a trajetória ótima das bolas;
– as firmas que agem ‘como se’ fossem maximizadoras da utilidade esperada;
– as folhas de uma árvore; Friedman (1953: 19) sugere “a hipótese de que as folhas se posicionam como se cada uma procurasse deliberadamente maximizar a quantidade de luz solar que recebe”.

Qualquer estudante de ciências econômicas, sociais e humanas que apresentasse este conjunto de hipóteses na forma de ensaio, sem se referir à citação de Friedman, seria ridicularizado e humilhado por pares e professores. Sejamos sinceros, por vezes (muitas vezes, majoritariamente) o campo acadêmico costuma ser cruel nos seus ritos de passagem e aprovação de membros mais novos. Se este novo membro a entrar em algum escalão universitário utilizasse estes exemplos absurdos acima, a reação seria terrível, possivelmente causando traumas e dramas para o restante de sua vida. Mas, do alto de seu posicionamento de doutrinador, Friedman pode dar o exemplo estapafúrdio e irracional que nada acontece a não ser a reprodutibilidade acelerada pelos seguidores com estilo das cabras e ovelhas de George Orwell.

Retomando o conteúdo da crítica, um dos pilares da aproximação da lógica da escolha racional sobre as variáveis da política e sua matriz histórico-estrutural é a obra de Anthony Downs (1999), “Uma teoria econômica da democracia” . Como já dissemos, o original da obra é de 1957, sendo a mesma escrita entre 1955 e 1956. É interessante observar já nos agradecimentos, a vinculação teórica, epistemológica e de suporte institucional que o economista contou para escrever o livro. Downs (1999), na página, 21, Agradecimentos, presta o seguinte reconhecimento:

“Como todas as obras supostamente originais, este estudo deve muito de seu conteúdo ao pensamento e esforços de outras pessoas. […] Também gostaria de agradecer Robert A. Dahl e Melvin W. Reder, que leram o manuscrito e fizeram muitas sugestões que incorporei. […] Finalmente, gostaria de agradecer ao Office of Naval Research pelo auxílio que tornou este estudo possível. […].Anthony Downs, Stanford University, maio de 1956”.

Como se nota, o “campo” neoclássico e liberal se protege, consegue seus financiamentos e é auto referenciado. Nesta obra, Downs (1999, p. 43) se posiciona na mesma linha de Friedman e afirma que o artigo do economista de Chicago, publicado em uma obra cujo título coletivo é a de um “ensaio” (Essays of Positive Economics, 1953, Chicago Univ. Press) é uma “excelente afirmação desse ponto de vista”. Segundo Downs, “os modelos teóricos deveriam ser testados primordialmente mais pela precisão de seus prognósticos do que pela realidade de seus pressupostos.” Dessa forma, o autor concorda com Friedman e defende o pressuposto irreal como base para a Escolha Racional.

O pressuposto deste prognóstico se notara após o trabalho de colonização de assimilados convertidos em doutrinadores operando na esfera política com discurso econômico. O convênio entre Friedman e seus seguidores oriundos majoritariamente da Universidade Católica do Chile montou a base das “piranhas vorazes”, o outro apelido dado aos Chicago Boys, braço “econômico” da ditadura chileno de estilo prussiano de Augusto Pinochet e outros genocidas.

O questionamento desses dois trabalhos não é pelo fato de seus pressupostos serem irreais. Entendo que esta postura teórica-epistemológica deve existir, mas diz respeito às dimensões ontológicas (ideológicas) da teoria. No campo operacional da política, a dimensão ideológica, após um largo período de desenvolvimento, sistematiza idéias-guia no sentido de doutrina. Todas as idéias-guia das modestas, mas incisivas análises que faço, assim como suas filiações tanto teóricas como metodológicas e ontológica, foram discutidas em artigos anteriores e estão sempre expostas. Assim, abro a tomada de posição do analista. Entendo que a honestidade intelectual deve partir de que o pressuposto “subjetivo” é irracional por estar o mesmo vinculado ao campo das filiações, do inconsciente, das aspirações. Como o inconsciente é um único irredutível, é um objeto próprio da esfera ideológica. Por serem as ciências humanas e sociais de natureza aparadigmática, simplesmente não existem disciplinas e saberes das humanidades que não contenham em seu universo intrínseco uma dimensão ontológica, portanto, não-científica.

É interessante a maneira de formulação de pensamento de Friedman. Já no quesito “precisão de prognósticos”, entendo que ocorre uma afirmação inversa. A precisão de análise e a predição de conjunturas dentro de um marco de constrangimento são possíveis. Já o termo empregado por Friedman, a da “representação descritiva tremendamente imprecisa” não garante nenhuma certeza de alteração estrutural no futuro. O que quero dizer é que o acerto na predição de largo prazo depende da incidência dos agentes e não da precisão analítica. Coube aos neoliberais o papel de conspiradores internacionais, usando como eixo de força as absurdas fórmulas matematizadas. Friedman e seus seguidores são o exemplo vivo da força das materialidades das idéias, por mais absurdas que estas possam parecer.

Estamos em trincheiras diferentes, por sorte. Cabem aos analistas e trabalhadores acadêmico-científicos da América Latina se posicionar perante as mazelas, virtudes e desafios do Continente. Nossa lida passa por buscar e produzir as ferramentas necessárias para teorizarmos saídas visando a radicalização da democracia, o empoderamento dos sujeitos sociais organizados, a expansão de direitos e liberdades e a derrota em todos os níveis das oligarquias (nacionais e estaduais), das transnacionais, da jogatina dos banqueiros e do Império.

Este artigo foi originalmente publicado no portal do Instituto Humanitas da Unisinos (IHU)

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