Coluna Estratégia & Análise para a esquerda brasileira
Agosto 2024 _ Bruno Lima Rocha
Um dos grandes debates da atualidade é o conceito de identidade política. Muitas vezes o sentido de pertencimento ultrapassa relações sociais concretas, onde o “autodescobrimento” é motivado pela produção cultural, estética coletiva e outras formas de “representar” a vida em sociedade. Ao contrário do que se imagina, nada disso é distinto da chamada “consciência de classe”, se entendermos classe como uma posição estrutural de domínio e móvel ao mesmo tempo, onde o trabalho livre e as exceções fundamentam e escondem a regra.
A classe existe pela estrutura de domínio capitalista, mas só se realiza quando em conflito e preferencialmente de forma organizada. No mais, é tudo mentira, como o tal do “empreendedorismo por vocação”. É tábua de salvação, sair da informalidade ou se associar na forma de micro e pequena empresa. No capitalismo, é massacre econômico o tempo todo. De cada três pequenas empresas abertas, duas quebram antes dos primeiros cinco anos de vida. A exploração do trabalho é uma forma de acumulação e organiza o modo de vida, mas também incide a capacidade extrativa do Estado a serviço de camadas dominantes – “nacionais” e transnacionais. Ou seja, estes fatores são muito mais incidentes do que as “boas práticas”, a “vontade de vencer” e outras peças de propaganda de adesão ao sistema de distribuição desigual de recursos, direitos e poder.
Logo, qualquer ideia de socialismo deveria estar atravessada do movimento contrário: ou seja, a plena distribuição de recursos, direitos individuais, difusos, sociais e coletivos e formas várias de participação no acesso aos processos decisórios e suas capacidades de execução. Se estas práticas não existem nas formas organizativas da esquerda, jamais existirão em termos de exercício de poder concreto. O vazio de projeto retroalimenta a influência ideológica do liberalismo como uma das bases do “progressismo”.
Na ausência de uma utopia (lugar a ser construído) socialista no século XXI, na América Latina somos atravessados por supostos “atalhos”. Um destes é uma derivação liberal onde as identidades políticas e coletivas ao invés de organizarem um sujeito social existente ou mesmo latente, terminam por completar as formas mercadoria e entrar em parcelas do poder político burguês e colonial de forma acrítica.
Cortando na carne
Trago dois exemplos, cortando na própria carne para começar. Tenho origem árabe libanesa por parte de pai. Desde muito jovem engajei no apoio pela luta da libertação da Palestina e tento ajudar na organização da “arabidade” no Brasil e na América Latina. Ocorre que este manancial infindável de recursos humanos (16 milhões de descendentes no Brasil, 3.5 milhões na Argentina, mais de 700 mil no Chile, apenas para começar a citar) vive um conflito na América Latina. A ONU nos reconheceu como “árabes latino-americanos” mas isso não impede de estarmos entre o meio e o topo da pirâmide social e também etnicorracial dos países do Continente.
Assim temos situações vergonhosas como Nayib Bukele, de família palestina, aliado de sionistas e tirano contra seu próprio povo. Ou seu clone, Daniel Noboa Azin (patrício e filho do maior exportador de bananas do país) que briga com sua vice Veronica Abad (também patrícia) enquanto ambos ajudam a vender o Equador para o capital transnacional e, ao mesmo tempo, ampliam a presença do Comando Sul e seus apoiadores do aparelho de segurança do Apartheid Sionista. Com a família Menem servindo a Milei e seus financiadores é a mesma situação na Argentina. Ou seja, na América Latina, se não nos posicionarmos pelos direitos da maioria, sequer conseguimos apoiar a nós mesmos na luta da última guerra colonial do planeta.
Representatividade imperialista?
Mas e os modelos de afirmação negra através do capitalismo e também do imperialismo? São temas tabu? Não deveriam ser.
Possivelmente Kamala Harris será a primeira mulher e a primeira afroamericana a governar o Império. Um pioneirismo ainda maior que de Barack Hussein Obama, o presidente filho de um islamizado africano e maior responsável por bombardeios contra aldeias camponesas em países de maioria islâmica. Alguém pode ser cínico o suficiente para dizer que Trump e Harris ou Bush Jr e Obama são iguais para a população dos EUA? Evidente que não. Tampouco para a América Latina com a extrema direita espelhando um trumpismo tropical. Mas daí a se ver “representado” nestas figuras, ou em Lloyd Austin, secretário de Defesa de Biden (um general afroamericano dedicado a bombardear o Yemen enquanto seus navios se escondem no Mar Vermelho) ou no também general negro – este de confiança da família Bush – o finado Colin Powell? Não dá também.
O debate precisa ser feito, com coragem sincera e sem tergiversar por desvios ou armadilhas de linguagem.
Socialismo e luta antirracista
Me recordo quando o debate de políticas de ação afirmativa chegaram ao país e o Rio de Janeiro estava no segundo governo Leonel Brizola (1991-1994). Havia uma secretaria específica – Secretário de Defesa e Promoção da Igualdade Racial – que além de ser comandada por Abdias do Nascimento ainda contava com notórios militantes negros da heróica geração dos anos 70, a que funda o MN moderno (e o MNU original).
Por vezes a idéia correta de cotas chegava como “ação para minorias” e noutras se dava o problema ideológico mesmo. Em um debate público, um membro da pasta citada, reconhecido militante e produtor cultural afirmou categórico: “Hoje nos Estados Unidos temos um capitalismo negro bem desenvolvido, incluindo grandes latifundiários nos estados do sul que foram Confederados”. Da plateia jovens militantes negros e socialistas disseram de forma simples e categórica: “Mas companheiro, ter uma fração de classe dominante não liberta a maioria. E ninguém deve ter o direito de ser latifundiário”. A conversa se manteve sóbria e resultou numa salutar exposição de limites e diferenças conceituais irreconciliaveis. Hoje isso seria possível?
É preciso estar atento e forte, coragem política para fazer o debate na interna e decisão coletiva para confrontar a reação, as oligarquias e as formas brasileiras e latinoamericanas de racismo estrutural. Todas e todos temos um papel nesta luta e nenhuma socialização hipotética dos meios de produção vai sanar e vencer as heranças pós-coloniais como um todo. Isso é fato. As políticas de cotas são fundamentais e relevantes em todos os espaços. Ressaltando que ocupar postos de poder em instituições de dominação não mudam necessariamente a estrutura de domínio. Se assim fosse, não haveria mais problema de racismo nos Estados Unidos. Obama prometeu a “era pós-racial” e o que se viu foi o pesadelo trumpista e violência policial contra negros, latinos e pobres.
Não podemos nos confundir com as armadilhas do sistema e menos ainda mimetizar as políticas do Partido Democrata dos EUA. O Império não deixará de ser imperialista e o capitalismo menos desumano se uma fração de classe dominante e parcelas de elites dirigentes na América Latina forem não brancas.
Bruno Lima Rocha Beaklini (blimarocha@gmail.com / www.estrategiaeanalise.com.br) é jornalista, cientista político e professor de relações internacionais; é membro do ICCEP / O Coletivo, editor do programa Oriente Médio em Revista, colunista do Monitor do Oriente Médio e participa da luta pela democracia na comunicação social.
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