O ano de 2005 se encerra como o ápice da institucionalidade democrática neste país. Ao completarmos 20 anos de transição do colégio eleitoral que elegera Tancredo Neves e terminara por empossar a Sarney, passando por momentos de crises como o impedimento de Collor, a emenda da reeleição de FHC e a posse de Luiz Inácio, a democracia brasileira mostrou-se consolidada. Ao menos, esta forma de “democracia”. Neste artigo, aproveitando a semana embalada pelo ritmo da convocatória especial do Congresso, usaremos este precioso tempo para uma reflexão mais aprofundada. Pedimos assim, um mínimo de isenção e espírito sereno para esta leitura.
De certa forma, o artigo da semana passada chamava para o debate os leitores interessados em formas e formatos democráticos. Continuamos pois no tema sem vincular-nos com o problema da reeleição. O pano de fundo deste texto é uma chamada para refletirmos quanto a real capacidade de representação que o modelo e o modus operandi da política em nosso país e continente nos habilita a viver.
O primeiro passo para entrarmos no tema não é um regresso aos clássicos da democracia grega, em especial a ateniense. Nem tampouco buscar em Aristóteles a negação desta forma de democracia que vivemos, segundo ele próprio, nada mais que uma oligarquia. Mas sim, buscar respostas para uma intrigante e presente dúvida que assola aos latino-americanos. Em pesquisa feita pelo Latinobarômetro, datada de 1995, a maioria dos cidadãos da América Latina dizia não ter preferência por qualquer regime político, se liberal-democrático ou ditadura cívica ou militar. Sempre ressalvando o fato de que este regime proporcionasse um melhor padrão de vida. Dez anos depois, e os indicativos são os mesmos. E porque?
Um argumento elitista, mais um entre vários, diria que “os povos são burros, ignorantes e não valorizam as instituições que temos”. Outro, poderia simplesmente afirmar que qualquer democracia é melhor do que qualquer regime de exceção, e disto estamos todos de acordo. Mas, aponto uma outra interpretação para estes dados tão alarmantes.
O que as maiorias dizem o tempo todo é o fato de não aceitarem mais a idéia de um jogo de soma zero. Ou seja, não aceitarem as regras do jogo democrático onde só existem benefícios e vantagens para as minorias associadas às estruturas de poder transnacionais. Com maior ou menor volume, sejam os esquálidos venezuelanos, a pátria financeira Argentina, a oligarquia uruguaia, a elite criminal-militar paraguaia, os cambas bolivianos, os crudos peruanos, os cartéis colombianos, os capitais costeiros e da serra equatoriana, incluindo-se aí as dezenas de oligarquias e consórcios econômico-políticos do Brasil e do México, a maior parte dos habitantes da América Latina já não suporta mais esta forma de viver.
Qualquer pessoa com um mínimo de boa vontade não pode concordar com o fato de somente a Argentina produzir alimentos para mais de 300 milhões de habitantes e este mesmo país tem mais de 50% dos seus 33 milhões compatriotas passando fome. Não há como fazer jogo de soma zero lúcido quando se sabe que a capacidade produtiva e desenvolvimento de nossos países não está nem a 1/5 de sua potência máxima. O jogo de soma zero tão elogiado pelos “especialistas” como fator essencial para a “estabilidade” de regimes de alternância de poder significa em si mesmo, a ausência de alternância real de poder. Quando isto ocorre, e por vezes termina por ocorrer como na Venezuela pós-Caracazo, a única saída é o lock out e os intentos de golpe.
O tal jogo de soma zero, em outras épocas não tão distantes, tinha o nome de dominação estrutural. Infelizmente, a essa teoria de infra-estrutura completava-se uma idéia de superestrutura, posição esta onde justamente se encontrava o jogo democrático de alternância de poder limitado através da competição pelo voto. Optamos por outro padrão de análise teórico, onde os níveis estruturais são interdependentes, atuando com peso complementar tanto o político, como o ideológico e o econômico. Traduzindo para o cotidiano, esta representação da realidade implica na constatação óbvia que não há capacidade de decisão igual sem formações sociais sólidas, distribuição de riquezas elementares, geração de bens simbólicos compartilhados e de relações produtoras de ideologias mais solidárias. Ou seja, não há democracia viável com mais de 50% de uma população sendo pobre ou miserável e cuja economia formal não corresponde nem a 30% da força de trabalho. Menos ainda quando neste mesmo país os bancos batem recorde atrás de recorde de lucratividade e onde 80% da mídia pertence a não mais que 11 famílias. Sim, estamos falando no Brasil.
Haveria de se perguntar porque uma geração de militantes, quando incorporados às regras do jogo democrático-liberal, sempre acaba por gerar outras novas elites políticas?! Especificamente, como e porque a geração de ativistas saída das lutas de massa do período da Abertura torna-se um recurso mais do próprio sistema e perde qualquer capacidade contestatória?! Várias respostas operam para esta dúvida, mas três compreensões são essenciais.
A primeira é verificar que os hábitos e costumes dos quadros médios e altos deste partido de “esquerda”, pouco ou nada diferem dos profissionais liberais recrutados ou recrutáveis pelas elites econômicas contra as quais eles diziam combater. Segundo, a adoção de práticas políticas parecidas sob o argumento do realismo político. Neste aspecto também opera a ausência de objetivo estratégico. Quando tudo é tática, a política não passa de formas diversificadas de oportunismo. Terceiro, a visão de estrutura. Há luta de poder nesta democracia, luta ferrenha por parcelas e fragmentos de poder sem necessariamente haver a lutar por mudanças estruturais. A “esquerda” tolerada é aquela que aceita disputar partes de um poder que não controla. A esquerda intolerável aponta para outra forma de geração de poder e de controle social.
Quando as pesquisas de opinião apontam um número cada vez maior de latino-americanos, brasileiros incluídos, que cada vez mais desconfiam ou são indiferentes do jogo democrático, é preciso atenção. O descrédito é sobre a “democracia” onde as peças se movem sobre um tabuleiro de soma zero, onde em tudo pode se tocar menos naquilo que é estrutural para o próprio jogo. Incluem-se nestes itens intocáveis a dívida e o modelo econômico integrado e subserviente. Sobre este modelo operam partidos de intermediação, instituições estas em crises cada vez maiores de legitimidade e interação com outras forças sociais.
É esta a “democracia” de soma zero que está em crise. A outra forma, onde os recursos são muito maiores embora não infinitos; onde o mandato representativo não é um cheque em branco; isto dentre outras mudanças estruturais, ainda está por vir. Esta DEMOCRACIA, por milhões defendida em todo o continente, sequer foi experimentada.
Artigo originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat