02 de dezembro de 2010, da Vila Setembrina de Lanceiros Negros traídos por latifundiários entreguistas, do Continente de Sepé e Artigas, Bruno Lima Rocha
Desde a quinta-feira, 25 de novembro, o país assiste em tempo real a ofensiva bélica contra territórios que são redutos do narcotráfico. A grande mídia, em especial a televisão aberta, afirma convicta que o carioca está confiante e apóia a ação policial com emprego militar de tipo guerra de baixa intensidade. Como não vi ou li nenhum censo e nem sequer as mais que duvidosas pesquisas de opinião (a não ser a pesquisa “mágica” do Ibope, que deu 88% de aprovação dos cariocas à ação), este analista resguarda-se ao benefício da dúvida quanto à aprovação em massa das medidas tomadas como resposta ao acionar da rede de quadrilhas conhecida como Comando Vermelho (CV). O que sim podemos afirmar sem risco, diz respeito a problemas-chave até agora não respondidos por órgãos oficiais, oficiosos, especialistas ou pesquisadores da área. A lista de perguntas é ampla e ultrapassa o espaço de um artigo. Ressalto aqui a um problema-chave, o do reconhecimento da legitimidade do Estado como ente organizador da vida social destas comunidades.
A percepção advinda da obrigatoriedade de ter de morar junto ou perto do conflito pelo controle do comércio ilegal é distinta. Os moradores do “asfalto”, categoria onde me incluía até mudar-me para o Rio Grande do Sul, percebiam a dominação territorial das redes de quadrilha que atuam no varejo do tráfico de forma esporádica. Caso sejam vizinhos de comunidades (morros, favelas e conjuntos habitacionais favelizados), existe o risco de bala perdida (tiros de fuzil a esmo!) e por tanto, chances reais de perder a vida. Já para os habitantes das chamadas “áreas de risco”, a percepção do conflito é permanente.
Entramos aqui no problema, o da legitimidade das forças da ordem diante de uma população abandonada à própria sorte por quase trinta anos. Os moradores de comunidades viram como em pouco mais de uma geração, transformou-se em cultura aquilo que era código de sobrevivência. A dominação territorial de um espaço da cidade embora não urbanizado leva ao conflito de identidades e a difícil situação de ter de obedecer a dois poderes simultâneos. Digo mais, não apenas obedecer, mas gerar adesão, sentindo-se cúmplices ou pelo menos “compreensivos” das exigências de um ou outro poder. É sabido que quando os narcotraficantes têm arraigo nos seus locais, a sensação de ordem e bem estar é maior do que o abandono do Estado ou, para piorar, a “invasão” de forças externas, como a própria PM, uma facção rival ou os paramilitares. Já a relação com o Estado, além de ser deficiente, é sempre de desconfiança. Como é possível confiar numa instituição policial cuja imagem, até o início da ação bélica, era avaliada como sendo violenta e endemicamente corrupta?
Esse é o problema de fundo, e para a ciência política, trata-se do legítimo exercício da autoridade. Se os moradores de comunidades não puderem ver uma política transparente por parte das polícias, com punição severa, sumária e exemplar de atos condenáveis cometidos por seus membros (como saques tipo espólio de guerra); o fim da cobrança de suborno semanal junto ao tráfico (o “arrego”); e acabar de vez com o famigerado “esculacho” (humilhação violenta de indivíduos “suspeitos” na frente de vizinhos), não há ação bélica que devolva a legitimidade ao estado do Rio de Janeiro em áreas conflagradas. No caso do Rio, se não houver atendimento dos plenos direitos da população sem criminalizar as reivindicações legítimas, não adianta pôr tanque de guerra na viela porque a população não vai aderir. E, como sabe todo e qualquer operador político, na ausência do consentimento, só restará o exercício da tirania. Espero, sincera e honestamente, estar enganado quanto a estes prognósticos.
Este artigo foi originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat