Viamão/RS, setembro de 2002
Desenvolverei o tema, por opção, de forma pouco ortodoxa. Compreende-se, genericamente falando, dentro da literatura política produzida no Brasil (e sobre o país), duas posições básicas. Estas são citadas por Stepan no seu estudo pré-golpe e até o governo Médici. As duas posições seriam: os militares na política e a política dos militares.
Embora não descarte a validade destes conceitos, chamo a atenção de que a literatura já produziu extensivos e excelentes trabalhos a respeito do tema.
Tomo portanto a ousadia de desenvolver este tema sob uma ótica da política em sentido amplo. Analisamos aqui a presença castrista na política através da observação do continuum da relação do regime vigente e das Forças Armadas (FFAA) no ambiente político do país. Trabalhos como o de Jorge Zaverucha (2000, professor da UFPE) traçam esta relação naquilo que este professor chama de Frágil Democracia, na correlação de força entre a corporação militar e o liberalismo político. Se ampliarmos o conceito, o das prerrogativas militares para a manutenção da ordem interna (aquilo que a ideologia do planejamento denominou segurança nacional), podemos verificara incidência de intervenções contínuas. Isto se inicia a partir do próprio nascimento do Exército do Brasil (EB), posteriormente da Guarda Nacional (GN) e no marco estrito de um Golpe de Estado, quando da proclamação da República.
Quero com isto marcar que, ao contrário de situações idealizadas de liberalismo político, as FFAA no Brasil republicano foram e são um dos fatores decisivos para a manutenção ou queda de regimes. Mas em última instância, são o último recurso para a defesa interna da ordem social. Para cumprir este objetivo, necessariamente tem de ser consolidada sua existência como corporação. Ou seja, não se discute a ingerência ou intervenção das FFAA no cenário político, mas sim as variáveis desta forma de intervenção.
Se partirmos de uma análise de fundo estrutural, as duas intervenções mais marcantes da 1º República não foram aquelas em que as forças do governo central eram utilizadas para intervir, junto ao candidato a governador apoiado pelo presidente, em intervenções federais nos estados. No que diz respeito da manutenção da ordem interna, na defesa interna do interesse de classe, o EB foi empregado em grandes campanhas nas guerras camponesas de Canudos e Contestado. Nos primeiros anos da República, parte da motivação positivista do Exército foi aplicada no combate de uma rebelião sertaneja com traço ideológico messiânico. Por mais que houvessem rivalidades e distâncias de concepções entre os oficiais republicanos e coronéis baianos (titulares da GN, latifundiários e políticos), houve uma verdadeira aliança de classes dominantes para defender a ordem social no interior do sertão nordestino.
Seguindo um raciocínio lógico, nestes mesmos cenários de sertão (região Nordeste, Norte de Minas, na época o Nordeste de Goiás – hoje Tocantins), seguidas vezes coronéis com capacidade beligerante própria se enfrentaram e confrontaram ao governo local. Esses senhores de terra e guerra tinham controle sobre exército de jagunços, redes de coiteiros e coronéis menores, semi-autonomia de mando nos seus territórios de influência e capacidade de enfrentar os poderes oficiais constituídos no nível local, micro-regional e estadual. Se considerarmos as rivalidades (estados x governo central) e potencial bélico das polícias-militares comparando com as forças federais e as disputas entre as frações de classe nos estados e o governo central, Canudos simplesmente implica em uma aliança de classe dominante para a manutenção do domínio e do controle social no sertão nordestino.
A afirmativa que havia autonomia nos estados na 1º República é relativa ao nível de ameaça que as disputas nos estados representavam. Isto sem contar as relações de força entre os estados mais fracos, que dependiam diretamente do poder central. Exemplo franco disso é o caso do Ceará e do Amazonas, que sofreram seguidas intervenções na República Velha. Afirmo isto para validar que a dicotomia poder central-autonomia dos estados é sempre relativa ao grau de risco que envolvia os conflitos nestes lugares. Pouca ou nenhuma intervenção houve da parte do governo federal nas duas guerras civis gaúchas (1893-1895 e 1923-1925) e foi justo o oposto o que aconteceu na Guerra do Contestado. A literatura e a historiografia muitas vezes afirmam que Contestado, assim como Canudos, eram rebeliões pré-políticas.
