TV francesa mostra desespero de um pai tentando proteger o filho palestino durante ocupação da faixa de Gaza por tropas israelenses. Tanto Muhammad Jamal Ad-Durah, 12 anos, quanto seu protetor acabariam mortos em poucos minutos.   - Foto:Addameer
TV francesa mostra desespero de um pai tentando proteger o filho palestino durante ocupação da faixa de Gaza por tropas israelenses. Tanto Muhammad Jamal Ad-Durah, 12 anos, quanto seu protetor acabariam mortos em poucos minutos.
Foto:Addameer

Rio de Janeiro, dezembro de 2000

 

Introdução:

O tema foi escolhido porque acredito ser possível um razoável desenvolvimento no assunto. O martírio pode parecer uma sandice, "fanatismo" ou imbecilidade para o ocidente, mas é algo profundamente enraizado no universo das culturas árabes, e através destas, no mundo islâmico. Não sou especialista no tema, mas partindo de um olhar de "dentro", acredito ser viável uma crítica com algo de consistência.

 

Já explico. Sou descendente de família árabe e já tive alguma participação na política desta comunidade no Brasil. Participei entre os anos de 1993 e 1995 do Comitê pela Libertação da brasileira Lamia Maruf Hassan, ex-condenada a prisão perpétua numa cadeia da Palestina Ocupada. Lâmia foi solta após 13 anos de prisão. Quando afirmo que sou descendente de árabes, esta por si já é uma afirmação política. A direita da colônia diria "descendo de libaneses maronitas", provavelmente uma suposta esquerda árabe-brasileira diria, "descendo de árabes cristãos". Como me posiciono no setor à esquerda, afirmo minha descendência árabe e a familiaridade com o discurso libertador destes povos (afetuosamente nos chamamos de "brimos"). A partir deste ponto de vista, embora buscando um certo rigor desapaixonado, procuro desenvolver o tema do Martírio nos grupos combatentes árabes, tanto de motivação fundamentalista islâmica como os pan-arabistas revolucionários, tais como a FPLP e a FDLP.

 

A vítima

"Até quando? Até quando teremos de exercer a função de carrascos colonialistas em terras ocupadas por nós?" Sem nenhum exagero, estas palavras poderiam ser proferidas por um grupo de pacifistas israelenses ou talvez por um partido socialista judeu, como o Matzpen (ou o pouco que restou dele). O crime foi flagrado por uma câmara da TV francesa, gerando a imagem do menino assassinado que correu o mundo, instantaneamente, através de internet e televisão.

 

Os telejornais do ocidente aos quais assisti (BBC inglesa, CNN estadunidense e TVE espanhola), traziam em suas chamadas: "Violência no Oriente Médio". A mesma manchete foi reproduzida nos jornais e telejornais brasileiros. Descontextualizada, a mensagem de horror do garoto assassinado passava a um público distante e seguro em seus lares que num lugar estranho, onde o único aparelho civilizatório é um Estado ocidental (Israel), a violência atinge níveis "incontroláveis". Com o flagrante do assassinato, não é permissível para os veículos de comunicação utilizarem termos como "fanatismo de radicais islâmicos". Por sinal, esta corrente política, radical islâmico, sequer existe nos países árabes (há uma profunda confusão com o integrismo, que sim existe). A mídia brasileira, como reprodutora periférica dos discursos centrais, passa a idéia: "vejam a que absurdo chegou a situação neste lugar". Todas as chamadas e manchetes enfocam a violência como algo isolado, no máximo como uma reversão ao "processo de paz".

 

As imagens mostram uma criança assustada, protegida pelo corpo do pai, este também ferido, e servindo como alvo para as tropas de ocupação por mais de meia hora. O discurso de neutralidade transmite um fato sem causa. A "violência", que consterna e constrange os países centrais, os mesmos que financiam o Estado de Israel. A criança é uma "vítima" das circunstâncias. Aos 12 anos, seu único crime foi ter estado no lugar errado, na hora errada.

 

A mídia tenta comover a "opinião pública", dizendo que aquele menino nada tinha que ver com seus colegas de colégio, 70% de uma classe primária que após as aulas vai atirar pedras contra os soldados invasores. Seu pai tampouco, embora homem adulto e palestino, não tem nenhuma relação com seus vizinhos, parentes, conterrâneos, amigos e colegas. O discurso individualiza os dois sujeitos como "vítimas" de sofrimentos. Este sofrer aparece como um fato isolado e sem causa, quando muito horroriza mas não explica, universaliza pelo singular (poderia ser o filho de qualquer um, outra criança), mas não generaliza a compreensão da causa (pode ser meu filho pensa um outro pai palestino, outra criança semita).

