Parte da esquerda gaúcha, trocou de inimigo ao longo de 25 anos. Do temor a coronéis como Manuel Contreras, ao crime eleitoral investigado pelo delegado federal Contreira.

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Viamão, 25 de novembro de 2005

Nesta semana a crise política volta aos pagos gaúchos. Por vias já difundidas em toda a mídia, RBS à frente, as conexões do Valerioduto alcançaram o PT do Rio Grande. Recordemos os dados apenas para refrescar a memória dos leitores. Os indiciados pela Polícia Federal são três petistas: David Stival, da Articulação de Esquerda e ex-presidente estadual da sigla; Marcelino Pies, da Esquerda Democrática, ex-tesoureiro estadual e o filiado Marcos Trindade. A acusação é a de sempre, caixa 2. No caso, a figura jurídica é de crime eleitoral e falsidade ideológica.

Além dos três indiciados, outro personagem é envolvido na história. O também petista Paulo Bassotto fora detido em junho de 2003 no Aeroporto de Congonhas (SP) levando R$ 150 mil em duas malas. Sem contar com esta quantia apreendida pelos federais em São Paulo, destinada a pagar as dívidas da campanha de 2002 junto a uma gráfica gaúcha, o total do dinheiro vivo oriundo da SMP & B para o Rio Grande do Sul é de R$ 1,05 milhão. A operação de transporte foi relativamente simples. Pies foi a Belo Horizonte e trouxe consigo dois cheques de R$ 75 mil. Já Trindade, temeroso de ser detido em aeroportos como ocorreu com Bassotto, arriscou-se bastante. Este militante transportou o total de R$ 900 mil ao longo de três viagens, em ônibus de linha, entre Porto Alegre e Belo Horizonte.

O destino do dinheiro transportado por Pies e Trindade são duas gráficas, a Impresul e a Comunicação Impressa. Tanto os valores trazidos por Pies como por Bassotto são para cobrir dívidas da campanha de 2002. Já o montante trazido por Trindade ainda não foi tornado público seu destino. O titular do inquérito, delegado federal Luís Contreira indiciou a Pies, Stival e Trindade, livrando Bassotto. A acusação tem como base o artigo 350 do Código Eleitoral, encaminhando o material da investigação para a 2ª Zona da Justiça Eleitoral.

As conseqüências destes indiciamentos podem ser nefastas e com certeza serão utilizadas como munição na corrida eleitoral do ano que vem. Inexplicavelmente, PMDB, PFL, PP, PPS e PTB refugaram em abrir uma CPI na Assembléia gaúcha para investigar o Valerioduto no estado. Tanto podem estar guardando artilharia para o ano que vem, ou talvez prefiram não abrir um novo flanco, este no Rio Grande, e poupar energia para a luta dentro e pelo governo central.

A resultante desta refugada foi evitar a abertura de outra CPI que poderia atingir a todos. Esta seria a respeito da privatização das rodovias gaúchas e a instalação de praças de pedágios. Como esta política foi iniciada no governo Britto (então no PMDB, hoje no PPS mas afastado da política pública), passou pela gestão de Olívio-Rossetto (PT) e se manteve no governo de Rigotto (PMDB), tal CPI se instalada seria como uma granada de fragmentação. Ia sobrar para todo mundo, de forma pluripartidária.

Dois partidos não hesitaram em coletar assinaturas para a fracassada CPI do Valerioduto gaúcho; estes são PDT e PSDB. Enquanto o deputado estadual e líder da legenda brizolista Vieira da Cunha grita e esperneia pela retirada das assinaturas, os tucanos do estado atiram mais pesado. O deputado estadual e ex-reitor da Universidade de Caxias do Sul (UCS), Ruy Pauletti vai às tribunas do parlamento gaúcho e divulga cópia do depoimento prestado junto a Assembléia do Ceará pelo deputado do PT (CE) José Nobre Guimarães. Vale lembrar, Guimarães é irmão de Genoíno e chefe de José Adalberto Vieira da Silva, o homem apanhado no Aeroporto de Cumbica em julho último com R$ 200 mil numa valise de mão e US$ 100 mil dólares na cueca.

Neste depoimento, oficial e registrado com notas taquigráficas, Guimarães afirma que os recursos do caixa 2 não apenas alimentaram as campanhas municipais de 2004 como a campanha estadual majoritária de 2002. Uma vez que a CPI do Valerioduto fora barrada na Assembléia do RS, Pauletti joga pesado. Com base nas notas tomadas de um correligionário, o tucano da Serra gaúcha é categórico e pede o indiciamento de Tarso Genro. Mesmo sendo muito difícil que consiga atingir a blindagem moral deste chefe político do PT gaúcho é um dos trunfos para a campanha de 2006.

Como podemos observar, o entrevero aterrisou e de vez nos pagos daqui. Chegou também um sentimento de frustração. Por ironia da história, até o sobrenome do delegado da PF ajuda para isso. Contreira se assemelha a Contreras, o que nos faz recordar ao coronel Manuel Contreras, ex-homem forte do regime de Pinochet, oficial de inteligência que estava à frente da DINA, órgão de repressão política do Chile. Contreras, como é sabido, além de comandar a caça aos inimigos da ditadura militar de seu país, se coordenava com os órgãos semelhantes de regimes afins e impulsionava a famigerada Operação Condor.

Entre a segunda metade da década de ’70 e o início dos anos ’80, boa parte dos dirigentes hoje históricos no PT gaúcho colaborou de alguma forma com a resistência popular e organizações de esquerda do Cone Sul. Porto Alegre vivia então um jogo de gato e rato entre militantes e repressores gaúchos, argentinos, uruguaios, chilenos e paraguaios. De todos os órgãos vinculados a Operação Condor, a DINA era da mais brabas e capazes. O sobrenome Contreras, assim como Couto e Silva, Astíz, Videla, Bordaberry, Stroessner, Massera, Gavazzo, dentre outros, provocava temor e ódio em toda esta geração de ativistas. Passam-se as décadas e tudo muda de figura. O recâmbio ideológico faz com que os IPMs pareçam ultrapassados. Dos porões do Cone Sul os inquéritos foram parar no TRE. Cabe perguntar, tamanha quebradeira para que?

Voltando ao momento de fundação do PT gaúcho, cabe outra referência. Inflamava a militância petista a recente vitória na Nicarágua em 1979 e o impasse político-militar em El Salvador e Guatemala. Em todos estes conflitos havia o peso da Teologia da Libertação e uma orientação socialista mas também democrática. Era impensável supor que 25 anos depois, alguns membros históricos dessa sigla fossem ser indiciados por crime eleitoral. Por outros “crimes” de tipo político, como colaborar com organizações político-militares que combatiam regimes de exceção, até podia ser. Mas, ir em cana por práticas políticas inúmeras vezes condenadas publicamente, isto nem nos piores pesadelos.

Este fenômeno, o da incorporação dos partidos de esquerda nos esquemas clássicos dos partidos tradicionais, é algo que vale a pena e precisa ser estudado. Enquanto isso, a política desta parte da “esquerda” vai ocupando as páginas policiais por motivos nada nobres.

Uma pista de como esta incorporação ideológica ao sistema pode ser acompanhada de cegueira da moral militante nos é oferecida pelo pajador uruguaio Carlos Molina, ele próprio inimigo da ditadura militar em seu país. Conclamando os seus a Aprender a mirar pa’ dentro, este artista popular nos fala com a simplicidade de campo e coxilha:

Triste ignorar ande se anda

A lo escuro, como um ciego;

Pero no hay mayor desgracia

Que ser ciego por adentro.

Artigo originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat

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