11 de janeiro de 2010, da Vila Setembrina, Bruno Lima Rocha
O editorial do jornal O Globo de 08 de janeiro de 2010 (6ª) traz o título “Causa e efeito” (na metade de cima, página 6 da edição impressa), e aborda o tema das vistas grossas de governantes em função da ocupação de terras urbanas irregulares, nestas se incluindo as áreas de risco. O argumento não é de todo errado, pois está reclamando da baixa qualidade da representação política no país e afirmando haver um acordo tácito – e cínico – entre ocupantes do Executivo e os candidatos que operam nestes currais favelizados. Mesmo exagerando no conceito de favela fora do triângulo de Rio-São Paulo – BH (pois em favela o território é parcial ou totalmente controlado por forças para-legais locais), a existência do dublê de candidato a vereança ou deputado estadual e que opera como grileiro ou corretor informal é fato. Estes, segundo o editorialista de confiança da família Marinho, puxam votos e negociam “suas áreas” de porteira fechada, ou com mais de 2/3 dos votos de lá (maioria absoluta). A relação cínica seria com a grilagem urbana para moradia de famílias carentes em áreas verdes ou de risco.
Não há que ser inocente e qualquer um que tenha se envolvido com luta por moradia sabe da existência de grilagem para o pessoal de baixo poder aquisitivo. Mas, pela lógica expressa por um dos poderes midiáticos oficiosos do Brasil, a soma de aliança entre coronéis urbanos e candidatos fortes ao Executivo é o que permite a existência e aumento da favelização. Como era de se esperar, nada se relaciona, ao aumento de moradias irregulares, com a alocação de recursos para projetos de Residência Popular, mas que é parcialmente bancado pelo Estado – o mesmo que o jornal acusa de praticar impostos escorchantes, o que é verdade – mas que opera como caixa do grande capital no Brasil, empreiteiras incluídas. E, todos sabem que a fúria fiscal é garantia de remuneração do mercado de títulos púbicos, para rolar a dívida interna e satisfazer o dragão da maldade, ou seja, o sistema bancário e financeiro.
Enfim, como previsto, o jornalão inverte o fato e não vê – ou finge ao menos – que o problema é de sim, falta de bom governo – e também, ausência de planejamento urbano. E, nesse quesito, quem primeiro quebra toda e qualquer regra é a especulação imobiliária. Porto Alegre que o diga com o Pontal do Estaleiro, a transformação por eufemismo do Rio Guaíba em Lago (para construir mais perto de suas margens) e por devaneios nada inocentes como a Arena do Grêmio e as Torres na Azenha (mais altas, se vierem a ser construídas, do que o Plano Diretor permite!). Na próxima legislatura portoalegrense, seria mais sincero que a bancada do cimento cedesse lugar aos diretores corporativos de empreiteiras, como a Goldsztein e a Cyrela, além da Maiojama, BM Participações e outras do mesmo porte. Eles próprios, sem laranjas como as Participações Ltda de sócios ocultos, mas nem tão escondidos assim. Desta forma, pouparíamos latim xingando a criatura e terminando por poupar seus co-criadores. Esta desgraça não é exclusividade do Porto dos Casais e nem do Rio Grande do Eucalipto. Em todo o Brasil a soma da sanha e apetite infindável do monstro especulador do solo urbano, com o financiamento estatal mediante transferência de recursos líquidos para incorporadoras, mais a necessidade de morar próximo ao centro urbano e temos o fenômeno de ausência de dinheiro para onde precisa pôr muito e o desvio deste para quem já tem de sobra.
As chuvas de início de verão e a ausência de planejamento em uma sociedade complexa
Muito vem sendo escrito e comentado a respeito dos temporais de início de verão. Agora choramos pelas vítimas da pousada na linda Ilha Grande e na cidade de Angra dos Reis. Outrora lagrimas correram por deslizamentos derivados de lixo nas encostas, enchentes e destruições. A corrente de opinião majoritária, fora pirotecnias e factóides de governantes de turno, já entende que a aleatoriedade do clima é um fator e a irresponsabilidade dos mandatários do Estado é outra. A verdade caminha por vias tortuosas.
O fato, a perda de vida e patrimônio decorrente de enchentes e desastres naturais classificáveis como calamidade pública, de tão “banalizado”, tornou-se corriqueiro. Foi de triste memória o ato criminoso da queda do edifício Palace II, por vezes caracterizado como “tragédia”, o crime foi “obra” de deputado dublê de empreiteiro, o já falecido Sérgio Naya. As famílias que economizaram toda uma vida em busca do sonho da casa própria mereceram a solidariedade e a cobertura midiática. Mas, simultaneamente, centenas de outras famílias na mesma cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, viviam em abrigos públicos ou em casas de parentes em função de deslizamentos e enchentes. Eram invisíveis até serem tomadas como ponto de comparação. O poder de pressão das vítimas do Palace II era mais forte do que os vitimados pelo descaso. Ou seja, no Brasil, não é tão ruim levar um golpe de um político profissional do que ver-se ao léu do limbo entre a omissão e a irresponsabilidade.
Neste ano que começa, percebo uma diferença substantiva. Já não se aceita a versão de que a “culpa é de São Pedro” ou do El Niño. O problema é de fundo e ultrapassa a instantaneidade do choque de consciência. No Brasil temos milhões de pessoas vivendo em áreas de risco, abaixo da linha de pobreza e em péssimas condições sanitárias. Qualquer estudo sério de saúde pública vai indicar as doenças derivadas da pobreza como definidoras do quadro geral de qualidade de vida em qualquer sociedade. O mesmo se dá no que diz respeito ao uso e ordenamento do solo urbano. A ação é o desrespeito simultâneo. Uma mesma prefeitura que “flexibilizam” planos diretores e “tranqüiliza” a vereança com discursos de desenvolvimento, e trata as áreas de ocupação irregulares como locais de concentração de baixa criminalidade e acumulação de votos de cabresto ou via assistencialismo puro.
Entendo que no Brasil, a expansão da construção civil e a cobertura do déficit de residências deveriam passar por dois movimentos simultâneos. Um, era chamado como “mandato Tatu”, quando o gestor público aplica em saneamento e águas pluviais e não em obras visíveis. Sem esgotamento sanitário e tratamento de águas para sua re-utilização não há sustentabilidade alguma. Outro movimento passa pelo aproveitamento de edifícios já existentes, ocupação de imóveis vazios e o ordenamento urbanos em áreas de favelas ou irregulares. Enfim, que houvesse um mínimo de racionalidade econômica dos recursos gerais da nação, reaproveitando o já existente, criando a estrutura de suporte para aumentar a construção civil e gerando as condições para o exercício dos direitos básicos de cidadãos favelizados. Como também é o costume nacional, muito do que afirmo acima já consta no Estatuto das Cidades, que contempla o espírito da condição humana, eixo da Constituição de 1988. Só falta avisar aos mandatários de governos e os agentes econômicos do oligopólio dos materiais de construção (como no cimento) e das empreiteiras.
A criminosa omissão de governo
O ordenamento direto do solo urbano e dos espaços geográficos de grandes concentrações populacionais em áreas irregulares é dever do nível de governo municipal. Entra ano e sai ano, começam e terminam mandatos e o problema central não é abordado. Favela, vila, mocambo, palafita, baixada e outras denominações regionais para moradia em má condição não deveria ser paisagem! Ao ser vista como tal, o que é um crime de Estado – por omissão em décadas consecutivas – torna-se algo “pitoresco”.
Reconheço ser impossível promover a regularização fundiária das áreas irregulares, com título de posse, saneamento, abertura de ruas e vias públicas e presença do Estado com o conjunto de serviços em um período de quatro anos. Mas, o zoneamento, a localização das áreas de risco e a decisão política de impedir a expansão de casas onde o ato de construir pode implicar na morte desses moradores, isto sim é algo possível. E, é perfeitamente possível interromper qualquer tentativa de “flexibilizar” leis ambientais, em especial naquilo que implicar expandir a especulação imobiliária com deterioro de áreas verdes.
A contraparte é o absurdo em nome do progresso de poucos em nome de todos. Não é argumento válido contrapor o suposto desenvolvimento econômico à “flexibilização” de leis ambientais. A legislação brasileira de meio ambiente é excelente, e serve com um freio da especulação imobiliária e ao apetite voraz de obras faraônicas, executadas por consórcios privados e quase sempre financiadas com o dinheiro do contribuinte depositado no BNDES ou na Caixa Econômica Federal (e no caso da Província de São Pedro, no Banrisul). No caso das cidades, a omissão histórica em Angra dos Reis (para triste exemplo ilustrativo) é a materialização do conceito de que a atividade-fim da maioria dos governos de turno é permanecer ocupando uma parcela de poder ou expandindo seu controle sobre orçamentos e cargos. A atividade-meio é o ato de negociar com as forças sociais, respeitando as relações assimétricas, atendendo primeiramente aos agentes econômicos em geral e os investidores de suas próprias candidaturas em particular.
A publicidade de governo cria um clima de euforia anunciando milhões de metros cúbicos de concreto sendo erguidos quando deveríamos comemorar canos de esgoto e águas tratadas. O dinheiro vai para as empreiteiras enquanto o lixo segue para aterro (com pouca reciclagem) e os coliformes vão para os espelhos d’águas e suas margens. Pela lógica racional – ou a falta desta em função da cultura de prebendas, clientelas e patrimonialismo – a planificação das cidades, prevendo sua expansão, vem primeiro. Crescer a malha urbana implica em metrô, trem de superfície (urbano e metropolitano) e condições de vida e sustentabilidade do ar e da água. Isto vem concomitante a idéia-guia que regular o solo urbano implica em criar redes de esgotos e tratamento de águas.
Aqui se faz o contrário e todo ano morrem brasileiros em função do descaso e da criminosa omissão de governo. Até quando?!
Este artigo foi originalmente publicado no portal do Instituto Humanitas Unisinos (IHU)