06 de novembro de 2009, da Vila Setembrina da fração do Rio Grande que nunca se rende, por Bruno Lima Rocha
A tarde de 5ª feira, dia 29 de outubro de 2009, marcou a história recente da política do Rio Grande do Sul. Neste dia, a sede da Federação Anarquista Gaúcha (FAG) em Porto Alegre foi alvo de uma batida policial civil, que devidamente munida de mandado de Justiça (estadual, por suposto), partira em diligência para este endereço. O motivo, uma entrada de queixa crime por calúnia, injúria e difamação de parte da própria governadora de estado, a economista Yeda Rorato Crusius (PSDB), que entrara como pessoa física. As páginas que seguem expressam o ocorrido se aproximando do ponto de vista dos atacados e apresenta uma das interpretações passíveis de serem aceitas para explicar o porquê de procedimento discricionário. O foco é a batalha pelos direitos políticos de um coletivo contra o resguardo da imagem pessoal, alvo primário das batalhas político-midiáticas da contemporaneidade. Por suposto, a liberdade de expressão e a política como ferramenta de mobilização estão em jogo também. O neoliberalismo selvagem que vem tomando conta das entranhas do aparelho de Estado no Rio Grande necessita de um Executivo forte, autoritário e discricionário.
O ocorrido
Naquela tarde foi deflagrada a execução pela Polícia Civil do Rio Grande do Sul de dois mandados judiciais de busca e apreensão em dois lugares simultâneos. Uma equipe da Civil – que nos estados oficia de polícia judiciária – foi em diligência contra a sede pública da FAG (na Cidade Baixa, bairro boêmio próximo do Centro de Porto Alegre) e, outra, partiu rumo ao endereço de hospedagem do portal vermelhoenegro.org (onde se congregam as federações e grupos estaduais aliados no Foro do Anarquismo Organizado, FAO) localizado na cidade de Gravataí, Região Metropolitana da capital gaúcha. Em tais ordens judiciais constava a autorização do Poder Judiciário Estadual de recolhimento de material impresso de propaganda, computador (CPU), memória (back up) e demais objetos relacionados à queixa criminal. Ressalte-se que a queixa, segundo o apurado, foi da própria governadora como pessoa física.
O motivo, segundo a ordem judicial, foi a campanha de cartazes colados nas ruas do estado do Rio Grande do Sul e de difusão eletrônica através de um portal de internet, cujo mote deriva do assassinato do colono sem-terra Eltom Brum da Silva. Yeda se sentira lesada em sua imagem porque se lhe atribuía o termo de “assassina”, como sendo responsável política pela violência promovida pela Brigada Militar (BM, polícia militar do Rio Grande do Sul) quando na manhã de 21 de agosto, um sem-terra foi alvejado com tiros de balins pelas costas. A diligência seria então para se municiar de provas materiais, corroborando a queixa, e justificando assim o processo contra os responsáveis de dita campanha. Como já disse acima, na era da política midiática, uma arte final de cartaz tem um peso considerável.
De acordo com testemunho de vizinhos da rua, os agentes do Estado inicialmente tentaram arrombar o portão, já que a sede estava fechada naquele momento. Após a entrada no local, mediante a leitura do mandado, iniciaram a busca no interior do imóvel por cartazes, boletins informativos e demais documentos ao mesmo tempo em que desligaram o telefone, alegando que durante aquela execução não se pode usar tal meio. Um dos fatos relevantes é que, além do cartaz requerido pela ordem judicial, teriam sido levados os arquivos de outras produções impressas de opinião política e informação assim como um arquivo de cartazes outros. Um deles reivindicava a saída da governadora, cujo mandato está atravessado por casos de denúncias de corrupção e situações limite, como a da morte de seu ex-representante em Brasília, Marcelo Cavalcante. Ao mesmo tempo, o impresso, associava a imagem e gestão da economista neoclássica (neoliberal e neoinstitucionalista por tabela) denunciando-a por entreguista, devido à ingerência do Banco Mundial no seu projeto político.
Assim, se o problema fosse buscar provas de campanhas injuriosas contra o governo constituído através de uma margem de votos de cerca de 5% no segundo turno de 2006, o recolhimento de impressos já bastaria. Mas, conforme foi amplamente divulgado pelos meios alternativos do sul do Brasil, a diligência levara, além de material de gráfica e serigrafia, também a documentos internos da FAG, atas de reuniões e documentação em geral da vida interna da Federação. Além daquilo que constava no mandado, foram apreendidos outros documentos não relacionados ao fato, assim como discos de arquivo de backup e do próprio CPU. Perguntavam por armas e drogas, numa tentativa de criminalização. Nem a lixeira escapou. Teriam inquirido aos militantes ali presentes sobre quem toma as decisões, quem são os responsáveis, como funciona a FAG, se tem registro jurídico formal enquanto associação ou entidade. Para uma ação de danos morais, a operação está mais para polícia política, ainda que (por enquanto) de intimidação e não de repressão física.
Simultaneamente, buscaram também, com um segundo mandado semelhante, o endereço e o responsável pela página da internet. Parece evidente que a peça jurídica tentava criminalizar o encarregado técnico da página, um trabalhador autônomo que simplesmente presta serviços para o coletivo gestor da página. Como o mesmo não foi localizado, foi levado à 17ª delegacia da capital o titular do endereço do portal. Este tampouco é membro ativo da Federação, mas ainda assim foi apreendido neste local em Gravataí também o CPU do seu computador e um palm-top de uso pessoal. E, tal e como em Porto Alegre, a polícia judiciária apreendeu arquivos de documentos históricos da FAG, que permaneciam lá guardados ao longo dos anos, tais como cartazes, revistas e informativos diversos. Qual o intuito? Procedimento de rotina ou a determinação superior de conseguir dados e controle interno de uma organização política que joga por fora da disputa parlamentar?
Após as diligências e apreensões foram então identificadas e levadas quatro pessoas para interrogatório na 17ª delegacia de Polícia Civil em Porto Alegre. Outros testemunhos ainda ficaram de comparecer de modo que o delegado titular do inquérito possa concluí-lo em curto tempo. Pela lógica, alguns indivíduos podem vir a ser acusados. Resta saber a dimensão e a caracterização jurídica do processo. O resultado político é multiplicado, isto porque o réu num caso desses, ao contrário de boa parte do secretariado e dos ocupantes de postos de 1º, 2º e 3º escalão que passou pelo Piratini neste governo e no anterior, não se trata de réu por corrupção e sim por expressar uma opinião política. Com toda certeza, se isto vier a ocorrer, Yeda terá fomentado uma campanha de tipo solidariedade militante sem precedente na história contemporânea do estado gaúcho.
Yeda atirou no que viu e acertou no que não enxergou
Uma vez que a governadora se livrara da função de ré no processo de investigação federal da Operação Rodin (corrupção do Detran-RS), conseguira manter a maioria para o abafa e engavetamento do Relatório do Impeachment e ao mesmo tempo, desempodera e esvazia a CPI da Corrupção, viu-se desimpedida e apta para a contra-ofensiva. Safou-se no Judiciário Federal e usou da maioria para ganhar na “mui nobre, leal e valorosa” Assembléia Legislativa do RS. Estava na hora do troco. Um bom começo seria atacar uma organização política menos midiática, de tipo não parlamentar, e com menos visibilidade por não contar com postos de governo ou representação, fruto de sua linha ideológica e opção estratégica. Bem, uma organização desse tipo no RS é a FAG. É o alvo perfeito, considerando inclusive aspectos históricos de divisão no pensamento socialista que remontam à 1ª Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT, reivindicada pelos anarquistas).