 

O menino assassinado no muro virou um símbolo no mundo árabe. Dado como exemplo vivo de covardia e brutalidade, sua morte foi e é usada para distintas interpretações além daquela que citei acima. Uma destas, a qual tento me focar, é a do martírio. E, por mais absurdo que possa parecer aos olhos não habituados, o garoto Muhammad Jamal Ad-Durah é tudo menos um mártir, ao menos aos olhos árabes.

 

No dicionário do MEC editado em 1963, a definição de mártir é: "pessoa que sofreu tormentos ou a morte, por sustentar fé cristã; indivíduo que sofre por causa de suas crenças ou opiniões; pessoa que sofre muito". Na mesma edição, martírio está definido assim: "sofrimento ou suplício de mártir; tormento ou grande sofrimento". Destas definições, somente "indivíduo que sofre por causa de suas causas ou opiniões" seria apropriada. O menino assassinado no muro não é um mártir porque não estava passando por tudo aquilo em função de convicções ou compromissos.

 

A causa mortis do garoto foi uma política de Estado, prepotente, imperialista e invasor, que o matou como exemplo. Em situações extremas, os discursos são feitos a bala, tal como neste caso. Se as tropas estavam num conflito de rua (baixa intensidade segundo os manuais militares, anti-distúrbios de acordo com orientações policiais), nem o garoto nem seu pai eram objetivos táticos. Naquele cenário, talvez fossem um alvo secundário, uma forma de desmoralizar e semear o pânico entre a multidão (turba segundo a criminalística) em Intifada (levante, tal como o Levante do Gueto de Varsóvia).

 

O objetivo de longo prazo para o assassinato da criança foi uma afirmação em duas frentes. Simboliza uma posição de força, disputa de influência entre setores trabalhistas, a direita do Likud e a ultra-direita de colonos e ortodoxos, por sobre a oficialidade de alta patente em tempo integral (as forças armadas de Israel são compostas por conscritos, reservistas e profissionais). Igualmente, aponta para a política externa, tanto para os financiadores de Israel (EUA e Alemanha principalmente) como para os "vizinhos" árabes. A mensagem foi nítida e direta. Demonstraram com fatos o que acontecerá, só que em larga escala, com a população civil palestina. Partem do princípio de garantir o "espaço vital" de um Estado expansionista e internacionalizado, afirmando-o como expressão instituída de um povo eleito, demonstração de força das vítimas de injustiças históricas que "nunca, nunca, nunca permitirá que tudo se repita outra vez, custe o que custar, doa a quem doer". Estas palavras são de Ronaldo Gomlevsky, ex-presidente da FIERJ, num evento em 1992 no Teatro Casagrande, zona sul do Rio de Janeiro. O dirigente sionista foi um dos articuladores da presença do Mossad (serviço de inteligência israelense no estrangeiro) no Brasil, durante o governo Collor.

 

Os tiros no menino transpunham uma política de Estado digna do Reich nazista, embora com o discurso de eternas vítimas, mesmo quando o papel é de carrasco. Tal discurso recobra ciclicamente seu fôlego, desde que por qüestões geopolíticas, a esquerda judaica foi desaparecendo pouco a pouco, e um tema tão caro como o holocausto, foi migrando dos intelectuais e grupos de esquerda judaica nos EUA (como o anarquista Noam Chomsky), para as mãos da direita financeira e seu lobby em Washington e Nova Iorque.

 

Com o posicionamento à esquerda do nacionalismo árabe (fundamentalmente a partir do movimento nacional árabe, de base majoritária cristã e ortodoxa) nos anos 1950, somada a Guerra de Independência da Argélia e o "socialismo árabe" dos primeiros anos de vitória (1962-1965, governo Ahmad ben-Bella), o ocidente apontou Israel como seu parceiro para a estratégica qüestão da segurança regional (especialmente no tema do petróleo). Esta posição, somada a hegemonia da direita sionista no interior das diversas comunidades judaicas, coube a esta direita a gerência do discurso da vitimização permanente dos judeus ao redor do mundo. Mais particularmente, esta perseguição ocorreu na diáspora européia, sobre comunidades sefraditas na península ibérica, e asquenazis no leste europeu.

