A aproximação entre Irã e Turquia, dois Estados representantes de matrizes civilizatórias pan-islâmicas e não-árabes pode vir a criar um novo eixo de força no Oriente Médio e na Ásia Central; freando tanto o integrismo sunita/wahabita como as pretensões do Império e de Israel.  - Foto:blog.foreignpolicy
A aproximação entre Irã e Turquia, dois Estados representantes de matrizes civilizatórias pan-islâmicas e não-árabes pode vir a criar um novo eixo de força no Oriente Médio e na Ásia Central; freando tanto o integrismo sunita/wahabita como as pretensões do Império e de Israel.
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28 de maio de 2010, da Vila Setembrina dos Farrapos traídos por latifundiários que se recusaram a ganhar uma guerra, Bruno Lima Rocha

É comum escutarmos apelos midiáticos afirmando que o desenvolvimento nuclear do Irã justifica uma preocupação da assim chamada “comunidade” internacional. Mesmo discordando dessa idéia de multilateralismo nunca verificado, eu diria que a resposta certa é ambivalente.

Sim, justifica uma preocupação porque o Irã de fato pode e deve vir a gerar capacidade de desenvolvimento de armas nucleares. O momento atual, de negociação com a Agência Internacional de Energia Atômica (IAEA, ver: www.iaea.org) também pode dar o tempo necessário para, em segredo absoluto, simultaneamente desenvolver a tecnologia necessária. Mas, este caso nem de longe se parece com os do conflito no Golfo. O Iraque não tinha condições de desenvolvimento de armas de destruição em massa, ainda mais depois da derrota-empate do Império (sob governo de Bush pai) na 1ª guerra do Golfo. Agora o caso é outro. O Irã é um país com alto desenvolvimento tecnológico, bom padrão educacional e um aparelho de Estado mais forte e menos corrupto do que o ex-Estado criado pelos ingleses e dominado pelo clã Hussein como chefe político dos clãs sunitas afiliados ao “partido” Baath. Ou seja, o Irã pode vir a construir a bomba sim.

E a preocupação NÃO é significativa porque o Irã ter a capacidade beligerante nuclear não significa uma perda ou perigo para a comunidade internacional. Digo não necessariamente. Israel tem a bomba, Índia e Paquistão também e não passamos por uma guerra nuclear na Ásia Central, no Oriente Médio ou no Subcontinente Indiano. O que muda é a perda de capacidade dissuasória israelense sem ter um adversário à altura. Isso se vier a acontecer, será uma novidade.

Como somos permanentemente bombardeados por informações e releases saídos de think tanks de Washington, é muito difícil separar as posições políticas da desinformação em escala industrial, fabricada para que não tenhamos opinião crítica. É comum ouvir de forma retumbante que o Estado persa não tolera a subordinação “natural” de um país periférico (ainda que desenvolvido), para o “equilíbrio da Paz e Segurança internacional”. Bem, se levarmos em conta que este “equilíbrio” fez-se sentir em seu país com um golpe de Estado sucedido de uma monarquia corrupta como a do Shá Rehza Pahlevi, então é coerente que o presidente do Irã tenha uma postura contundente e não subserviente para com os países centrais. Parte-se de um princípio de equivalência e vejo isso como positivo. Se Israel tem a bomba, e é um Estado belicista, porque outro Estado rival, através de seu governo não pode desenvolvê-la? O acordo não é viável para a atual estratégia do Império para o mundo islâmico porque entraria em desalinho com o vetor israelense. Dada a sua inferioridade numérica, o país de Menahem Begin necessita ter superioridade militar tecnológica, de material humano, um aporte infindável dos EUA e a capacidade terminativa nuclear. Caso venha a perder estas capacidades, ou uma destas, muda o jogo de forças em todas as regiões envolvidas (Oriente Médio, Golfo Pérsico e Ásia Central).

Neste cenário a posição da Administração Obama é no mínimo desconfortável e a de Israel desesperadora. E, como é impossível governar nos EUA sem levar em conta o lobby sionista (o maior do mundo, a AIPAC, com mais de 7.000 funcionários a tempo completo), possivelmente o presidente do Império operou nas entrelinhas, apostando na intensa busca por protagonismo brasileiro. É sabido que o Brasil vem lançando-se por todos os lados e formas como agente fundamental de uma possível nova ordem, baseada no G-20 e não no G-8, que estaria por vir. Isso veio ao encontro do acionar diplomático iraniano, com especial atenção para as possibilidades de parcerias comerciais na América Latina. No terreno sensível, esta ação se fez sentir.