O possível erro de cálculo da parte dela e de sua assessoria (ao menos aqueles que ainda conseguem aconselhá-la) foi pressupor que o tamanho e a opção ideológica desta organização implicassem em isolamento e poucos vínculos. Justo se deu ao revés. Fruto da inserção social e de uma política não sectária, embora radical e intolerante com a intermediação parlamentar, sobrou solidariedade para com a FAG. Entidades de ponta como o sindicato de trabalhadores da educação estadual (Cpers-sindicato) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra (MST), além da Associação Gaúcha de Radiodifusão Comunitária (Abraço-RS), passando pela página de oposição e de alternativa midiática mais lida do estado (RSurgente.org) imediatamente começaram a mover-se, articular apoios jurídicos, chegando até a deslocar gente para o local sob diligência. Tal foi o caso da presidenta e vice do Cpers, que se dirigiram à sede da Federação (próximo ao Centro de Porto Alegre) e logo após acompanharam os militantes anarquistas à 17ª delegacia. Não se trata de pouca monta, considerando que o Cpers tem mais de 90 mil afiliados e é o maior sindicato do Rio Grande.
O maior movimento popular da América Latina também se moveu. O MST divulgou nota oficial de repúdio ao atropelo e solidariedade, e pôs o seu jurídico à disposição (assim como a banca de advocacia que atende o sindicato de educação foi acionada). As rádios comunitárias acionaram seu correspondente em Porto Alegre, que se dirigira à DP; e, no caso do RS Urgente, seu editor entrou em contato telefônico com uma das acusadas e postou em sua página a nota da organização atacada. Esse foi apenas o começo, sendo enviadas dezenas de notas de solidariedade e gestos de apoio, inclusive em outros países, como nos vizinhos Uruguai e Argentina, onde organizações afins em linha política tomaram as rédeas da rede de solidariedade e fizeram circular informação e acionar outros apoios. Do exterior, o ato mais ágil e notório ocorreu na Espanha, onde a Confederação Geral do Trabalho (CGT) logo um dia depois, realizou um breve ato de protesto na frente da embaixada do Brasil em Madrid. Em uma semana, a lista de solidariedade cresceu de forma espiral, atingindo a países da América Latina, Europa, Autrália e EUA. Definitivamente, Yeda errou o alvo.
A lógica invertida – a acusadora passa a perseguir politicamente, o argumento é a calúnia
Entendo que o caso caracteriza uma ameaça direta de cerceamento da liberdade de expressão do jornalismo em seu tom mais político e do emprego da comunicação alternativa, que vai do muralismo, passando pela agitação e propaganda até chegar à internet. Ao cercear a circulação de informação por fora dos canais oficiosos (a mídia corporativa, palangrista como dizem os venezuelanos), Yeda imagina forçar um consenso construído na base da espiral do silêncio e do silenciar da oposição diante de repressão policial e de certa cumplicidade dos poderes não eleitos mediante a urna da democracia representativa. Assim, sem certo grau de domesticação do Judiciário estadual e do Ministério Público do RS, jamais haveria tamanha sanha e auto-confiança no ato de reprimir. Seu governo, seus assessores e aliados políticos estão marcados como alvos de investigação de tipo policial por locupletar-se através do controle de partes do aparelho de Estado. A típica Pátria Contratista como afirma os brilhantes jornalistas de investigação argentinos. Se inverte a lógica, como o foi no caso do banqueiro bandido, Daniel Dantas. A perseguição passa a ser ao perseguidor, no caso do Opportunity, o alvo passa a ser o jacobino idealista (delegado Protógenes) que pensou poder mudar a sociedade brasileira através do Estado que a oprime. Deu no que deu.
No caso da avançada neoliberal selvagem no Rio Grande, tenho a certeza de que esta campanha pública deflagrada pela FAG dentro do contexto de mobilização sindical e popular ampla que vem se desenvolvendo há pelo menos 1 ano neste estado, irrita profundamente a governadora Yeda Crusius (PSDB). Tanto ela como o seu perímetro de apoio direto operam – literalmente – como braço político-econômico e – por força dos patrocínios – midiático do capital financeiro, são executores de um acordo entreguista; rifando os destinos dos trabalhadores do serviço público do RS aos desmandos e as práticas pouco ou nada republicanas das “consultorias” contratadas para executar este mesmo contrato. Tudo isso a organização reprimida, a FAG vem denunciando publicamente por todos os meios que lhe são possíveis, incluindo a colagem de cartazes nas ruas da capital Porto Alegre e de algumas cidades-pólo do estado. Na era da política midiatizada, era quase “natural” a reação do Executivo com ares discricionários. Demorou, mas chegou.