 

O discurso da eterna perseguição ganha contornos ideológicos com a criação do Estado de Israel. Não quero entrar no tema do sionismo, mesmo porque consideraria isto uma leviandade. Ainda que seu projeto tenha sido concretizado a partir da liderança de Theodor Herzl, homem de boa circulação no império Austro-Húngaro e posteriormente principal lobista junto aos banqueiros e dirigentes ingleses (executores do mandato na Palestina ocupada), não acredito na história de mitos e personalidades. O sionismo como sentimento histórico e milenar, é fato e é legítimo. Tão concreto como a ausência da direita judaica na comandância do Levante do Gueto de Varsóvia. Os maiores dirigentes e membros das elites financeiras já haviam comprado seus passaportes no início da ocupação alemã na Polônia, protegendo-se do holocausto e guardando suas finanças (convertidas em dólar) em contas suíças.

 

Voltando ao tema da vitimização, uma vez que este se torna elemento de propaganda de Estado, faz-se necessário a todo o momento ser revigorado, "redescoberto", revivido. Ao contrário do que um ingênuo observador possa imaginar, a política do Estado de Israel não se aplica hoje contra a ressurgida extrema-direita européia (esta sim anti-semita convicta). Como prática de Estado, reflexo de hegemonia empresarial em diversos países, executora do maior lobby de comunidade nos EUA, a vitimização se aplica como discurso legitimador de uma política de dominação. Ainda que inimaginável, ao menos em tese, o assassinato do garoto semita é uma "proteção" das tropas israelenses contra a perseguição ao qual seu povo é acossado (perseguição anti-semita, portanto, também anti-árabe). Nem o mais esquizofrênico dos pensadores pode contestar que o anti-semitismo é uma invenção européia e ocidental, nunca verificado no mundo árabe, mesmo porque seria absurdo imaginar um povo que persegue a si próprio.

 

Muhammad foi assassinado. Em nome da defesa do espaço vital de um Estado imperialista e anti-semita, ainda que alegando estar se defendendo das ameaças a sua própria existência. O garoto foi morto em função de uma disposição tática de tropas de ocupação. A criança foi feita de vítima das "vítimas" que o atacaram, sofrendo os efeitos colaterais de uma elite que apenas se "defende" de ameaças de invasores (que por "coincidência", habitam aquelas terras há mais de 5 mil anos). Não é um mártir palestino, quanto a isto, não nenhuma dúvida.

 

Fedayins

"Minha honra é mais importante que minha vida, por isso vou lutar orgulhoso nas ruas pela Intifada!" (refrão do hino oficioso da primeira Intifada – 1987-1992, rendeu dois anos num campo de concentração ao autor, pena executada pelas Forças de "Defesa" de Israel). Para expor algo de minha compreensão ao tema do martírio, recorrerei um pouco às palavras de ordem e símbolos da luta palestina e árabe a partir dos anos 1950. Entendo ser fundamental contextualizar a segunda Intifada a partir do primeiro levante, e o nível de dramaticidade que este trouxe para a população residente na Palestina ocupada.

 

A OLP foi fundada através de um grupo de jovens dirigentes de classe média (dentre estes o engenheiro civil Yasser Arafat), em Cairo, Egito, no ano de 1964. Pela primeira vez desde a guerra de libertação de 1936-1939 (contra o mandato britânico), os próprios palestinos tomavam as rédeas de seu processo. A este chamaram de "revolução nacional palestina". Entendiam ser fundamental a luta armada contra o Estado imperialista, e para isto, deveriam operar a partir dos territórios vizinhos, países árabes nem sempre tão amistosos com eles. Aos seus comandos guerrilheiros, operadores de luta não-convencional no deserto do Sinai, na Cisjordânia e Galiléia, deram o nome de fedayins.

 

Geralmente os combatentes de causas consideradas "justas" no mundo árabe são chamados de mudjahiddins (algo parecido como combatentes de uma luta justa e sagrada). A tão falada e mal compreendida jihad, temida no ocidente como sinônimo de luta de fanáticos, é simplesmente a guerra (sagrada por conseqüência de uma maioria crédula de uma religião revelada). Se há algo de horror aí, é na guerra como tal, sempre horrível e bárbara. Mas voltemos aos combatentes palestinos.

