Felipe Corrêa
“Para uma Teoria Libertária do Poder” é uma série de resenhas elaboradas sobre artigos ou livros de autores do campo libertário que discutem o poder. Seu objetivo é apresentar uma leitura contemporânea de autores que vêm tratando o tema em questão e trazer elementos para a elaboração de uma teoria libertária do poder, que poderá contribuir na elaboração de um método de análise da realidade e de estratégias de bases libertárias, a serem utilizadas por indivíduos e organizações.
Neste terceiro artigo da série, utilizarei para discussão um conjunto de artigos de Michel Foucault presentes em dois livros: Microfísica do Poder e Estratégia Poder-Saber.
Ainda que as reflexões de Foucault sobre o poder estejam presentes em diversos livros e artigos, ligados sempre à maneira prática que ele encontra para a aplicação de suas análises – em casos específicos do poder na medicina, na psiquiatria, na sexualidade, etc. –, tentarei extrair, em linhas gerais, os principais argumentos teóricos de sua discussão sobre o poder desses textos, sem discutir suas aplicações práticas.[1]
É importante ter em mente que os pontos de vista aqui colocados constituem muito mais uma hipótese sobre a teoria de Foucault sobre o poder do que uma síntese que interpreta profundamente o conjunto de seu pensamento. Seria impossível realizar uma interpretação ampla de suas posições acerca do poder sem a leitura da maior parte de sua obra, o que outros autores fizeram muito bem a meu ver.[2] Portanto, meu objetivo com o artigo não é dar uma idéia sobre a concepção geral de poder em Foucault, mas constituir uma hipótese, fundamentada na bibliografia citada, de elementos que contribuam de maneira mais ampla com uma teoria libertária do poder. Realizarei, nesse sentido, exercícios teóricos com o intuito de responder questões que o próprio autor não respondeu em seu tempo, e certamente teve seus motivos para isso. Finalmente, farei uma leitura desses artigos utilizando-me de categorias que não pertencem ao campo de análise de Foucault; assim, será evidente o enquadramento e a classificação com base em categorias exteriores ao seu sistema teórico, e que podem não lhe ser familiares ou mesmo ter divergências de sua parte. O que, a meu ver não invalida a análise realizada.[3]
A necessidade de instrumentos para a análise do poder
Foucault acredita que há uma necessidade central de se “pensar esse problema do poder”, assim como a “ausência de instrumentos conceituais para pensá-lo”[EPS, p. 226]; ou seja, haveria a “insuficiência de uma análise estratégica própria à luta política – à luta no campo do poder político”[EPS, p. 251]. Para ele, “o poder, em suas estratégias, ao mesmo tempo gerais e sutis, em seus mecanismos, nunca foi muito estudado”.[MP, p. 141] É nesse sentido que considera um de seus principais problemas teóricos, “forjar instrumentos de análise […] sobre a realidade que nos é contemporânea e sobre nós mesmos”[EPS, p. 240].
Uma teoria sobre o poder, nesse sentido, teria como papel “não formular a sistemática global que repõe tudo no lugar, mas analisar a especificidade dos mecanismos de poder, balizar as ligações, as extensões, edificar pouco a pouco um saber estratégico”[EPS, p. 251]. Esse é o foco teórico que Foucault dá para suas análises do poder: uma produção que prioriza o micro em relação ao macro e considera, como se discutirá adiante, que a estruturação da sociedade possui uma determinação ao mesmo tempo de cima para baixo – das grandes instituições e relações de poder para os níveis mais básicos e simples das relações sociais – e de baixo para cima, no sentido contrário; o mesmo movimento que se dá entre centro e periferia. Se é verdade que os teóricos clássicos da política investiram significativamente nesse “macro-nível” das relações de poder, Foucault prioriza, distintamente, o “micro-nível” dessas relações, e essa é uma de suas grandes inovações no estudo do poder.
Para tanto, ele propõe que se conceba a “teoria como uma caixa de ferramentas”, o que significa “que se trata de construir não um sistema, mas um instrumento: uma lógica própria às relações de poder e às lutas que se engajam em torno delas”, e, ao mesmo tempo “que essa pesquisa só pode se fazer aos poucos, a partir de uma reflexão (necessariamente histórica em algumas de suas dimensões) sobre situações dadas”.[EPS, p. 251] Essa concepção da teoria como caixa de ferramentas implica, assim, um conjunto de instrumentos que, de acordo com uma situação dada, pode-se utilizar, tendo por objetivo uma análise determinada e que serve para algumas situações, mas não necessariamente para todas. Foucault enfatiza ainda a necessidade de que a pesquisa sobre as relações de poder utilize-se de uma abordagem histórica, o que me parece constituir uma rejeição de esquemas puramente sociológicos, que poderiam ser aplicados em qualquer circunstância, independente dos fatores tempo e lugar: “se o objetivo for construir uma teoria do poder, haverá sempre a necessidade de considerá-lo como algo que surgiu em um determinado ponto e em um determinado momento, de que se deverá fazer a gênese e depois a dedução”.[MP, p. 248]
Em relação a essa elaboração teórica, recomenda Foucault: “qualquer um que tente fazer qualquer coisa – elaborar uma análise, por exemplo, ou formular uma teoria – deve ter uma idéia clara da maneira como quer que sua análise ou sua teoria sejam utilizadas; deve saber a que fins ele almeja ver se aplicar a ferramenta que ele fabrica – que ele próprio fabrica –, e de que maneira ele quer que suas ferramentas se unam àquelas fabricadas por outros, no mesmo momento. Considero muito importantes as relações entre a conjuntura presente e o que fazemos no interior de um quadro teórico. É preciso ter essas relações de modo bem claro na mente. Não se podem fabricar ferramentas para não importa o quê; é preciso fabricá-las para um fim preciso.” Portanto, essa recomendação implica que o teórico tenha em mente a finalidade da ferramenta que elabora e saiba como essa ferramenta relaciona-se com a conjuntura que deseja analisar.
