Rio de Janeiro, novembro de 2000
Este trabalho é apenas um artigo opinativo. Trata-se de um exercício de opinião para um "veículo" (suposto) para onde este artigo deveria ser voltado. Estipulo que este seria um jornal de esquerda, um semanário co-financiado pelas entidades do movimento popular de uma determinada região metropolitana brasileira (ao qual não especifico). O "veículo" trabalharia no conceito de "frente jornalística", forma parcialmente adotada na dita imprensa nanica da década de 70. Tal jornal impresso seria regulamentado por um conselho das entidades financiadoras onde se determina a definição estratégica da linha editorial assim como os graus de autonomia tática que a equipe de redação e colaboradores podem adotar.
Caracterizo o "artigo do trabalho" como o de um colaborador, militante de base de uma comunidade periférica e coordenador do movimento de associação de moradores local.
O eixo do artigo será a importância da ação direta para formação política dos militantes, como forma de aumentar o grau de iniciativa dos militantes, e conseqüentemente aumentando a capacidade dos movimentos sociais.
Buscando alguma fundamentação filosófica, fui nas premissas básicas de Hume e encontrei resposta. Procuro fazer a analogia das impressões fortes, geradoras de maior afecção nos indivíduos convivendo numa natureza (afecção), onde a condição é necessariamente de parcialidade (Hume). Espero me fazer compreender.
A modalidade de luta e formação popular
"Vivemos um momento político onde nunca a classe oprimida se viu tão bombardeada por uma carga de valores e necessidades construídas pelo inimigo. Nossa renda e padrões de vida são achatados dia-dia, paralelo a isso, o tecido social dos bairros se fragmenta, levando a "guerra entre os pobres". Justificando assim a militarização da cidade e a presença ostensiva do braço armado do sistema em nossas comunidades.
Quando a crise se aprofunda e o desespero cresce, é nesta hora quando mais se necessita de uma esquerda corajosa e independente. Nas situações limites, ou os indivíduos são alicerces da luta coletiva, ou se tornam os melhores porta-vozes que a direita poderia um dia sonhar. A formação coletiva é em grande parte, reflexo daquilo que cada militante apresenta como experiência e trajetória militante. Seja na prática teórica, seja no barro e na rua. Se a formação política da militância resumir-se a uma repetição de chavões com espasmos de derrotismo ideológico, tal como trocar a luta de classes pela "cidadania para todos" então a prática política dos movimentos sociais será apenas um conjunto de reflexos pálidos. Tímidas convocatórias que supostas lideranças, isoladas e encasteladas em burocracias legalistas, nos fizerem acreditar como verdade.
Se faz urgente e necessário uma profunda discussão coletiva a respeito da formação dos ativistas. Precisamos recriar o trabalho de prática teórica a partir da utilização de conceitos concretos. Conceitos que sejam verdadeiras ferramentas para analisar e intervir na realidade. Nenhuma ferramenta é criada por acaso, é necessário que o corpo de princípios e idéias-guia seja redefinido. A partir daí, forjarmos nossas próprias ferramentas de trabalho. Este pode ser de cunho político, organizativo, formador ou de agitação.
Ao entrarmos na discussão de princípios e idéias-guia (bases doutrinárias onde alicerçamos a prática e o acionar militante), pisamos num terreno bastante incerto. É da natureza dos princípios de atuação serem estes particulares a determinado grupo. Se hoje o reformismo é hegemônico na maioria das entidades, sem dúvida que um dos sintomas desta hegemonia é o fato da maioria dos militantes de base serem levados a confundirem os princípios de uma esquerda pelega e conciliadora, como sendo "princípios naturais e até mesmo históricos" do conjunto da esquerda brasileira. Nada poderia ser mais errado.
Nas duas primeiras décadas do século XX, a hegemonia anarquista na luta operária, construída com suor, inserção e barricadas, gerou uma profusão de princípios e idéias generalizadoras para o conjunto dos movimentos sociais urbanos. Neste momento histórico, conceitos como luta de classes, abolição da propriedade privada, resistência econômica, controle coletivo dos meios de produção, apoio mútuo, solidariedade de classe, auto-defesa popular, pedagogia e educação libertária e outros mais, eram "naturais" para os sindicatos combativos. Tão "naturais" como hoje é "natural" para a maioria petista crer que o discurso de "cidadania e a luta eleitoral" podem gerar conquistas de fundo, como por exemplo a reforma agrária (?!).
Se nós que militamos nos setores mais combativos do movimento popular não crêem em tais pressupostos, é justo porque partimos de outros princípios orientadores de idéias. Estes nos fazem trabalhar pela radicalização das lutas protagonizadas por uma parcela organizada (minoria ativa) da maioria oprimida. Nossos princípios não são tirados do nada, são aquilo que cremos e interpretamos com os próprios olhos. A observação é no concreto, vemos o que vivemos, e nossa função como militantes é transformar a realidade de nossos bairros e comunidades. Por outro lado temos que compreender que a mesma observação desta realidade, particularizada por pressupostos pelegos, pode gerar outra interpretação. E é necessariamente isso o que acontece.
As burocracias afirmam estarmos em crise de paradigmas. Em suas mentes, a realidade não corresponde mais aos pressupostos teóricos elaborados por suas direções (marxistas e/ou reformistas). Portanto, ou muda-se a realidade (por decreto de pensamento abstrato), ou alternam os pressupostos, as bases do pensamento de esquerda, independente da corrente ou trajetória política. O produto final dessa mistura entre abstração e reformismo é uma própria interpretação da realidade, que como toda interpretação social, nada tem de científica mas muito de particular. Nesta postura, propositadamente se confunde pragmatismo político, aplicado na base da negociação de um programa mínimo, com análise empírica da realidade. E vem daí a combinação que gera a reprodução da hegemonia formativa nas esquerdas. O controle do aparato político-burocrático somado a um campo de alianças altamente "flexível", gera a hegemonia conceitual de superfície. Quanto menos se participa, menos experiência política, e portanto, maior nível de reprodução de linhas já estabilizadas.
Para alterar este quadro, é fundamental a prática da ação direta. Podemos dizer, a partir de um ponto de vista revolucionário, que se numa experiência política coletiva o indivíduo militante não passar por uma forte influência, então não houve experiência alguma. Seja esta experiência ir a uma passeata, criar uma associação, ocupar terras devolutas ou trabalhar num veículo popular de comunicação. Por outro lado, se a experiência gera a noção de "estabilidade", com alto grau de permanência em relação ao sistema, o indivíduo reproduz uma linha política frouxa, e assim garante a hegemonia dos reformistas. Sobre este ponto temos de reforçar nossa vontade transformadora. Ou alteramos a linha formativa da militância através da prática da ação direta em todos os níveis possíveis nesta conjuntura de "normalidade democrática". Ou então teremos de aceitar o jogo do pelego, cúmplice e parceiro do inimigo opressor. Para entrar nesse jogo, temos de abrir mão do ativismo de base e partir para as disputas e conciliações de gabinete. Como dizem na burocracia, teremos então de entrar na "luta eleitoral" burguesa e disputar os aparatos falidos e verticalizados dos movimentos populares.
A via transformadora dos paradigmas é outra. Gerarmos mais e mais experiências de ação direta, influenciando a capacidade criadora dos militantes e a partir da radicalidade, estabelecermos um outro consenso. Disputas de gabinete fariam exatamente o que o pelego quer. Formaríamos uma nova burocracia, e o pior, com bom nível de experiência. Para os setores combativos, o método tem de ser outro.
Somos aquilo que fazemos e só fazemos o que ao menos pensamos saber. Por esta lógica, quanto mais soubermos, mais poderemos fazer. A importância da experiência reside justamente aí. Teremos acúmulo de forças para disputarmos as estruturas de coordenação dos movimentos, no exato momento que tivermos a mesma capacidade de forças para transformar estas estruturas. Transformaremos as estruturas vigentes na sociedade uma vez que nossas próprias estruturas organizativas possibilitem serem elas mesmas o embrião da mudança. Mudança em todos os planos, somente possível com a ação direta em todos os níveis de incidência. Apenas apontando os níveis, estes seriam econômico, social, político, técnico e ideológico.
Voltando a este ponto, a ação direta tem de ser o elemento básico para a formação política do militante. É ela que permite o salto de radicalidade na formação. A ação transforma a mera reprodução de uma carga tênue de valores, conceitos e linha política, para tornar-se num instrumento de prática teórica. Em sua essência aqui proposta, a prática teórica é uma construção de conceitos:
Teoria + Experiência Acumulada + Análise da Realidade + Doutrina Básica
E, tudo sempre testado na prática política, ou seja, na aplicação de realidades conjunturais.
Eliminando ao máximo as intermediações, mantendo apenas aquelas que são de fato necessárias, proporcionaremos maiores níveis de responsabilidade para os militantes. Assim, a experiência concreta nos planos organizativos, político-formativos, econômicos, culturais e agitativos, a militância se forjará na prática, compreendendo esta prática a realização das mais distintas tarefas. Revezando as intermediações executivas, elegendo-as por delegação, quebraremos os mitos de líderes cristalizados. Líderes-burocratas estes que são necessariamente reproduzidos pela burocracia encastelada e hegemônica.
Por fim, cremos nos fundamentos da necessidade de gerar experiências políticas de grande impacto, nos planos das práticas políticas e teóricas. Entendemos ser fundamental para um projeto revolucionário e de massas, a forja de uma militância capacitada a reproduzir experiências vivenciadas por ela mesma. Reforçando a passagem do maior número possível de militantes por experiências políticas variadas, vamos alicerçar nosso projeto político no concreto. Assim, forjaremos nossos conceitos nos embates das lutas sociais. Vamos ter a possibilidade de romper pela base a hegemonia dos reformistas e criaremos estruturas federativas de movimento popular a partir da própria luta do povo. Com o protagonismo da classe oprimida, aí sim, teremos outra vez uma chance de vitória."