 

Fedayin significa: "aquele que se sacrifica". Num outro contexto, poderia significar o sacrifício de uma mãe por sua prole, ou de um fellah (camponês árabe) arando o deserto – a tal da "terra sem povo" comprada nos anos 1930 por grileiros sionistas financiados por banqueiros ingleses (como os Rotschild e Rockfeller). Na situação da diáspora palestina, visto os riscos que as operações guerrilheiras traziam, ser um dos que "se sacrificam", era a melhor expectativa de vida (e morte) que um jovem palestino (de ambos os sexos) poderia ter. Pouco ou nada mudou desde então para a maioria destes filhos de Ismail.

 

"Seremos heróis ou mártires" foi o lema instaurado entre os fedayins. O martírio veio à tona, como um sentimento presente desde os tempos que a palestina Maria pariu o mestiço Jesus, que dividia com Barrabás a liderança na luta contra Roma. Num outro momento, Muhammad (Maomé) valeu-se da cultura do martírio para as vitórias na "avançada verde", junto com um rígido código de condutas e deveres (crendo ter sido este revelado para ele pelo anjo Gabriel numa caverna na atual Arábia Saudita), revelado em suratas, e sistematizado no Corão. Noutro momento, o sacrifício de Fátima fez crescer o credo popular islâmico xii (xiita na versão do ocidente), majoritário entre os mais pobres, a não ser no Irã (antiga Pérsia), onde foi transformado em religião oficial de Estado.

 

Na primeira e na última cena do filme "A batalha de Argel", o martírio de um ex-ladrão, tendo ao seu lado uma criança, eterniza a luta no casbah, santuário da luta na capital argelina contra o domínio francês. Trancados num cofre embutido, Ali, o mudjahid argelino e seu amigo, se deixam explodir por opção, para servirem de exemplo aos seus e não arriscar de "cantarem" a nenhum companheiro nas sessões de tortura ministradas pelos pára-quedistas franceses. O sacrifício dos dois, levou-os ao paraíso (segundo a interpretação da Frente de Libertação Argelina, FLN, e abalizada pelos muftis e sufis) e elevou o exemplo ao infinito.

 

O discurso clássico da esquerda ocidental começou a se romper no mundo árabe quando a Frente de Libertação Nacional (FLN) terminou sua aliança com o Partido Comunista Francês. Numa reunião em Paris, Ben Bella e Boumeddiene (entre outros) discutiam com o comitê central dos stalinistas o lançamento ou não da luta armada pela independência da Argélia. O PC francês alegou que não era o momento (nos primeiros meses de 1956), uma vez que a chance de vitória eleitoral seria grande, e por decreto, a Argélia deixaria de ser colônia da França. O comando da FLN agradeceu a disposição de "luta" dos companheiros franceses (muitos ex-maquis da resistência anti-nazi) e voltou para a Argélia sem nenhum acordo. Uma semana depois a FLN deflagrava a guerra na willaya (região militar de seu braço armado, o ELN argelino) da Cabília (região de maioria bérbere). Alguns meses passados, a frente política encabeçada pelos stalinistas franceses não ganhou eleição alguma. Seis anos depois, e um milhão de árabes mortos, a Argélia conquistava sua independência.

 

A própria criação da FLN foi um rompimento com o marxismo europeu. Na sua constituição ideológica, definiram as bases de um futuro "socialismo árabe", uma postura mais à esquerda que o nacionalismo de Nasser (Egito), ou o militarismo do baas (partido nacional-militar árabe). Conseguindo aproximar-se de sufis do interior e muftis do casbah, incorporou ao seu discurso a própria trajetória do povo e da região a qual se tornou o instrumento político-militar de libertação.

 

Os partidos árabes tem de absorver (e muito) as funções das mesquitas, a organização da moral e do comércio (entre os homens de bem), o ensino, os aparelhos de previdência (caridade), a proteção às mulheres, a autoridade judicial (interpretando os códigos) e o poder militar. A guerra popular, ou seja, a política beligerante impulsionada por uma força organizadora (como Muhammad na avançada verde e Barrabás entre os zelotes) é um fenômeno tão presente entre os semitas como o deserto, comércio e o infeliz autoritarismo de seus líderes e estruturas.

 

Na FLN, os mudjahiddins transformaram-se em mártires. Nas várias correntes e partidos que compuseram a OLP, os fedayins já partiram do princípio que "seriam heróis ou mártires". O martírio implica o sacrifício voluntário por uma causa que se considera justa. Com tal nível de desprendimento, seria ingênuo imaginar que esta opção é apenas e tão somente um "ato de boa vontade". O herói é o oposto do covarde, e o mártir o oposto da vítima (ao menos entre os árabes militantes, sejam nacionalistas, integristas ou socialistas).