Alega-se, de parte da governadora, que a ação de queixa crime e a conseqüente intervenção policial foram motivadas pela defesa da honra. Levanto outra hipótese. A meta era responsabilizar um coletivo ou alguns indivíduos organizados na Federação. Após a entrada na sede e a apreensão de material, tanto o inquérito e posterior processo judicial são contra os indivíduos identificados e responsabilizados pela referida campanha pública de difusão de opinião em nome da FAG sobre o fato do colono sem-terra Eltom Brum da Silva ter sido assassinado por operadores da Brigada Militar, em agosto na fazenda Southall em São Gabriel, na Fronteira Oeste. Neste caso, paira uma suspeita inicial e até hoje mal explicada. Segundo o apurado pelo movimento de rádios comunitárias, recai sobre um oficial de alta patente a possível autoria dos disparos. Essa desconfiança, a de que o soldado que confessara não é o verdadeiro autor dos disparos, é uma hipótese reforçada pela carta do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo dirigida aos ministros Tarso Genro (da Justiça) e Vanucchi (dos Direitos Humanos). Se a ação solidária conseguir reabrir o inquérito ou federalizar a investigação, então o efeito contrário será total. Pessoalmente, em função de interesses eleitorais na corrida ao Piratini em 2010, duvido que Tarso meta a mão nesta seara. Mas, a cancha está aberta.
Outro tema complementar é a responsabilização política. Uma ação da envergadura do despejo do MST na Fazenda Southall não é de rotina e passa por uma equipe de acompanhamento e gestão de crise a serviço do Executivo. Todo ato repressivo desta dimensão tem um nível de responsabilização política. Se os agentes de polícia estadual agem sob orientação do governo de turno, a chefe do Executivo é, por tanto, a responsável política pelo que vier a ocorrer de ações derivadas por seus comandados. Este raciocínio, exposto na forma de slogan de campanha política, embora bastante aplicado nos países hermanos, não tem esse costume no Brasil. Por fora da cultura política brasileira, que é conivente com a corrupção endêmica e estrutural, mas não com as palavras duras do jogo real vindo debaixo, ficou mais fácil para Yeda conseguir a ordem judicial para a diligência. A acusação de “assassina” ficou forte demais. Passou a valer a pena reprimir. E foi o que aconteceu.
Os poderes estaduais temem a luta política dos anarquistas
O processo por parte da governadora Yeda Crusius contra a FAG tem sua origem por tanto no conteúdo de materiais de comunicação visual, ou melhor, de opinião e propaganda, os quais ela considera caluniosos, especificamente o termo “assasina”. Neste caso trata-se de cartazes, panfletos e conteúdo do site da internet narrando os fatos políticos e opinando sobre uma realidade específica, a política deste governo de turno do Rio Grande do Sul, suas conseqüências e a responsabilização destas, conforme as próprias regras jurídicas vigentes do Estado.
O que pode tê-la deixada inquieta é saber que uma força política extra-parlamentar, consegue apontar com precisão os mandantes e responsáveis dos crimes contra o povo e sua propaganda tem efeitos superiores aos de grupos também radicalizados, mas isolados socialmente. Especificamente o episódio do assassinato do sem-terra Eltom Brum da Silva e as análises divulgadas pela FAG sobre os fatos motivaram a queixa de injúria, calúnia e difamação, da qual se desenrolou mandado judicial de busca e apreensão na sede publica da Federação referente aos cartazes então produzidos e divulgados na semana seguinte ao 21 de Agosto de 2009. Do que ela acusa? De defender com idéias e trabalho de base a memória e o sentido do martírio de mais um sem-terra. Dessa vez o morto foi no estado onde o agro-negócio responde por quase 40% do PIB, tem pressão de mídia favorável, bancada parlamentar própria e consegue extrair fundo do dinheiro público estadual sem maiores dificuldades. Uma das micro-regiões onde o conflito de terras é mais acirrado é justamente na Fronteira Oeste, onde se localiza o município de São Gabriel. Além do embate histórico contra o latifúndio, o agro-negócio se coloca a serviço da indústria verde, como a da cana de açúcar transgênica no norte do Rio Grande, ou do Deserto Verde – plantations de eucalipto em escala absurdamente grande.
