As entidades de base hondurenhas demonstram suas forças através de mobilização e mártires da Contra travestida de exército nacional. - Foto:habla honduras
As entidades de base hondurenhas demonstram suas forças através de mobilização e mártires da Contra travestida de exército nacional.
Foto:habla honduras

06 de julho de 2009, Bruno Lima Rocha, do Rio Grande outrora altaneiro

Retomando o debate depois do vôo de retorno frustrado de Zelaya

Escrevo este curto artigo mais reflexionando conceitos e passagens históricas de golpes, anti-golpes e linhas de ação em momentos limites de nossa América. Ainda nesta semana, retorno à análise retroativa aos primeiros dias após o Golpe de Estado em Honduras e suas conseqüências imediatas. Isto porque, qualquer predição conclusiva agora seria puro palpite. Outros analistas, de envergadura bem superior a minha já o fizeram no início da semana posterior ao Golpe e deram com burros n’água. Como se diz na roça, “jogo é jogado e lambari é pescado”; e, como se sabe nas entranhas do Continente, a guerra é guerra e se ganha ou perde nos campos de batalha. Vamos às modestas palavras que seguem.

No momento que escrevo estas linhas, o vôo que levava o presidente deposto Manuel Zelaya já passou pelo aeroporto de Tegucigalpa e, graças ao bloqueio da pista de parte dos militares ali presentes, o avião venezuelano onde voava teve que ir-se. Passou por Manágua (Nicarágua) para reabastecimento indo em seguida para San Salvador (El Salvador). A intensidade repressiva das tropas ostensivas também era esperada. Alguns veteranos dos ’70 comentaram-me que Toncontín (nome do Aeroporto Internacional da capital hondurenha) ia ser como a Ezeiza dos centro-americanos.

Sim, se alguém supõe que me refiro à aterrissagem do general Perón, acertou. Em 20 de junho de 1973 a juventude argentina se depara com a pátria peronista acompanhada de mercenários franceses acima do palco onde se ia celebrar “no dia do reencontro nacional”. O que passou foi um massacre, um princípio de divórcio público de algo já visível para um observador de fora do contexto complexo da “interna” que era guerra a morte entre as formações especiais e as 62 organizações. A direita peronista ia alimentar a Triple A, o Comando da Organização, a Guarda de Ferro e outras excrescências de tipo fascista. O povo que ali estava mudou seu papel no espetáculo da política. De multidão mobilizada esperando seu líder popular foi feito de alvo dos fuzis, pistolas e metralhadoras.

Mas, os então jovens – la muchachada había cambiado – já não eram os mesmos. As respostas não demoraram a chegar, encontrando seu destino em gente como José Ignacio Rucci, herdeiro de Augusto Timoteo Vandor entre outros tantos mafiosos mais, mandando-os para o inferno. Essa era a diferença: ter capacidade de se organizar e estar à altura do desafio que se apresentava naquele momento histórico. Isso é o que, desde longe, alguém modestamente percebe como o que está passando em Honduras. Há vontades e capacidade de mobilização, mas se o momento do Golpe chegou, isto se deu porque as forças do povo e o governo de turno, neo aliado da ALBA, não souberam antever a situação. Poderia ser possível que, ainda que com toda a análise de antecipação, se pudesse fazer algo. Pode ser que não. Mas, ao não ter um dispositivo anti-golpe, o governo do oligarca convertido Manuel Zelaya se entregou ao ocaso.

Passamos por algo assim e o sofremos no Brasil por 21 anos de ditadura. Houve chance real de reação entre o 31 de março e o 1º de abril de 1964 (no Brasil) e o então presidente João Goulart (Jango) reagiu pouco ou nada. Havia um mito circulante, o da antimili, grupo de militares leais a Luís Carlos Prestes dentro das Forças Armadas (FFAA), mas este não atingiu para frear uma conspiração visível que se iniciasse abertamente em 1961. No Chile, não faltaram avisos ao médico Salvador Allende. A Guarda Técnica era insuficiente e assim foi em seu momento decisivo. E, sem nenhum equívoco podemos dizer o mesmo de abril de 2002. Se não fosse pelo valente povo de Caracas, hoje teríamos um governo esquálido e vende-pátria na terra de Ezequiel Zamora. Se assim se sucedesse, portanto seria irrefreável o processo de integração forçada pela ALCA, na época em fase de pré-acordo realizado por Bush Jr. e Lula. Não digo com isso que o processo de mudança social na Venezuela passa pelo Palácio Miraflores (casa de governo) e nem menos ainda pela convivência mediada com a democracia liberal ao mesmo tempo em que avança a participação popular. Estes passos têm limites, e a lição veio de Honduras.

O Plano Puebla-Panamá revive com o golpe

O Império tem perdido seu rumo interno, mas é certo que os braços políticos do Complexo Industrial-Militar, agora se somando com as empresas de guerra privada, não o perderam. Sim, refiro-me ao Departamento de Estado, ao Pentágono e especificamente ao Comando Sul. É preciso recordar o papel fundamental que vem cumprindo o território de Honduras e o para-militarismo interno como cabeça de ponte para a Contra centro-americana dos ’80. O que hoje representa a Colômbia para Sul-américa o foi o país que sofre o golpe para a América Central. Há que recordar que em 2002, pouco antes do golpe e o contra golpe em Venezuela, já se tinha como “situação consumada” a integração capitalista da América Central como plataforma de exportação e planta de montagem (maquilladora) gigante para os EUA então recém saindo do choque do 11 de setembro e da crise da bolha das empresas ponto.com. Naquele momento ainda estava por vir a política externa mais agressiva da ALBA e a mega fraude do capitalismo financeiro através da borbulha imobiliária yankee.

Se em 2002 havia pouca alternativa para um país com a economia brasileira, poucos anos depois uma nação empobrecida como Honduras, que tem a marca de exportar 70% de seu comércio exterior para os EEUU (todo composto por produtos primários não industrializados) e importar do Império a 55% do que entra, tinha pouca ou nenhuma saída. Temos de compreender que na política, quem decide pode mudar suas lealdades em função de um projeto de poder razoável e próprio. Esta seria uma explicação plausível para a aproximação de Zelaya com Chávez. A situação interna, controlada por dois partidos oligárquicos ocupando gravitação central em um sistema político montado por um acordo da elite do país, somando-se a ação da Contra (e a aliança destes com os narcotraficantes), teria de ser de estrangulamento do presidente eleito. Se existe novidade, é a forma de dar o golpe, compondo uma saída com máscara institucional e não mais a violência aberta como se deram os golpes nos ’60 e ’70. Neste caso, o Partido Nacional de Honduras, como porta-voz e forma organizativa tradicional, cumpre um papel fundamental. A partir de relações interdependentes da política, a economia, a hierarquia militar, o lugar no mundo que conforma uma ideologia colonizada da elite local, somadas a um controle de meios e as relações carnais da alta hierarquia castrense com a Escola das Américas, a tomada de decisão das instituições por parte de altos comandos do Congresso, do Corte Suprema, o Alto Comando das FFAA, e as cúpulas partidárias, não foi tão difícil.

ALBA e mecanismo plebiscitário: iniciam-se os preparativos do golpe

Quando a partir de janeiro de 2008 um homem do sistema termina de romper parcialmente com sua classe de origem e assina a entrada de Honduras, Zelaya declara a guerra frontal ao Império e às viúvas de Reagan e Bush pai em seu país. Repito essa sentença para que compreendamos, pois Manuel Zelaya é um homem de dentro, não foi um líder político recrutado em bairros populares nem nada por estilo. Ele por sinal vem do mesmo partido que o golpista Roberto Micheletti, o Partido Liberal. Com sua aproximação a uma saída econômica mais interessante em seu país, para diminuir o abismo social, conseguindo com a Venezuela um preço razoável pelo custo da energia através do petróleo, iniciou-se uma corrida contra o relógio para derrocar a Zelaya.

Com o dito acima, ficaria um tema mais para abordar, que é o limite da democracia de ritos e procedimentos ao ver-se adiante da outra democracia. No domingo 28 ia iniciar-se um processo de institucionalização da nova legitimidade. Ou seja, com a consulta popular, através de um referendo não vinculante, os hondurenhos iam deixar explícita sua vontade de não aceitar uma constituição escrita (em 1982) como pacto político após a ditadura que termina em 1981. Ao promover o golpe em um dia de consulta pública, manda-se uma mensagem a todos os latino-americanos. De que os poderes de fato e o Império estão mais que atentos às movidas políticas que possam pôr em xeque a institucionalidade da democracia de tipo liberal-burguesa. Também é verdadeiro afirmar que estão mais que alertas à capacidade dos povos latino-americanos de destruir esta legitimidade tanto por parte de um líder carismático (sendo este convertido ou autêntico) como por parte de um avanço na organização do tecido social, chegando a estágios de poder popular constituídos, como foi o caso da APPO no estado de Oaxaca, México.

Neste momento, pelas razões que expus acima, Honduras e seu povo conformam o epicentro da possibilidade de democracia social na América Latina. Defender o contra golpe popular, portanto, não é ter um alinhamento simbólico imediato e total com Zelaya e sua trupe. Ao contrário, é traçar redes de apoio pela luta social, através de entidades de base conectadas através da mídia eletrônica de baixo custo, e compreender que a democracia participativa se constrói nos momentos limites. A semana anterior e os dias que seguem marcam uma batalha a ser peleada entre os latino-americanos em movimento contra o Império e seus oligarcas.

Hoje, a Batalha de Potosí (1825) é em Tegucigalpa.

 Artigo originalmente publicado no portal do Instituto Humanitas da Unisinos (IHU)

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