Num domingo qualquer de novembro de 2000, a Globo expunha horrorizada uma matéria com o xeque líder e número 1 do Hizballah (partido religioso-militar dos camponeses xiitas do Sul do Líbano). O repórter esportivo global, deslocado para a matéria de editoria internacional, narrava os homens-bombas, interpelando como "um homem pode mandar o seu próprio filho para a morte?!". Um garoto de 15 anos foi líder de um comando suicida. Semtex, dinamite – allahuacbahr! – e cabum!, adeus filho do xeque, levando junto alguns soldados israelenses das tropas de ocupação.

 

Em tese, tanto o garoto como os jovens soldados, seriam apenas meros peões num complexo jogo do xadrez político da região. Sim, de certa forma, não deixam de ser isso. Mas não apenas isso. O garoto eterniza seu sofrimento, e eleva o de seus iguais ao infinito. A mensagem é simples: "serei herói ou mártir"; e para o filho do líder xiita, não há nem nunca houve uma outra opção ou expectativa de vida.

 

No início dos anos 60, os novos líderes palestinos conclamavam que era hora de deixarem de "ser filhos da vergonha". Deveriam "erguer-se, ficarem de pé e partir a caminho". Com 13% de cristãos (de rito católico ou greco-ortodoxo), se comparavam a "Lázaro", e uma vez ressucitados, deveriam ser "heróis ou mártires". Caso mortos em combate, a OLP sustentaria para sempre sua mãe, esposa e filhos. O sentimento dos filhos dos fellahs (camponeses) então sem terra, seria lutar ou viver como párias vagando em campos de refugiados; ou então aburguesando-se numa diáspora européia e norte-americana (como a família de Edward Said, talvez o maior intelectual palestino vivo, professor de literatura em Columbia, NY). Para que isso não ocorresse, tornaram-se fedayins, guerrilheiros da diáspora, treinados desde que nasceram, e partindo em operações a partir dos 12 anos de idade.

 

Como o sofrimento do martírio é a glória maior dos "filhos de Deus", seu efeito se irradia de forma descontrolada pelas ruas do mundo árabe. De quinze anos para cá hegemonicamente os partidos integristas vem substituindo as organizações de esquerda e nacionalistas, canalizando este sentimento para a construção de Estados com base na sharia (a lei islâmica, a interpretação jurídica das suratas que o anjo Gabriel narrou ao Profeta na caverna). As elites dos Estados árabes sempre manipularam este sentimento, procurando controlá-lo ou canalizando-o da forma menos danosa (para as elites destes países) o possível. Na diáspora palestina, até a retirada forçada do Líbano em 1983 (antes dos massacres de Sabra e Chatila, chamada de Baba Yar dos árabes), este sentimento era impossível de controlar.

 

Na primeira Intifada (1987-1992), passando o protagonismo da luta de libertação para a massa sub-empregada em Gaza e na Cisjordânia ocupada, esta retomou o sentimento (o da glória do martírio) e transformou-o em política pública, no levante total dos Territórios Ocupados em 1967. Sobre a juventude palestina da segunda metade dos anos 80, foi entregue toda a expectativa de permanência histórica de um povo sob ocupação estrangeira.

Os cartazes do exílio diziam: "A Intifada nos devolveu o orgulho, vamos alimentá-la de esperança". Com o recrudescimento do Levante, a política de controle de multidões dos israelenses era a "dos braços quebrados". Acreditavam que quebrando os braços dos manifestantes mais jovens, semeariam o pânico entre os meninos. A juventude palestina evocou o mito de "David" e chamou a si mesma de "jovens das pedras", e continuou quebrando o pau todo santo dia.

 

Voltando ao assassinato do menino no muro, a política de controle israelense incorre na mesma medida, agora substituindo os braços quebrados pelas balas. Eternizaram o menino da pior forma possível, como vítima das tropas de ocupação. O sentimento do sacrifício voluntário foi mais uma vez convocado, tendo Israel colaborado em difundir o contra-exemplo (o da vítima semita assassinada por europeus que se dizem "vítimas do anti-semitismo"). O martírio das crianças transmite seu sofrimento ao infinito, apontando algo da estrutura que os faz sofrer, mas tendo a "sorte" de poder apontar a si mesmos contra os alvos e símbolos vivos (e logo em seguida mortos) dos "malditos" inimigos.

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *