Quando a saúde é um mero negócio, aumentar o volume de pagadores não tratados é fazer crescer as margens de lucros. Nos EUA, a saúde privada fatura muito em cima das doenças perfeitamente curáveis, mas de acesso bloqueado em função das modalidades dos planos. Michael Moore denuncia esta situação em seu filme “Sicko” e vê-se diante de um poderoso lobby financiado por esta indústria da morte.  - Foto:indypendent.org
Quando a saúde é um mero negócio, aumentar o volume de pagadores não tratados é fazer crescer as margens de lucros. Nos EUA, a saúde privada fatura muito em cima das doenças perfeitamente curáveis, mas de acesso bloqueado em função das modalidades dos planos. Michael Moore denuncia esta situação em seu filme “Sicko” e vê-se diante de um poderoso lobby financiado por esta indústria da morte.
Foto:indypendent.org

A vingança da indústria de planos de saúde contra Michael Moore

Michael Moore, ganhador do prêmio Oscar como melhor documentarista, faz excelentes filmes, mas em geral suas obras não são consideradas como filmes de suspense ou que gerem a sensação de estar “à beira do precipício”. Tudo isto poderia mudar a partir de que uma denúncia realizada por uma fonte ao noticiário de “Democracy Now!” revelar que executivos de companhias de seguros de saúde (planos de saúde privada) pensaram que talvez fosse necessário pôr em marcha um plano para “atirar a Moore do precipício.”

Esta fonte privilegiada era Wendell Potter, ex porta-voz principal do gigante de planos de saúde Cigna. Potter mencionou uma reunião de estratégia industrial na que se tratou o tema de como responder ao documentário “Sicko” de autoria de Moore e rodado no ano 2007, filme este que critica a indústria de seguros de saúde dos Estados Unidos. Potter disse-me que não estava seguro da gravidade da ameaça, mas agregou em tom inquietante: “Ainda que não pensassem em fazer algo literal, para ser honesto, quando comecei a fazer o que estou fazendo, temi por minha própria saúde e bem-estar, quiçá foi só paranóia, mas estas companhias jogam para ganhar.”

Moore ganhou um Oscar no ano 2002 por seu filme sobre a violência armada intitulada “Bowling for Columbine: Um país em armas.”. No Brasil, o título ficou, “Tiros em Columbine” Depois fez “Fahrenheit 9/11,” (no Brasil, o título ficou como “Farenheit, 11 de setembro”) um documentário sobre a presidência de George W. Bush que se transformou na obra do gênero com maior arrecadação na história dos Estados Unidos. Portanto, quando Moore disse a um jornalista que seu próximo filme seria sobre o sistema de saúde estadunidense, a indústria de seguros de saúde tomou nota.

A associação comercial Planos de Seguro de Saúde dos Estados Unidos (AHIP por suas siglas em inglês), principal grupo de pressão das companhias de seguro de saúde com fins de lucro, teve um enviado secreto na estréia mundial de “Sicko” no Festival de Cannes, na França. O agente saiu rapidamente da estréia e foi dar um telefonema para entrar em teleconferência com executivos da indústria, entre eles Potter.

“Tínhamos muito medo” disse Potter, “e nos demos conta de que íamos ter que desenvolver uma campanha muito sofisticada e custosa para que fosse recusada a idéia da cobertura de saúde universal. Temíamos que isto realmente acordasse à opinião pública. Nossas pesquisas de opinião diziam-nos que a maioria das pessoas estava a favor de uma intervenção muito maior, por parte do governo, no sistema de saúde”.

A AHIP contratou uma companhia de relações públicas, APCO Worldwide, fundada pelo poderoso estudo de advogados Arnold & Porter, para que coordenasse a resposta. A APCO formou o falso movimento de base supostamente composto por consumidores, o “Health Care America” para se contrapor a popularidade que se esperava ia ter “Sicko”, o filme de Moore, e para gerar o medo ao chamado “sistema de saúde dirigido pelo governo.”