Quando uma força política que atua por fora do jogo eleitoral de tipo democrático-burguês consegue fazer parte das pautas generalizáveis no estado, já demonstra o tamanho suficiente que justifique a sua repressão. O mote foi a suposta calúnia, e o fato estrutural foi o posicionamento a respeito do futuro do Rio Grande, a soberania popular e seu Bioma Pampa. Vale lembrar, no sul do país, o trabalhador rural foi covardemente morto com um tiro de calibre 12 pelas costas, havendo inclusive relatos discordantes quanto ao responsável direto pelo assassinato. Nada foi investigado, abrindo caminho para a denúncia clássica. Houvesse jornalistas e não palangristas, e Yeda experimentaria um caminho parecido com o de Richard Nixon. Mas, Bob Woodward não trabalha na esquina da Érico Veríssimo com a Ipiranga em Porto Alegre. É triste, mas é verdade.
Retornando à análise política estatal, no topo da cadeia hierárquica são os governadores dos estados brasileiros os chefes máximos das polícias, tanto a ostensiva (militar) como a judiciária (civil) – portanto é a governadora Yeda no Rio Grande do Sul, assim como seria em qualquer outro estado do país. Mas há ainda outras considerações importantes. Temas de polêmica e conflito de projetos estruturantes estão em jogo. As políticas públicas implementadas pelos governos são também responsabilidade de quem as define e executa, mais uma vez representado no seu chefe, o governador. Então, temos mais fatos. Além do assassinato de um sem-terra, caracterizado pela própria mídia tradicional (corporativa e comercial) como político, mas também as conseqüências das políticas para a educação e saúde públicas, da criminalização da pobreza e da violência policial exercida sobre os pobres, nas periferias urbanas e no campo, assim como sobre os movimentos sociais e sindicatos são bandeiras legítimas que vários setores do povo organizado vêm levantando ao longo de meses contra este governo.
A mitologia política retro alimenta a contestação contemporânea. O Rio Grande que nascera da República Comuneira Guarani, hoje vive sob um governo atravessado por réus em processos federais. Não é apenas mais um governo de tipo burguês e neoliberal. É um governo burguês e neoliberal sem limites. Para este analista, é tão devastador para a população gaúcha como foram os governos Menem (Argentina, 1989-1998) e Bush Jr. (EUA, 2000-2008). E as propostas e decisões vão além da própria Yeda. Vale lembrar que o banco estadual (o Banrisul) foi dilapidado com a venda de 47% de suas ações preferenciais; já o parlamento estadual, onde o Executivo tem maioria, nesta legislatura aprovou, assinando de forma unânime, o contrato entreguista do Banco Mundial sem sequer o ler. Para qualquer organização de esquerda minimamente responsável isto já bastaria para convocar uma Pueblada daquelas! No caso específico dos anarquistas politicamente organizados na FAG tamanha entrega da soberania popular soou como INTOLERÁVEL. Vem daí a motivação para a agressiva propaganda pública e o reforço – através de frentes sociais – da ampla mobilização conhecida como Fora Yeda!
