Esta obra coletiva é um primor de investigação e compilação de dados e uma mostra do horror de Estado promovido pelas duas linhas de dentro da caserna e seus aliados civis que nunca deixaram parcelas do governo central no Brasil  - Foto:virtualia
Esta obra coletiva é um primor de investigação e compilação de dados e uma mostra do horror de Estado promovido pelas duas linhas de dentro da caserna e seus aliados civis que nunca deixaram parcelas do governo central no Brasil
Foto:virtualia

8 de abril de 2010, da Vila Setembrina de Farrapos traídos em Ponche Verde, Bruno Lima Rocha

No ano de 1985 a Arquidiocese de São Paulo lançara pela Editora Vozes um livro marco no país. Chama-se Brasil: Nunca Mais! E trata-se de uma profunda e precisa compilação da tortura como ferramenta estruturante do terrorismo de Estado após o Golpe de 1º de Abril de 1964. Não me recordo de um militante da década de ’80 que não o tivesse lido. A obra causara polêmica por reafirmar o que já era sabido. Isto porque o tema da ditadura, a saída do regime, o questionamento ao acórdão da anistia para torturadores e criminosos de lesa-humanidade e o reivindicar dos mártires da resistência era freqüente. O tema circulava, assim como o medo e o espírito de reivindicar os que caíram pela causa coletiva.

Hoje, 25 anos depois, passados quase oito anos de um governo de “esquerda”, nenhuma força política com projeção nacional recorda o passado recente? E por quê? Várias razões podem ser atribuídas, tais como: o horizonte ideológico mudou (o que é verdade, mas não justifica); a preocupação do eleitor mediano não é essa (o que implica admitir que o proselitismo é a regra da política); a repulsa às ditaduras entra no problema da liberdade, um tabu para boa parte das esquerdas (o que também é verdade, mas soa à técnica do avestruz, enterrando a cabeça na terra à espera de momentos melhores que nunca virão por espontânea vontade coletiva); parte da “esquerda” hoje é aliada dos herdeiros da ARENA e parte da antiga resistência ao golpe compôs o governo FHC (o que só reforça a idéia de que há um esquecimento forçado em função de alianças de ocasião, pautadas pelo pragmatismo político e a convivência em tolerância com as piores práticas dos aliados civis dos militares golpistas).

As farsas da história são solenemente repetidas como novidades. Assim a re-significação de operadores ocorre sem problema. Um exemplo disso deu-se na Europa do Pós-Guerra, quando ao não fazer a prestação de contas a fundo, as sociedades do centro do capitalismo toleraram ex-nazis e ex-fascistas posando de democratas. Um gritante exemplo deu-se com Klaus Barbie, conhecido como o Açougueiro de Lyon, e cuja rede de relações e tráficos de nazistas pela América Latina fora utilizada pela CIA durante o período das Fronteiras Ideológicas.

Na questão da falta de memória histórica brasileira, intriga não apenas ver a boa convivência entre ex-adversários – como nas políticas de comunicação, entre Franklin Martins (secretário de Imprensa e Propaganda da Presidência, ele próprio um ex-guerrilheiro) e o ex-ministro das Comunicações Hélio Costa (ex-correspondente da Voice of America, baseado em Washington durante um bom período da Ditadura). Não há acúmulo de forças com mentalidade de câmbio que resista a tamanha promiscuidade política. E, sejamos justos, no governo anterior (Fernando Henrique Cardoso, de 01/01/1995 a 01/01/2003) ocorreu o mesmo. Mas, como os tucanos já chegaram ao poder com discurso mais lavado e convivência por dentro do MDB com ex-Udenistas e ex-raposas do PSD que também apoiaram ao golpe, notou-se menos o conflito de identidades.

É igualmente intrigante tentar compreender o porquê dos países hermanos saírem às ruas nas datas de luto e luta pelo Golpe de Estado. Existe um padrão nos protestos de argentinos nos dias 24 de, dia do golpe de 1976, comandado pela Junta Militar tendo o general Jorge Videla e o almirante Eduardo Massera à frente. O mesmo se repete no Uruguai, quando é dia 27 de junho, recordando o de 1973, auto-golpe comandado pelo então presidente Juan Maria Bordaberry com a participação do Estado-Maior Conjunto. E as ruas chilenas fervem nos dias 11 de setembro, lembrando o 11/09 de 1976, data do golpe de Estado das Forças Armadas chilenas, cuja cabeça operacional era o ex-chefe do Estado Maior do Exército durante o governo Allende, o próprio golpista Augusto José Ramón Pinochet Ugarte. Nestes três países, com maior ou menor radicalidade e nível de conflito, agrupações de esquerda reivindicam seus mártires e dão significado para as lutas contemporâneas aos militantes que caíram no período anterior. Ao mesmo tempo, aqui no Brasil, nenhuma força política de projeção nacional se arrisca na auto-imagem de bom comportamento e convivência tranqüila com a democracia de tipo representativo-burguês e, por tanto, não reivindica aos guerrilheiros do Brasil. Não serão abertos os arquivos e nem será aprovado um Plano Nacional de Direitos Humanos contundente caso não exista ação coletiva organizada para tal. Eis a diferença e eis o perigo.

Como se sabe, a memória e a história caminham de mãos dadas, e qualquer idéia de futuro comum, depende da noção do processo que nos levou ao tempo presente. Por isso, ao não recordarmos da ditadura militar, de seus aliados políticos civis, dos agentes econômicos associados e da política externa dos EUA à época, nós – enquanto latino-americanos – abrimos caminho para que situações de golpe retornem ao tabuleiro de possibilidades. Assim ocorreu na Venezuela, em abril de 2002, na tentativa de secessão da Meia Lua boliviana em agosto de 2008 e no golpe jurídico-político-militar de Honduras em junho de 2009. Neste último, nós, latino-americanos, perdemos. Para os desavisados, é bom lembrar que o governo de Obama-Hillary já teve mais vitórias na América Latina em menos de dois anos do que Bush Jr em seus terríveis oito anos à frente do Império.

Diante da mudança de quadro, com novamente o Império voltando parte de sua atenção para Nossa América, finados operadores de inteligência como Dan Mitrione ou Lincoln Gordon, ex-embaixador dos EUA (no Brasil aqui servira entre 1961 e 1966) e um dos artífices do Golpe de 1964, devem estar sorrindo nas profundezas diante do abandono das esquerdas brasileiras da luta por Memória, Verdade, Justiça e Punição a todos os culpados. Ao não reivindicar o passado se abre uma perigosa margem para o amanhã voltar a ser como um ontem de roupagem diferente. Este crime, o da omissão política, também deve ser moralmente condenável.

Este artigo foi originalmente publicado no portal do Instituto Humanitas Unisinos (IHU) e no de Claudemir Pereira

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