21 de dezembro de 2009, da Vila Setembrina, Bruno Lima Rocha
Diante do retorno do fantasma do fantasma do ditador, este sendo possível e não se sabe se provável em função da transferência de votos do PS chileno para a coalizão da direita pinochetista, uma série de dúvidas abalam a crença dos analistas políticos mais à esquerda do Continente. O lado de lá comemora diante da demonstração de vigor e presença social da “opção chilena” (tortura e restauração pró-mercado a todo o custo), mas do lado de cá talvez não tenhamos a real dimensão do papel do Estado de exceção como autêntica ditadura neoliberal (inspiradora para a China, por exemplo) pôde ter gerado nas camadas sociais mais humildes do Chile.
Se o estudo das mentalidades é um desafio de fôlego (mas não intangível como querem os prepotentes deterministas), uma aproximação com as bases sociais e de apoio à transição tardia chilena podem nos dar pistas do cansaço da aliança de governo (La Concertación) que gerara situações limite e espúrias. A dura verdade é que o ceticismo do chileno médio se dá também pela manutenção das estruturas de poder de Pinochet. Todos os governos após 1990 mantiveram alto nível repressivo aos movimentos sociais, com foco especial na esquerda social e no Movimento Mapuche (indígena). Já as políticas econômicas foram igualmente conservadoras (neoliberais) sem aumentar o nível de emprego formal e menos ainda o poder aquisitivo. Com o terreno preparado, a herança política do ditador já pode reencarnar.
Particularmente, desde 1996 tenho contato semanal com militantes chilenos e os relatos de repressão e por vezes de morte, além de prisão arbitrária, criminalização das marchas e atos, todos abundantes. Isto sem falar em um ambiente político coalhado de espionagem e infiltração estatal, eis a base para um sentido de permanência da sociedade vigiada. A própria corporação dos Carabineros é o exemplo mais bem acabado, materializando o conceito de que os pilares da ditadura continuam. O corpo policial militarizado, que seguiu operando nos anos da Concertação seguindo a disciplina prussiana, manteve a vocação de colonialismo interno e repressão social do período Pinochet. O caldo de cultura colonial se manifesta no confronto com lutas ancestrais como a do povo Mapuche, colocando o Estado como vigilante das parcelas mais organizadas do povo chileno. Com este tipo de representação de valores, estava pavimentado para um possível retorno dos herdeiros políticos de Pinochet.
O eleitor médio chileno de pensamento democrático ou com tendências de centro-esquerda teve como opção a partir de 1990 uma aliança entre adversários históricos (PS e PDC), unidos no processo de abertura e transição da ditadura. O momento em que essa aliança não pode mais expressar-se em conjunto foi justo quando um candidato da direita tinha (e tem) mais chances de ganhar. A tão elogiada “opção chilena”, menina dos olhos dos neoliberais da América Latina, permanecera quase intocada nos quase vinte anos de governos recentes. Com o terreno econômico preparado, a cultura política autoritária preservada (não está intacta, mas se mantém e conta com adeptos na “esquerda”) está dada a atmosfera propícia para pôr uma pá de cal na aliança entre democrata-cristãos e “socialistas”, recebendo a democracia liberal-representativa de braço abertos uma aliança de direita, com um partido pró-Pinochet e outro bastante próximo do genocida na cabeça de chapa.
Para aqueles que apostam na via eleitoral, ainda é cedo para jogar a toalha. Há uma probabilidade de Frei ganhar. Mas, as chances de haver uma mudança substantiva da relação do Estado com movimentos populares, esquerda social e povos originários, são mínimas. Com ou sem um Chicago Boy remodelado (Piñera e seu campo), continuará a haver repressão social no país de Victor Jara. É graças a esta permanência das bases políticas, econômicas, policiais e sociais de Pinochet, que na arena das ruas (e não nas urnas) a coisa deve esquentar ainda mais depois da posse do novo presidente eleito.