Talvez o que falta para a luta popular brasileira é uma tradição vinda do México, onde se prevê o direito a lutar contra um mau governo. Neste caso, entendo que a via mais conseqüente seria que a contestação ampliada fosse acompanhada de maior democracia interna nos movimentos populares e sindicais e a partir desse novo caldo de cultura, modificar o modelo de acumulação de forças na sociedade brasileira. Isto passa por um novo pacto de esquerda, onde o dever comum seria construir uma democracia participativa, onde a igualdade social e econômica seja a base das liberdades políticas e da participação direta do povo em suas decisões fundamentais. Isto é o que a FAG ajuda a fazer desde que foi fundada em 18 de novembro de 1995. Isto é o que Yeda teme. Por isso essa senhora, seu ex-marido, seus secretários de estado e o séquito que a acompanha tentam criminalizar os militantes anarquistas.
As lutas contemporâneas do povo organizado no estado mais ao sul do Brasil
No Rio Grande do Sul, desde o mês de março de 2008 não existem fatos isolados. O que há é um acúmulo de tentativas de criminalização e repressão brutal a todos os setores das classes oprimidas organizados, como por exemplo, na greve dos bancários e dos professores estaduais em 2008, o que resultou na tentativa de criminalização do Cpers (sindicato dos trabalhadores em educação pública), hoje um dos maiores sindicatos da América Latina, com mais de 90 mil afiliados. Não bastasse impor ao povo gaúcho uma secretária de educação autoritária e ofensiva a comunidade escolar, a forma de gestão é claramente privatizadora, exaurindo os recursos da educação e entregando o orçamento para ser complementado pelas fundações educacionais, verdadeiras lavanderias de dinheiro e de desvio de imposto. Tampouco posso omitir o processo político deflagrado junto ao ministério público estadual contra o MST, com a clara intenção de criminalizá-lo. Esta é a conspiração oficial que deu origem ao assassinato de Eltom Brum e que agora tenta incriminar a FAG.
O silêncio da mídia corporativa também é cúmplice. O que está fora da pauta das lutas e do monopólio da mídia gaúcha, capitaneado pelo Grupo RBS (alvo de denúncia do Ministério Público Federal de Canoas), são os efeitos a curto, médio e longo prazo do empréstimo com o Banco Mundial. Neste contrato absurdo e vende pátria, endossado pelo governo de Lula, consta, por exemplo, o regime de caixa e a ingerência de consultores estrangeiros no orçamento público do RS. Outro intento de vender o Rio Grande é na liquidação do Bioma Pampa entregando as terras mais férteis do país para plantar eucalipto e produzir pasta de celulose destinada a fabricar papel higiênico na Europa! A mesma relação desigual se dá no tema da produção de alimentos, quando o Estado entra para favorecer o latifúndio na forma de “agronegócio” e relega a agricultura camponesa e familiar à penúria e a pobreza. Já os capitais da indústria, liderados pela gigante Gerdau (diversas vezes beneficiada com subsídios estatais e estaduais) já têm seu plano estratégico no RS, babando para abocanhar os direitos adquiridos pelos trabalhadores e publicamente divulgados na chamada Agenda 2020.
Nesta breve análise não se pode desconsiderar o papel das elites dirigentes e nem da classe de intermediários políticos tradicionais como agentes importantes nas decisões políticas e da sua influência no jogo de interesses que caracteriza qualquer governo de qualquer Estado. Aqui no RS, hoje estão fundidos os interesses dos latifundiários e do agronegócio e toda sua cadeia depredatória, como a indústria da celulose, o deserto verde, a exploração das reservas de água, a tentativa de criminalização do MST, o fechamento das escolas itinerantes dos assentamentos, etc. Também estão em jogo os interesses daqueles que vivem do roubo sistemático contra o povo, da corrupção institucionalizada, da banca estelionatária e criminosa, da velha ordem de tirar vantagem com o patrimônio coletivo, de desprezar o povo e fundamentalmente seus direitos e sua capacidade de rebelar-se. Afinal são inúmeras as denúncias e evidências de corrupção escandalosa assim como foram muitas as tentativas de desqualificar e impedir os sindicatos, as categorias e movimentos sociais de manifestarem seu repúdio, sua opinião.
