20 de junho de 2006, Vila Setembrina dos Farrapos de Viamão, Continente do Rio Grande de São Sepé
Seguimos falando de futebol, porque somos brasileiros, latino-americanos e cultivadores da mesma paixão. Não é clichê, é crença mesmo. Este artigo é o segundo da trilogia, onde abordamos temas ligados ao mundo da bola. O primeiro tratou de política com p maiúsculo e minúsculo. O segundo, este, da presença do esporte nos tecidos sociais mais fragilizados do país. No terceiro, abordaremos a triste constatação que nos faltam políticas públicas, tanto para o esporte mais querido, como para as demais modalidades.
A bola é fator de motivação e associativismo nas camadas mais pobres e com menos poder de decisão da sociedade brasileira. Uma sociedade em frangalhos como a nossa, sempre se escora nos hábitos e costumes populares, para agüentar mais um pouco. Padrões básicos de socialização passam pelo esporte. Especificamente, pelo futebol amador praticado de norte a sul do país. É este o motor da paixão pelo time canarinho; e graças a estes anônimos ainda aturamos a propaganda ufanista do Galvão Bueno e os desmandos do consórcio de transnacionais e empresas associadas, que gerenciam a CBF de Ricardo Teixeira.
Compondo as bases de um sem número de instituições sociais – formais e informais – está uma infinidade de times de pelada. Na várzea, na quadra pública, nos campos de chão batido, no areião com pedra, no futebol de areia de praia, jogando de 11, soçaite ou futsal, milhões de brasileiros se encontram e se divertem todos os dias. Hábitos como estes, garantem a socialização básica, ultrapassando as barreiras do dia-dia, dentre elas a ditadura da intermediação da mídia.
Embora sejam pouco aproveitados como fator de câmbio social, uma das últimas trincheiras contra o individualismo absurdo é a associação livre e amadora para fazer aquilo que se gosta e todos sabem um pouco. Isto, somado a virtudes mínimas, tais como conectividade, solidariedade, confiança e um pouco de altruísmo, compõem os ingredientes daquilo que a academia chama de Capital Social. Esta definição foi sacada do artigo escrito para este blog por meu amigo Dejalma Cremonese, professor da Unijuí e especialista no tema. Recordando conversas que tivemos, me explicava o professor de origem camponesa, da importância que via nas peladas semanais com professores e técnicos administrativos de seu local de trabalho. Valia, era compensador, fazendo-o até abstrair das botinadas e da canela roxa de toda 2ª de manhã.
Particularmente, nada tenho contra este conceito, muito pelo contrário. Ainda assim, prefiro a idéia oriunda de movimentos populares do Rio da Prata, denominando as instituições sociais mais de base, como aquelas que compõem o tecido social. Tecido ou Capital social, o efeito é o mesmo, e a definição quase idêntica. Recurso final contra a individualização extrema, o aumento do estoque deste Capital benéfico é fator essencial para o desenvolvimento da sociedade. Uma constatação é simples: o associativismo voluntário no Brasil tem seus bancos de escola nos rateios para a compra de jogos de camisa. Entre rachões, varzeanos, ligas de areia ou simples pelada dos com camisa contra sem camisa, nos damos conta que precisamos de outros seres para viver e compartilhar as desgraças ou alegrias da vida coletiva.
Infelizmente, tamanho potencial não passa desapercebido pelos agentes e atores, cuja meta é desorganizar para usurpar seu potencial de auto-representação. Quem pensou no mais obscuro cabo eleitoral, distribuindo uniforme com a cara e o número do vereador ou deputado, acertou. O mesmo se dá nas “copas” com nome de fulano ou beltrano. Estas, somadas às “festas” com o apoio de algum político ou candidato, e já está maculado o esforço social. Se ficasse apenas na baixa classe política, seria menos ruim. Mas não é. De uns quinze anos para cá, tornou-se costume o patrocínio para times de pelada. Nomes tradicionais, associados a um bairro, rua, loteamento, termos folclóricos ou turma de amigos, vão sendo substituídos por times batizados com marcas de drogarias, tele-entregas de pizza ou mercadinhos de vilas ou periferias.
Tamanho esforço de apadrinhamento não é à toa. Muitas vezes um campeonato de primeira divisão estadual tem as arquibancadas do estádio vazias, e ao mesmo tempo, várias canchas de bairros estão lotadas. Duas ruas acima e quadras de aluguel de futsal tem uma longa fila de espera. Por momentos, temos mais de 100 pessoas compartilhando o ginásio do bairro e outras 500 estão acompanhando os primeiros e segundos quadros do time da beira da sanga contra a equipe do pé do morro. Ao longo da malha periférica, muitas vezes os nomes das canchas denominam também o bairro. No entorno do campo de várzea as pessoas foram ocupando áreas verdes, terrenos baldios e construindo suas casas. Diamantina, Monte Alegre, Índio Jarí, Florescente, Vila Paraíso, Vila Augusta, dentre outras vilas e periferias. Ao largo do campinho, bares, padarias, postos de saúde, cabines policiais, associações de moradores, igrejas de diversos matizes vão sendo erguidas. Estes exemplos foram trazidos para o texto através de simples observação do bairro onde resido e do seu entorno. Sem maiores conjecturas, podemos imaginar que o mesmo se dê por todo o país.
Como diz um outro amigo, residente na cidade de Guaíba, do outro lado do Lago de mesmo nome: “Tão bom quanto o Gre-Nal é a final do varzeano daqui. Por vezes é até mais emocionante!”
Me recordo de outro exemplo, este do Rio de Janeiro, especificamente em uma determinada comunidade de favela. Muitas vezes, a esvaziada turma de alfabetização de adultos tinha na sala central da associação de moradores uma barulhenta presença de vizinhos. Sede lotada, o assunto era sério. Tratava-se da aprovação do regulamento do campeonato de futebol soçaite daquela comunidade. Inscritos, 35 times, todos completos, com titular e banco de reserva, uniforme de jogo e de treino. Toda a sociedade local estava mobilizada e representada por times. Tanto neo-pentecostais participavam como a “rapaziada do movimento” tinha duas equipes. As regras, como sempre, são adaptáveis a cada realidade.
Além das tabelas, escalação dos juízes e premiações com troféus, três assuntos graves foram decididos. Como no morro é proibido brigar, o mesmo teria de valer para o jogo. Assim, por pior que fosse a falta, ninguém podia apelar. Quem mandava era o árbitro e todos tinham de respeitar, fosse ou não do “contexto”. Segundo, se o morro fosse ocupado, o campeonato seria suspenso, até que os homens da lei saíssem da comunidade. Terceiro, em caso de invasão repentina, os times da “farmácia” não seriam punidos com WO. Assim, a partida seria adiada até que a situação “acalmasse”. Nada disso ouvi falar, mas vi com meus próprios olhos. Detalhe, todas as regras foram cumpridas à risca.
Como podemos observar, do lado certo ou errado da vida, o futebol em suas mais variadas versões é tijolo e alicerce da sociabilidade básica do brasileiro. Deste caldo de cultura apaixonado, brota a força motora que faz com que nos esqueçamos das imbecilidades básicas ditas em inúmeras entrevistas de campo e coletivo. Esta força social, pouca ou nenhuma relação tem com a cobertura ostensiva de rádios AMs e a transmissão sem fim, que gera uma overdose de futebol na TV aberta e por assinatura.
Estes costumes são muito mais fortes e importantes do que os desmandos da cartolagem, a alienação das estrelas e as manipulações do consórcio gestor da canarinho. Nos sagrados rachões da várzea, nos encontramos com o melhor de nós mesmos como povo e classe. Vamos assim alimentando uma paixão que costura o tecido social brasileiro.