05 de abril de 2011 – por Amy Goodman
No dia 28 de março, a Suprema Corte dos Estados Unidos se recusou a ouvir o caso de Troy Anthony Davis, condenado à pena de morte. Foi sua última apelação. Davis recebeu a pena no estado da Georgia há quase vinte anos, depois de lhe considerarem culpado por matar com um disparo Mark MacPhail, um oficial de polícia que estava de folga na cidade de Savannah. Desde a sua condenação, sete das nove testemunhas não policiais se retrataram de sua declaração, alegando coerção e intimidação policial para obter seus depoimentos. Apesar da dúvida que rodeia o caso, Troy Anthony Davis poderá ser executado nas próximas semanas.
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Davis está agora a mercê da Junta de Perdão e Liberdade Condicional do estado da Georgia, que poderia transformar sua pena em prisão perpétua sem possibilidade de liberdade condicional. Será uma luta difícil, apesar dos pedidos de indulto em níveis nacional e internacional realizados por figuras como o Papa Bento XVI, o Arcebispo Desmond Tutu e o ex-presidente Jimmy Carter.
A irmã de Davis, Martina Correia, levou adiante uma campanha incansável para que se fizesse justiça no caso de seu irmão. Em resposta à decisão da Suprema Corte, disse-me: “Ontem ficamos perplexos e consternados ao saber da notícia de que a Suprema Corte dos Estados Unidos rejeitou a petição de Troy. Negou-se a considerar o caso porque (…) a ninguém interessa a evidência de inocência real, e a ninguém interessa ver a retratação de declaração das testemunhas como uma parte realmente forte e viável deste caso, mesmo com a apresentação de novas testemunhas. Acho que precisamos de uma mobilização a nível mundial pelo caso de Troy. A Suprema Corte de Justiça dos Estados Unidos deve se ocupar de uma vez por todas do fato de que neste país não é inconstitucional executar uma pessoa inocente”.
Martina Correia chama a atenção para um importante e desconhecido aspecto sobre a lei de pena de morte nos Estados Unidos: existe um precedente judicial que permite a execução de pessoas inocentes. Ainda que pareça mentira, a Suprema Corte, em um ditame de 1993, sugeriu que “a evidência de inocência real” é insuficiente para libertar alguém. A Corte só atenta para o procedimento das normas jurídicas, mesmo reconhecendo que, assim, pessoas inocentes poderão ser condenadas e executadas. Em tais casos, um prisioneiro poderia solicitar a clemência do órgão executivo. Parece que a Corte ainda não aprendeu o que muitos estados conseguiram entender: que o sistema de pena de morte não funciona e é irreversível.
Recentemente, Illinois converteu-se no décimo sexto estado do país a declarar ilegal a pena de morte. Depois de promulgar a lei, o governador Pat Quinn, disse: “Depois de conferir todas as informações que recebi, cheguei à conclusão de que é impossível criar um sistema perfeito, infalível, livre de discriminação com respeito à raça, ou às circunstâncias econômicas, ou à geografia. É impossível termos em nosso estado um sistema de pena de morte exato e consistente. Acho que abolir esta espécie de punição é correto e justo”. Quinn segue os passos de outro governador de Illinois, o republicano George Ryan, que comutou as condenações à morte de 120 prisioneiros no estado.
A atitude dos dois governadores de Illinois faz lembrar o ex-magistrado da Suprema Corte Harry A. Blackmun, que registrou em 1994 seu voto dissidente, depois da Corte negar a apelação em última instância de um detento do corredor da morte: “Deste dia em diante, não jogarei mais com as máquinas da morte”.
Jogar com a máquina da morte é precisamente o que alguns estados parecem estar fazendo. O tiopental é um dos três venenos presentes no “coquetel” letal usado na maioria das execuções nos Estados Unidos. Hospira, a última empresa com sede no país que fabricava tiopental sódico, deixou de elaborar este fármaco controlado, provocando sua escassez em nível nacional. Os estados começaram a lutar para manter o fornecimento suficiente em suas câmeras de execução. Quando a Califórnia pediu ao estado do Arizona um veneno similar, o subsecretário do Departamento de Correção e Reabilitação de Califórnia, Scott Kernan, escreveu em um correio eletrônico enviado a seus pares do outro estado: “Salvaram-nos a vida…”.
Ao que parece, a Georgia teria importado ilegalmente seu fornecimento de tiopental da empresa Dream Pharma Ltd, de reputação duvidosa em Londres, Inglaterra. A empresa seria administrada por um casal e funcionaria em um espaço alugado nos fundos de uma auto-escola. Georgia não conta atualmente com permissão da Administração de Controle de Drogas dos Estados Unidos (DEA, sigla do seu nome em inglês) para importar substâncias controladas, razão pela qual a DEA recentemente confiscou o fornecimento de tiopental do estado. Enquanto aguarda a investigação do caso, Georgia não contará com o veneno fundamental, inviabilizando dessa forma a execução de Davis ou de qualquer outro prisioneiro condenado à pena de morte.