No que diz respeito aos trabalhadores do serviço público, a situação é muito grave. O gerencialismo é uma das marcas desse governo que mandou a Polícia Civil invadir a sede da FAG. A política de retirada de direitos dos trabalhadores, muitos deles conquistas históricas e orgulhosamente iniciados nas lutas dos sindicatos de resistência há mais de cem anos, não é exclusiva do governo LULA.
No RS o governo Yeda Crusius tomou e vem tomando várias medidas de cerceamento, repressão e criminalização contra os professores estaduais e seu o sindicato (CPERS), assim como de seus dirigentes. As escolas públicas estaduais passaram a ser um negócio entre o governo e organizações privadas, as OSCIPS (organizações sociais de interesse público; na prática empresas privadas substituindo o Estado), com sua lógica de gestão e seus interesses, onde quem ganha são os de sempre e quem perde é o povo. As conquistas de décadas de lutas das categorias dos trabalhadores da educação vêm sendo combatidas arduamente pela atual política para a educação no governo estadual, antes também personificado na figura de Mariza Abreu, ex-secretária de educação, logo também responsável pelas suas conseqüências. A meta esta quase por ser aprovada. Rebaixar o salário base e implantar a remuneração por “produtividade”; medida esta que permite se jogar os trabalhadores uns contra os outros e enfraquece ainda mais a representação sindical.
É esta a conjuntura que marca a repressão contra a Federação Anarquista Gaúcha.
O contra-ataque: ato público na esquina democrática, marcha pela Borges e ato político no Quilombo das Artes. E agora?
Em meio ao desenrolar do inquérito, nos dias frenéticos que se seguiram, deram-se situações interessantes. Analiso que o movimento de solidariedade para com a FAG ultrapassa o repúdio que as entidades de movimento popular e a esquerda em geral tem ao governo neoliberal e acusado de corrupção e opera como um reconhecimento ao trabalho desta organização. Tanto no sentido da inserção como forma de empoderamento dos sujeitos sociais organizados (retirando assim poder dos intermediários profissionais) como na efetiva política de unidade em luta e não sectarismo estéril.
Isto se fez ver na 3ª dia 03 de novembro, quando às 18 horas, após um temporal, quase uma centena de pessoas de distintas agrupações mais à esquerda, se encontraram na Esquina Democrática, centro de Porto Alegre, para, debaixo de uma garoa incessante, participar de um ato político de desagravo a repressão sofrida pela FAG. Na seqüência do ato, houve uma breve marcha pela Borges rumo ao Quilombo das Artes, espaço cultural da Comunidade Autônoma Utopia e Luta, onde se realizou o ato político. Ao não mudar o estilo de trabalho, se demonstra para os poderes do Estado que a intimidação oficial não dera resultado. Se por um lado o titular da 17ª DP ainda não concluiu o inquérito, o que deixa margem para hipóteses no campo jurídico, por outro, no que é estritamente política, a campanha em solidariedade está fortalecida e tentando reabrir o inquérito policial da investigação do assassinato do colono sem-terra Eltom Brum. Com certeza, aumentou a legitimidade da FAG e a organização sai fortalecida do episódio. E agora?
Concluo apontando algumas variáveis. E se os ativistas de direitos humanos conseguirem reabrir o inquérito do assassinato de Eltom, como fica a cúpula da segurança pública no RS? O que fará o governo Yeda Crusius? Vai redobrar a aposta? Vai apontar para outro alvo, talvez este não político específico, mas social, e por sua natureza, de maior envergadura?
A única certeza é de que esta Outra Campanha, por temas estratégicos e de longo prazo, como a defesa do Bioma Pampa e brecar a venda do Rio Grande para o Banco Mundial, não vai cessar nem durante a corrida eleitoral de 2010. Parte disso é mérito político da FAG, reconhecido inclusive pela operadora neoliberal, quando esta decide reprimir a organização. Como disse acima, acerta no que vê e atinge aquilo que antes não enxergava.
Este artigo foi originalmente publicado no portal do Instituto Humanitas da Unisinos (IHU)