Dizem isto porque nestas revoltas populares haviam motivações e impulsos de pensamento mágico, sendo sua coesão ideológica de base messiânica. Se era assim, por que então o maior contingente de tropas federais foi posta em combate contra um exército de peões, jagunços, mateiros e caboclos fronteiriços? É possível admitir uma irracionalidade do Estado-Maior do EB ao empregarem enorme contingente numa guerra pré-política? Entendo justamente o oposto, parto do princípio das prerrogativas das FFAA para a manutenção da ordem interna (ainda válidas na Constituição de 1988), que nos dois casos citados foram aplicadas para o fim último das Forças Armadas. Ou seja, as FFAA são o último recurso para a manutenção da ordem social. Entre a estrutura de classes e o regime político, o regime é tático e a estrutura de dominação estratégica. Isto, em detrimento até mesmo do regime político, como foi o caso de 1964.
Assim, o primeiro conceito da relação dos militares, leia-se, as Forças Armadas federais na República Velha, Exército e Marinha, e após a 2ª Guerra, também com a presença da Força Aérea Brasileira, FAB, é o de intervenção na defesa interna da ordem social. Esta seria a relação de fundo, orgânica e permanente, para a qual as FFAA se voltam quando necessário. Se considerarmos as intervenções internas do ponto de vista da análise estratégica em sentido amplo, esta forma de intervir é o marco estratégico da defesa interna.
Toda intervenção militar na esfera política; isto no que diz respeito especificamente às ingerências nas formas de governo, partidos, regime e modelo de Estado; estará condicionada a manutenção última da ordem social, objetivo estratégico e de longo prazo da defesa interna. Partindo desse conceito, é que se pode ter uma visão apropriada das outras duas variações: os militares na política e a política dos militares. Antes de passar a este ponto, me parece interessante realçar outros dois episódios.
A única análise concreta da Insurreição Operária do Rio de Janeiro (18 de novembro de 1918) é do professor do ICFH da UFF, Carlos Addor (2ª edição, Achiamé, Rio/RJ, 2000). Nela se retrata uma operação de ordem técnica, mas que marca a atuação das FFAA no controle social do país. A polícia brasileira, já se reestrutura quando da formação da República e especializara seções político-sociais sob o comando do professor Elyzeo de Carvalho entre 1898 e 1904 (Revista do Arquivo Público do Rio de Janeiro e Beaklini, 2001). Fica a questão então de como e porque fora um tenente do Exército (EB) o agente infiltrado no comando da Insurreição e que denunciara os planos e não um agente de polícia política do DF (na época, cidade do Rio de Janeiro)? Se a formação do aparelho de inteligência do EB é de 1958 (CIE), como a Força Terrestre já tinha capacidade de infiltração no movimento operário, particularmente no Conselho Político da Federação Operária do Rio de Janeiro (FORJ)? Embora ignorada pela literatura, a Insurreição de 1918, que seria um putsch ao Palácio do Catete comandado por uma organização política revolucionária hegemônica naFederação Operária, através de ataques e sublevações de quartéis da capital, não pode ser chamada de pré-política. Ainda que a literatura e a historiografia em grande parte desconsiderem este evento (assim como os já citados Canudos e Contestado), os mesmos não passaram desapercebidos do comando das FFAA.
É preciso fazer uma ressalva antes de prosseguir. Pela dimensão, capacidade de incorporar novos membros, perfil de classe e necessidade de elementos com maior formação técnica, boa parte das comparações entre Marinha e Exército não são equivalentes. Ainda assim, outra missão estratégica da corporação é se manter intacta enquanto tal. Embora tenha sido uma rebelião de ordem interna, com menos capacidade de articulação política do que o tenentismo, a Revolta da Chibata representou uma quebra da hierarquia e contou com elementos de controle e disputa racial. A marujada de maioria negra e a oficialidade de origens aristocráticas estavam em franca disputa de classe. Sendo a missão da corporação, antes que nada, se manter intacta e com suas prerrogativas de controle interno (conforme observou Stepan no seu estudo sobre o Golpe de 1964), a Revolta da Chibata significou uma possível quebra de padrão da ordem corporativa. Este fato foi observado pelo general Góis Monteiro e o citaremos mais adiante. Embora contando com elementos (pré-políticos, teve significância no associativismo dos praças, motivando o que ocorreu na chamada Revolta dos Marinheiros, no ano de 1964 (anterior e uma das alegações para o Golpe de 1º de abril de 1964).