Portanto, não é um absurdo imaginar que a ação da diplomacia brasileira, indo além na execução recomendada pelo presidente dos EUA Barack Obama, endereçada para o presidente Lula e datada de 20 de abril (leia neste link a íntegra da correspondência). O Brasil operou no vácuo entre a Casa Branca da administração Obama e a semi-autonomia do Departamento de Estado (equivale ao Ministério das Relações Exteriores) e o Pentágono (Ministério da Defesa). Mesmo que o acordo não venha a dar em algo concreto – o que é possível, mas não é provável – o fato de por si já projeta o Estado brasileiro para o centro das relações internacionais. Se isto vier a possibilitar a entrada do Brasil com cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, aí então seria a consagração da atual política externa do país. Para evitar o elo de força de Hillary Clinton e a base conservadora da atual administração, optaram pela hipótese de risco, que para azar do próprio Obama, está dando certo.

Ainda que as probabilidades de acerto na manobra fossem baixas, prevaleceu o senso de oportunidade e, nesse sentido, vejo como muito capacitado o pessoal do Itamaraty e da Secretaria Especial comandada pelo gaúcho Marco Aurélio Garcia, operador de todas as etapas do processo. O Irã delimitou as formas do jogo e reduziu o universo de países com quem estaria conversando. Ao excluir possibilidade de acordos prévios, e elencar um país emergente como o Brasil e um da periferia da OTAN (como a Turquia, berço civilizatório como os persas) e visto com muita desconfiança por Inglaterra, Alemanha e França (líderes europeus e da Zona Euro respectivamente), o Estado Teocrático declara aos demais de que forma irá se comportar sob governo integrista. Isto porque tampouco há muita margem de manobra para o presidente iraniano. Se tivesse recuado diante do Ocidente, o governo de Ahmadinejad poderia ter caído, seja por uma leva de manifestações populares de cunho nacionalista, seja por um golpe de Estado, branco ou teocrático-militar.

O tabuleiro ainda não está definido e a interação estratégica é que fará prevalecer, de acordo com os campos de força e, caso, se dê uma aproximação maior entre berços civilizatórios islâmicos não-árabes, como Turquia e Irã. Tenho de ressaltar que o envio da carta do Irã para IAEA apenas adia a retomada do problema. O tema do combustível enriquecido e as armas de destruição em massa do Iraque ficaram indo e vindo por mais de uma década, até os EUA consumarem a 2ª invasão, sem apoio da ONU e nem de nenhum outro organismo internacional. Desde 2005 que me lembro de ver o tema do potencial nuclear do Irã ser pautado e encontrar eco em agendas internacionais. O que pode alterar essa balança é uma nova distribuição de poder em escala global e também em regiões tensas e de recursos estratégicos para o atual modelo de expansão capitalista. Os acordos de momento paralisam a investida do Departamento de Estado, mas é uma questão de tempo para que se criem acidentes internacionais de modo que a vigilância sobre o Irã retorne.

Observação fundamental: É preciso ressaltar dois aspectos. Um, trata de jamais pensar em alinhamento automático entre a análise que fiz e o apoio, tácito ou velado, ao governo Lula. Ao mesmo tempo, posiciono as críticas a estes oito anos de ocupação do Poder Executivo do Brasil por esquerda e longe das urnas. Outro aspecto aborda o tema do anti-imperialismo e da tentação autoritária. Em nenhum momento estou afirmando ser positivo o regime integrista e tampouco o governo do atual presidente. Internamente a política iraniana é dura contra os dissidentes e mesmo os oposicionistas de dentro do regime não têm tranqüilidade alguma para manifestar suas opiniões políticas, estéticas, societárias e religiosas. Igualmente considero um absurdo qualquer relativismo revisionista quanto ao tema do Holocausto judeu. Houve Holocausto, foi um crime de lesa-humanidade e é e sempre será imperdoável. Tão imperdoável como os massacres contra os palestinos, a exemplo de Sabra e Chatila, Deir Yassin e outros tantos; é tão imperdoável quanto o não cumprimento das resoluções de 1967, que implicariam na retirada de Israel dos Territórios Ocupados. Ressalto que para nenhum parâmetro de sociedade igualitária com liberdades e direitos assegurados, o Irã como regime não é defensável. O que está em jogo é a sua autodeterminação e esta, como tal, é inegociável.

Este artigo foi originalmente publicado no portal do Instituto Humanitas da Unisinos (IHU)

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