No mesmo dia em que a Suprema Corte negou a apelação de Davis, a Anistia Internacional publicou seu relatório anual sobre pena de morte. Os Estados Unidos ainda figuram na lista dos principais países que realizam execuções, junto à China, Irã, Arábia Saudita, Iêmen e Coréia do Norte.
Além de liderar a luta pela vida de seu irmão, Martina Correia, peleia por sua própria vida. No dia da falha judicial, completaram-se dez anos da sua batalha contra o câncer de mama. Seu rosto aparece em camionetes de mamografias móveis, que ajudam a salvar a vida de mulheres de baixos recursos em Savannah. A Coalizão Nacional Contra o Câncer de Mama a nomeou junto à ex-presidenta da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, como “mulheres que acertam”. Correia, com sua humildade habitual, sente que somente merecerá esse título quando a vida de seu irmão também for salva.
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Denis Moynihan colaborou na produção jornalística desta coluna.
@2010 Amy Goodman
Texto en inglês traducido por Mercedes Camps y Democracy Now! en español, spanish@democracynow.org
Texto em espanhol traduzido por Rafael Cavalcanti Barreto, revisado por Bruno Lima Rocha. Esta versão em português é exclusiva para o portal Estratégia & Análise. É livre a reprodução desde que citando a fonte.
Amy Goodman é âncora do Democracy Now!, um noticiário internacional que emite conteúdo diário para mais de 650 emissoras de rádio e televisão em inglês, e mais de 250 em espanhol. É co-autora do livro “Os que lutam contra o sistema: Heróis ordinários em tempos extraordinários nos Estados Unidos”, editado pelo Le Monde Diplomatique do Cone Sul.
Comentário da equipe do portal
O tema da pena de morte é presente como argumento discursivo e vem sendo repetido sistematicamente pelo pensamento conservador brasileiro. Não se trata de uma novidade a idéia de um Estado vingador, a punir o desviante pelo bem da coletividade. Esta defesa também se dá forma velada, e por vezes nem tão velada assim, pelas centenas de programas sensacionalistas e policialescos na TV (aberta e por assinatura) e no rádio do país. É relativamente fácil mexer com a ira da massa e apontar para aquele que comete crimes entre iguais como sendo alguém odioso e não passível de correção.
É igualmente simples localizar estes argumentos e suas falhas. O problema de fundo é entrar na idéia de casa de correção, onde o Estado, responsabilizado pelo preso, supostamente faria de tudo para trazê-lo de volta (se é que alguma vez ali já esteve) para uma cidadania plena de direitos e deveres. A animalização das cadeias e a relação brutal do preso para com o preso é deveras retratada em obras cinematográficas, televisivas e jornalísticas e faz parte do arsenal de construções para justificar a pena de morte no Brasil. Vive-se assim uma idéia de animalização da condição humana, de perda da expectativa de algum retorno destes que delinqüem para uma relação social minimamente respeitosa e pacífica.
Não pára por aí o festival de asneiras que é dita e repetida no sentido de defesa da ordem constituída e a exigência do Estado para intervir na garantia de segurança dos cidadãos de bem. Até aí a única novidade é a posição dos críticos ao autoritarismo, aceitando também o pressuposto que não há inocência em crimes de lesa humanidade, mesmo que cometidos por delinqüentes de origem mais humilde. Mas, existem dois problemas de fundo e são de abordagem também relativamente simples e de difícil aceitação intelectual pelo senso comum.
Um destes já se encontra na coluna de Amy Goodman e trata do problema da isenção, da busca por justiça não ser possível de forma total e menos ainda ser livre de construções sociais no ato de percorrer as exigências jurídicas e assim determinar o justiçamento final. Outro problema é da ordem da constatação, considerando que uma parte considerável das elites dirigentes do Brasil e das frações de classe dominante é composta por delinqüentes. E, em geral, em nosso país ao menos, o discurso conservador, a exigência de punição capital caminha lado a lado da corrupção e da violência policial, além da tolerância e admiração para com supostos delinqüentes de colarinho branco. A Operação Satiagraha é a prova cabal daquilo que aqui afirmamos.
Regimes muito autoritários, corruptos, moralistas e fechados usam a pena capital como um trunfo de controle sobre a população, aí incluída a delinqüência de baixo nível. A pena de morte é injusta em todos os sentidos e, por ironia macabra, a sua aplicação isonômica levaria ao extermínio uma parte considerável dos mandatários no país.