No que diz respeito aos militares na política, observamos resumidamente dois padrões. Um deles diz respeito ao jogo político entre os agentes políticos, atores individuais e frações de classe nos governos federais (pré-golpe de 1964) e que se aproximam e utilizam das prerrogativas militares para compor ou recompor este ou aquele governo. Este padrão se verifica nas intervenções federais na República Velha em estados com polícias-militares fracas e fora da centralidade do poder. Ou seja, todos os demais estados que não São Paulo – Minas Gerais – Rio Gande do Sul. Também no ciclo populista (1945-1964) ocorreram fenômenos parecidos. Neste outro período, já tomavam forma os partidos militares, o chamado facciosismo militar (tomo por referência ao texto de José Murilo de Carvalho em Instituições Brasileiras da Era Vargas, 1999, FGV/EdUERJ). Dentro do EB havia duas ou três facções claramente estabelecidas, de acordo com o momento, isto além das posições consolidadas da FAB, através da influência do brigadeiro Eduardo Gomes. Se houvesse o protagonismo do soldado-profissional ou da não-intervenção (tomando por referência ao mesmo CARVALHO, livro 2º, Cap. V, História Geral da Civilização Brasileira) dentro da corporação castrense, o fato é que estas intervenções não ocorreriam. A prerrogativa do uso das forças federais valeu para as intervenções nos estados durante a República Velha, quando a centralidade do poder foi se consolidando como uma opção. Esta opção era especialmente útil na correlação de forças com os chamados exércitos estaduais, na época chamados de polícia militar ou força pública. Uma outra concepção, é a do soldado-corporação. Esta concepção corporativa é o que marca o padrão das intervenções de cunho moderador, cuja quebra de padrão seria o 1º de Abril de 1964 e a inauguração teria sido o 15 de novembro de 1889.
Outro padrão de militares na política pode ser visto na concepção mais filosófica do que política de soldado-cidadão. O 2º tenentismo (o dos anos 1920) pode ser visto com este perfil reformador, com padrão elitista e de reconstrução estatal. Uma quebra de intervenção do tenentismo fora sem dúvida a rebelião interna, dentro do EB, pelo uso da violência (força) como linguagem política. Tendo como ápice a Coluna Prestes-Costa, pode se observar que ao longo dos dois anos e alguns meses da campanha, a Coluna não interveio na ordem latifundiária. Suas posições eram reformadoras e apontavam idealisticamente para: – um liberalismo político que funcionasse; – um regime fora dos parâmetros de corrupção da República Velha e; – a construção do Estado. A motivação do 2( tenentismo começou por temas ligados ao corporativismo militar, tomou contornos de reivindicações reformistas e com a Aliança Liberal de 1930, essa (rebelião( promoveu a mudança nos postos-chave do EB.
As cisões internas do Exército, a divisão entre tenentes e capitães para com a maioria nos postos de major para cima, promoveria em 1930 profundas mudanças no interior do EB. A adesão dos tenentes, levada a cabo por motivações reformadoras, veio a consolidar o conceito do soldado-corporação. Na passagem comissionada de sargentos para tenentes e de tenentes para oficiais superiores e oficiais-generais, se cria uma competição direta pelo poder dentro da Força Terrestre, desta para o Estado e consequentemente para o país.
