Bruno Beaklini – março de 2024 (blimarocha@gmail.com) – artigo originalmente publicado no Monitor do Oriente Médio
Um dos debates que marca o Sistema Internacional no pós Guerra Fria é a identificação, por parte do ocidente, no Islã como seu outro adverso, o inimigo difuso a ser derrotado ou “pacificado”. Uma tese clássica neste sentido é a do Choque de Civilizações. O trabalho é do cientista político estadunidense Samuel P. Huntington. Originalmente em forma de artigo, publicado em 1993, a obra “evoluiu” para um libelo essencialista com a densidade de um livro.
Embora tenha alguma sofisticação, o trabalho se debruça sobre uma hipótese de “essência cultural”, indo ao encontro à época de seu lançamento (1997), com a política externa de Bill Clinton (presidente dos EUA, democrata, governando de 1993 a 2000) e a Globalização Transnacional Capitalista. Depois, com a guinada ainda mais à direita do Partido Republicano, a tese se “ressignifica”, dando alguma estrutura para a “guerra cultural” baseada em mística, irracionalismo e desinformação.
Dentro do Grande Jogo Internacional, o peso da Ásia é tamanho que até suas rivalidades formativas dão base aos posicionamentos do século XXI em sua terceira década. A Islamofobia, por demais estimulada pelos Estados Unidos, ganha outra dimensão na disputa entre Índia e Paquistão. A tensão continental atingiu aos fóruns adequados da ONU, conforme vemos abaixo.
A ONU contra a Islamofobia
A Septuagésima Oitava sessão, 62ª reunião (no turno da manhã) da Assembleia Geral das Nações Unidas, dentro 193a assembleia apontou o tema relevante da Islamofobia. Na sede da ONU, em Nova York, no dia 15 de março de 2024 (não por acaso na data que se celebra o Dia Internacional de Combate à Islamofobia) a maior parte dos países membros tomou a posição adotando a resolução que condena a violência antimuçulmana, apelando para uma ação imediata contra a intolerância religiosa. Segundo o informe da ONU, alguns Estados-Membros se opuseram ao enfoque do texto numa religião, tentando a todo custo diluir a posição especial da ONU.
O texto base trazia a proposta do Paquistão (A/78/L.48), complementada pela proposição conjunta ( A/78/L.51) de Alemanha, Áustria, Bélgica, Bulgária, Chequia, Chipre, Croácia, Dinamarca, Eslováquia, Eslovénia, Espanha, Estónia, Finlândia, Francia, Grécia, Hungría,
Irlanda, Itália, Letónia, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Holanda, Polônia, Portugal, Romênia e Suécia, com a seguinte mensagem de resolução:
Condena a incitação à discriminação, a hostilidade ou a violência contra as pessoas por motivos de religião ou crenças, incluindo o que se diz contra muçulmanos, assim como o número crescente de ataques contra locais de culto e santuários e expressa preocupação por outros atos de intolerância religiosa, estereótipos negativos, ódio e violência.
Outro complemento (A/78/L.52) implica responsabilidades diretas para o órgão coordenador máximo da ONU implicando em:
Convite ao Secretário Geral para que designe um ponto focal das Nações Unidas, dentro das estruturas e dos recursos existentes, para combater a discriminação contra os muçulmanos.
Infelizmente, o que era para ser um momento de raro consenso e agenda positiva da ONU se transformou em queda de braço entre as duas principais partes componentes do antigo Rajastão Britânico (resultando em dois países, Índia e Paquistão, além de outros territórios).
Islamofobia e realismo regional: Índia x Paquistão
A publicação Indian Express, em texto difundido na data de 16 de março (2024), trouxe o seguinte título de uma matéria sobre a resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU).
A Índia se abstém na AGNU sobre a resolução do Paquistão sobre a islamofobia, diz que a religiofobia contra o hinduísmo, o sikhismo também deve ser reconhecido
De acordo com a matéria, o Hindustão (sinônimo de Índia ou Bharat) absteve-se na Assembleia Geral da ONU relativamente a um projeto de resolução apresentado pelo Paquistão e co-patrocinado pela China sobre a islamofobia, afirmando que a prevalência da “religiofobia” contra o hinduísmo, o budismo, o sikhismo e outras religiões que enfrentam violência e discriminação também deve ser reconhecida, em vez de destacar apenas uma religião.
Insiste a liha oficial da Índia na interpretação não exclusiva de religiões monoteístas afirmando que:
A Assembleia Geral de 193 membros adotou a resolução “Medidas para combater a islamofobia”, apresentada pelo Paquistão na sexta-feira, com 115 nações votando a favor, nenhuma contra e 44 abstenções, incluindo Índia, Brasil, França, Alemanha, Itália, Ucrânia e Reino Unido. A Representante Permanente da Índia junto da Embaixadora da ONU, Ruchira Kamboj, expressou a condenação de todos os atos motivados pelo antissemitismo, pela cristianofobia e pela islamofobia, mas afirmou que é crucial reconhecer que tais fobias se estendem para além das religiões abraâmicas.
O argumento de Nova Déli e sua representação diplomática de alto nível profissional defende as religiões politeístas no plano discursivo, mas chama atenção para o tema da concorrência direta dentro do Sul da Ásia, contra o Paquistão, e mesmo em escala continental – sendo a China sua aliada econômica, mas rival política. Como vimos acima, a força indiana é tamanha que conseguiu 44 abstenções e com países de peso no Sistema Internacional, como listado acima. Dentre as delegações que se abstiveram, estava a representação brasileira.
Índia e Brasil: uma parceria estratégica e em ascensão
As informações que seguem dão conta da importância – devida e correta – que o Brasil dá para a relação estratégica e de complementaridade econômica com a Índia (Bharat, segundo a própria designação de Nova Déli).
Segundo a Agência Governo BR, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o vice Geraldo Alckmin receberam, na tarde da segunda-feira, 25 de março, no Palácio do Planalto, o presidente do Conselho da Tata Sons, Natarajan Chandrasekaran. Também estavam presentes o vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Industria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin, e o presidente da APEX Brasil, Jorge Viana. O grupo indiano visita o Brasil em missão de prospecção de novos negócios.
O mandatário brasileiro presidente ouviu de Chandrasekaran que o grupo Tata, além de já existir há 150 anos, tem em seu portfolio: a indústria automobilística (com fabricação própria ou pela aquisição da Jaguar-Land Rover); setor energético (com ênfase na produção de componentes para energia eólica e solar); setor de biocombustíveis e veículos elétricos (dentro do marco da transição energética); presença no agro; em fertilizantes, em medicamentos, em serviços financeiros e de seguros e na indústria aeroespacial. Estão previstos investimentos em novas cadeias de valor e também deve iniciar atuação nas áreas de baterias de lítio e semicondutores.
Em termos de presença no Brasil e perspectivas de expansão, o investimento direto é notável. Hoje são 5 mil trabalhadores no país e os planos indicam uma nova fábrica em Londrina (PR), na área de TI, com possibilidade de emprego direto para ao redor de 2,5 mil funcionários.
O ciclo de crescimento das relações bilaterais é considerável. Na reunião realizada na Índia, em 2008, momento em que o fluxo de comércio era ainda menor e que o desafio era chegar a US$ 10 bilhões, meta hoje concretizada, mas ainda pequena. As alianças do Brasil com a Índia, materializada no G20 e na interna dos membros fundadores do BRICS, indicam uma complementaridade de médio prazo, incluindo investimento estrangeiro direto (mútuo) e desenvolvimento de novos negócios, adentrando por novas cadeias de desenvolvimento (alguns de alto valor agregado). O mercado indiano, com uma população de 1,4 bilhão de pessoas, pode ser o destino majoritário de boa parte de nossas exportações nas próximas décadas.
Logo, pelos interesses do Estado brasileiro, temos a interpretação válida pela abstenção do país – criticada por este analista e esta publicação – na resolução (aprovada) em que a ONU condena a islamofobia. É compreensível a pressão indiana mas não é de bom grado a abstenção do Brasil. Menos mal que a medida passou na Assembleia Geral das Nações Unidas. Ainda assim, toda postura dúbia ou “neutral” da diplomacia profissional do país pode servir de combustível para os sionistas e seus aliados de extrema direita atuando na política doméstica nacional.