Em seu recente livro "Deadly Spin: An Insurance Company Insider Speaks Out on How Corporate PR is Killing Health Care and Deceiving Americans” (Giro mortal: um informante explica como as relações públicas das empresas de seguros estão acabando com o sistema de saúde e enganando aos estadunidenses) Potter escreve que se encontrou “com um filme muito comovedor e muito eficaz à hora de condenar as práticas das companhias privadas de seguros de saúde. Várias vezes eu tive que fazer um esforço para conter as lágrimas. Moore tinha-o entendido bem. ”

A indústria de planos de sáude anunciou que sua campanha contra “Sicko” tinha sido um rotundo sucesso. Potter escreveu: “AHIP e APCO Worldwide conseguiram introduzir seus argumentos na maioria dos artigos sobre o filme quando nenhum jornalista tinha pesquisado o suficiente como para descobrir que as seguradoras (agências de planos de saúde) tinham contribuído com a maior quantidade de fundos para a criação de Health Care America. De fato, todas as mídias empresariais, desde a rede de notícias CNN até o jornal USA Today, se referiram a Health Care America como se tratasse de um grupo legítimo.

O jornal New York Times publicou um artigo, uma espécie de resenha de “Sicko”, na que se citava ao porta-voz de Health Care America dizendo que isto representava um passo para o socialismo. Nem esse jornalista, nem nenhum outro que tenha visto o filme, tentaram tornar público o fato de que esse movimento era financiado em grande parte pela indústria de seguros.

Moore disse que Potter era o “Daniel Ellsberg dos Estados Unidos corporativo”, em referência ao famoso informante do Pentágono cujas revelações ajudaram a pôr fim à guerra do Vietnã. A valente postura adotada por Potter gerou um impacto no debate, mas a indústria de saúde privada, os hospitais e a Associação Médica Estadunidense continuam debilitando, enfraquecendo os elementos do plano de saúde pública que ameaça seus ganhos.

Um estudo recente da Faculdade de Medicina de Harvard estabelece que quase quarenta e cinco mil estadunidenses morrem por ano (o que representa um a cada doze minutos) principalmente porque não têm seguro de saúde. Mas para o grupo de pressão das seguradoras, a única tragédia seria a possibilidade de uma verdadeira reforma do sistema de saúde. No ano de 2009, as maiores companhias de saúde privada do país destinaram mais de USd. 86 milhões de dólares à Câmera de Comércio dos Estados Unidos para que esta se opusesse à reforma do sistema de saúde. Neste ano de 2010, as cinco maiores empresas do ramo no país contribuíram uma soma de dinheiro três vezes maior do que nos pleitos anteriores, tanto a candidatos republicanos como a políticos democratas com a intenção de fazer retroceder ainda mais a reforma da indústria de seguros de planos de saúde privados. O representante democrata por Nova York Anthony Weiner, defensor do sistema de saúde de pagador único (propiciado pelo Estado), declarou no Congresso que “o Partido Republicano é uma subsidiaria que pertence por completo à indústria de saúde privada.”

“Provavelmente estarão a favor da retórica das companhias de seguros quando afirmam que precisamos ter mais ‘soluções baseadas no mercado’ (como eles as chamam) e menos regulações, que sem dúvida são o tipo de coisas que os republicanos vão tratar de conseguir, porque regulações é o que não querem as companhias de seguros de saúde”, disse Potter.

A indústria de planos de saúde não está desperdiçando seu dinheiro. Moore disse: “Neste relatório de estratégia compilado pelas companhias de seguro a respeito do dano que ‘Sicko’ poderia ocasionar, há uma linha que basicamente diz que no pior dos casos ‘Sicko’ poderia desatar um levantamento populista contra as companhias de seguros. Estas empresas, nos anos de 2006 e 2007, já sabiam que os estadunidenses estavam fartos das companhias de saúde com fins de lucrativos e que um dia, o povo poderia se levantar e dizer: ‘Isto se terminou. Este é um sistema doente: estamos permitindo que as empresas lucrem nas nossas costas quando nos adoecemos!’”

Isso é estar doente para valer.
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Denis Moynihan colaborou na produção jornalística desta coluna.
© 2010 Amy Goodman

Texto traduzido do castelhano e revisado do original em inglês por Bruno Lima Rocha; originalmente publicado em português em Estratégia & Análise. É livre a reprodução desde que citando as fontes.

Amy Goodman é a âncora de Democracy Now!, um noticiário internacional transmitido diariamente em mais de 550 emissoras de rádio e televisão em inglês e em mais de 250 em espanhol. É co-autora do livro "Os que lutam contra o sistema: Heróis ordinários em tempos extraordinários nos Estados Unidos", editado por Le Monde Diplomatique Cono Sur.

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