Podemos resumir que o soldado-corporação é um conceito que prevê o fortalecimento castrense (e o controle sobre as forças estaduais), a profissionalização militar (e aí se alia com o conceito de soldado-profissional), a manutenção da hierarquia (consenso no sistema de oficiais, em acordo com a Marinha, cujo modelo é dualista: oficiais-praças) e a missão nacional das FFAA (onde abre margem para as concepções e disputas dentro das facções militares). Também podemos afirmar, sem muita margem de erro, que o conceito de militar-corporação abre as perspectivas da política dos militares. Sobre esta perspectiva apontamos as conclusões deste último padrão de correlação e presença política castrense na política brasileira.
A presença política dos militares, através do binômio Góis Monteiro e Eurico Gaspar Dutra, pode ser considerada como a transição para a hegemonia da política dos militares. Neste caso, havendo a hegemonia do conceito militar-corporação, este habilita a tranquilidade necessária para o desenvolvimento profissional da corporação. Hierarquia, avanço tecnológico, projeção do governo central (por vezes do poder do Estado nas relações exteriores), uma FFAA composta por oficiais de carreira e praças conscritos (e assim marcando boa parte das camadas subalternas da sociedade brasileira) e a dificuldade para o estabelecimento dos sargentos como categoria organizada. Estas seriam algumas das características que o conceito de soldado-corporação implica na organização interna castrense.
A corporação agindo como tal para que a disputa na interna das FFAA, a facção hegemônica controlará a direção da mesma. De sua parte, os agentes e atores políticos ao convocarem frequentemente as FFAA para a atuação política interna, as valida também como agentes políticos. O controle interno do governo da União (o centralismo) implica necessariamente no controle das forças de repressão no nível estadual. Foi justo o que ocorreu em 1937 e posterior e definitivamente em 1967. As doutrinas de segurança e desenvolvimento iniciadas na marca do planejamento estratégico (ESG-IPES).
Podemos concluir que a hegemonia na relação com a política se dá na concepção corporativa, àquela que aponta a política dos militares. AS facções (partidos militares) disputam a hegemonia das FFAA (notadamente o EB) a partir da própria concepção corporativo-castrense. A maioria profissional e/ou constitucionalista mantêm-se neutra (ou apática) delegando aos mandos políticos dos militares a responsabilidade de lhes permitir desenvolver-se profissionalmente. Situações de crise aguda, sendo que a ameaça da ordem social é mais gritante do que a descontinuidade do regime político, e um cenário que vislumbre a possibilidade de quebra de hierarquia e/ou guerra civil. Uma possibilidade de guerra interna nasce a partir da influência de esquerda e os vínculos sociais do associativismo dos praças, somadas à quebra do pacto federativo através das lealdades estaduais das PMs e a presença de organizações de ruptura com algum poder beligerante. Todas estas pré-condições, existentes em maior ou menor medida antes do golpe do 1º de abril de 1964, tendem a unificar toda a corporação sob suas lideranças políticas. Assim, as FFAA mantiveram as prerrogativas castrenses durante a república. Isto em parte ocorreu em 1937 e de fato em 1964.
O padrão Moderador neutral foi derivando a partir de 1937, consolidando em 1964 (e válido ainda hoje) como de autonomia burocrática dos oficiais-generais para manterem suas prerrogativas. Esta modalidade é um constructo político da transição de regime brasileiro. As FFAA continuam sendo um agente político e ainda uma opção vigilante perante possibilidades de ruptura de ordem (ainda que alternem seu modus operandi). Vale citar que uma das mesas-redondas da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP, encontro nacional de Niterói/RJ, julho de 2002) tinha o título: Segurança Pública e Segurança Nacional. Este debate contaria com a presença do militar que mais acumula funções desde Góis Monteiro,o general Alberto Cardoso (titular do GSI, ex-Casa Militar, de 1º de janeiro de 1995, primeiro dia de governo de FHC, a 31 de dezembro de 2002, último dia de Fernando Henrique). Alberto Cardoso não foi, mas deixou sua mensagem nas entrelinhas, na prática de autocensura vinda da própria direção eleita da ABCP. Verifica-se assim o início de um novo padrão de relação monitorada com a vida política republicana, mantendo-se este fiel às prerrogativas do jogo real de manutenção da ordem social e da defesa interna.
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