29 de maio, Bruno Lima Rocha
Em setembro de 2008 o mundo informado assistia catatônico ao fenômeno que, nas ruas de Madri, ganhara a alcunha de “farsa com nome de crise”. Então, ao longo dos doze meses anteriores, o que era mais um produto de “risco” dos agentes do cassino financeiro, se transformara na “mãe de todas as bolhas”. A idéia parafraseava a consigna e bravata de Saddam Hussein, quando disse ao ex-presidente George H.W.Bush e, uma dúzia de anos depois, repetira-a para seu filho, afirmando ter o poder de enfrentar a “mãe de todas as batalhas”. Existe uma semelhança nos dois momentos históricos recentes. Na política externa, Bush Jr. e seu gabinete de falcões vinculados a indústria do petróleo (como Dick Cheney e Condoleezza Rice), ampliara o conceito de Guerra contra o Terror. Com a ofensiva militar em escala global, veio o período máximo da “exuberância irracional” dos apostadores financeiros. Deu no que deu e nesta senda Barack Obama ganhou as eleições de novembro de 2008.
Trata-se de dois consensos forjados na base do consentimento e através da forja de meias verdades. O primeiro e já deveras estudado foi o golpe midiático de Bush Jr. Manipulando o pânico dos EUA pós-11 de setembro, conseguiu a autorização para a guerra atropelando ritos parlamentares (fast track), aprovando o Patriot Act (Ato Patriótico) e criando o Ministério do Interior (DHS, Department of Homeland Security). A lista dos absurdos rendeu pérolas do cinema, como Farenheit 9/11 (Michael Moore, 2004, EUA) e um livro já clássico em português, A Desintegração Americana (Record, 2006), do Nobel de Economia Paul Krugman, sendo ele próprio colunista do New York Times e um quase arrependido da globalização a todo custo. Após oito anos de Bush Jr. o Império estava com uma em cada três brigadas operando no exterior, uma crise sem precedentes e os reflexos agudos da infra-estrutura produtiva parasitária baseada em capital fictício.
Esta conta seria paga com a “mãe de todas as bolhas”. Para sair desta encruzilhada, os EUA foram beber em sua democracia multirracial (melting pot), parindo a versão de um Kennedy afro-descendente. Barack Hussein Obama fez campanha sentimental, organizou uma transição e os primeiros seis meses de governos baseados na cartilha pós-New Deal (2nd Bill of Rights, 2ª Carta de Direitos, de Franklin Delano Roosevelt, jamais executada) e pouco a pouco foi contemporizando com os agiotas e apostadores do cassino financeiro. Tal pacto é exemplarmente demonstrado no filme Trabalho Interno (Inside Job, de Charles Ferguson, 2010, EUA), dando carne ao conceito de teoria das portas giratórias, provando como grandes tubarões de Wall Street continuaram ocupando postos-chave. Um exemplo é a presença em seu governo do professor de economia de Harvard, Larry Summers, homem forte da desregulação promovida por Ronald Reagan. Pouco a pouco os níveis de lucro dos grandes operadores financeiros foram sendo retomados, sendo que a conta grande fora paga na rolagem da astronômica dívida interna do Império, e na bola de neve contaminante das instituições bancárias européias.
Quatro anos depois, o consenso da direita financeira é forjado no outro lado do Atlântico. Liderados por The Economist, replicado por dezenas de meios massivos e plataformas multimídia (como Bloomberg, CNN e o Grupo Prisa espanhol), a versão válida, a idéia pensável como nos explica Noam Chomsky é remodelada. No último trimestre de 2008 parecia que a face mais crua do capitalismo estaria exposta. Não, pois através dos acordos entre mídia, operadores financeiros e tomadores de decisão, a conta veio sendo paga pelo modelo mais sano dentro deste marco civilizatório de lucro e diferenciação social. O Estado de Bem Estar Social (ou o que dele restara) passa a ser o alvo. O argumento é simples. A conta dos direitos e garantias sociais para uma população que produz pouco e ganha relativamente bem, não fecha. A Europa não é competitiva diante dos BRICs (Brasil, Rússia, China e Índia) é preciso um pacto supranacional, traçado pelo triunvirato da Comissão Econômica Européia, o Banco Central Europeu e o FMI, imposto ao Parlamento Europeu em Bruxelas.
Um bom exemplo está na França. Em 06 de maio deste corrente ano o “socialista” François Hollande vence na urna ao presidente Nicolas Sarkozy, da centro-direita UMP, pós-gaullista. Antes de Hollande se oficializar como candidato do PS francês, o então favorito era o ex-diretor geral do FMI Dominique Strauss Kahn (DSK). Ou seja, se o presidente eleito francês sucede o controverso DSK, perigo sistêmico algum estava à vista. Certo? Não para a revista The Economist, que fizera um alardeio, considerando um “risco” o fato de que o novo chefe do Poder Executivo da segunda economia da Zona Euro (França, atrás apenas da líder Alemanha) seria mais suscetível as pressões “populistas” vindas das ruas e dos sindicatos. A eleição francesa e a pulverização do parlamentarismo grego (cujo pleito também foi na mesma data) representavam, segundo a narrativa da revista, respectivamente, a quebra da “austeridade” vigiada por Angela Merkel (chanceler alemã) e a ingovernabilidade na periferia da Comunidade Européia.
Pura inversão dos fatos e responsabilidades. Após quatro anos, a “farsa com nome de crise” teria como causa alegada a elevação dos gastos públicos e o endividamento. O problema é que estes crescem na medida da destinação estatal dos recursos coletivos para salvar bancos e fundos de risco. Para quem vive de salário, a “austeridade” pública implica ganhar menos, tardar a aposentadoria e viver sem perspectiva. Eis o novo consenso da direita financeira e seus ideólogos midiáticos.
Este artigo foi originalmente publicado no site da Revista Instituto Humanitas (IHU Online).