Constatando a insuficiência de instrumentos conceituais para uma análise mais aprofundada do poder, Foucault propõe, para suprir essa lacuna, a elaboração de uma teoria que ofereça ferramentas capazes de proporcionar a devida compreensão das relações de poder. “Se o poder na realidade é um feixe aberto, mais ou menos coordenado (e sem dúvida mal coordenado) de relações”, coloca, “então o único problema é munir-se de princípios de análise que permitam uma analítica das relações de poder”.[MP, p. 248]
Questões centrais para a compreensão do poder
Seria possível perguntar: o poder não é um tema central das ciências humanas em geral e das ciências sociais em particular, que vem sendo estudado há séculos? De certa maneira sim. No entanto, Foucault acredita que as formulações teóricas que buscaram constituir ferramentas para as análises do poder possuem sérias limitações. Buscando trabalhar sobre esse conjunto teórico para a compreensão mais adequada e completa do poder, ele aprofunda as análises clássicas sobre o tema, agregando novos elementos que permitem uma compreensão mais significativa da questão. Creio, nesse sentido, que a maior contribuição de Foucault seja a elaboração de uma teoria que complemente as análises clássicas do poder, ainda que, em alguns casos, sua teoria negue aspectos centrais dessas teorias clássicas.
As questões centrais, para Foucault, são: 1. O que são o poder e as relações de poder? 2. Onde está o poder e aonde se dão as relações de poder? 3. Como se constitui o poder e como funcionam as relações de poder? Ainda que o autor não sistematize dessa forma, creio que essa forma esquemática permite uma apresentação mais didática, que facilita a compreensão.
As questões teóricas são trazidas por Foucault no bojo de uma reflexão sobre seus objetos de estudo (medicina, psiquiatria, prisões, sexualidade, etc.). Ao mesmo tempo em que ele realiza críticas de abordagens anteriores, formula seus próprios pontos de vista, os quais se constituem, em grande medida, visando suprir as lacunas deixadas por teorias anteriormente concebidas. Por isso o caráter muitas vezes dicotômico da apresentação das idéias que farei; por um lado criticam e por outro propõem. Utilizarei essas dicotomias para explicitar, quando da elaboração de um aspecto teórico, quais são as suas posições.
O poder e as relações de poder
O poder como produção
Foucault acredita que muitas análises do poder tentam vinculá-lo a uma concepção fundamentalmente negativa, repressiva, “de redução dos procedimentos de poder à lei de interdição”[EPS, p. 246] – dando, por esse motivo, ao poder, uma conotação freqüentemente jurídica e repressiva, associando-o muitas vezes ao Estado. Para ele, em geral, nessas análises, “o problema é sempre apresentado nos mesmos termos: um poder essencialmente negativo que supõe, de um lado, um soberano, cujo papel é o de interditar e, do outro, um sujeito que deve, de uma certa maneira, dizer sim a essa interdição”.[EPS, p. 247] Essa abordagem, do poder essencialmente como elemento de negação, para Foulcault, possui três papeis fundamentais: 1.) “Ela permite fazer um esquema do poder que é homogêneo não importa em que nível nos coloquemos e seja qual for o domínio (família ou Estado, relação de educação ou de produção.” 2.) “Ela permite nunca pensar o poder senão em termos negativos: recusa, delimitação, barreira, censura. O poder é o que diz não. E o enfrentamento com o poder assim concebido só aparece como transgressão.” 3.) “Ela permite pensar a operação fundamental do poder como um ato de fala: enunciação da lei, discurso da interdição. A manifestação do poder reveste a forma pura do ‘tu não deves’.”[EPS, p. 246]
Por meio dos argumentos apresentados, Foucault vai negar essa abordagem que conceitua o poder somente pela negação. Para ele, o poder pode até ser negação, mas é, fundamentalmente, produção, construção: “o interdito, a recusa, a proibição, longe de serem as formas essenciais do poder, são apenas seus limites, as formas frustradas ou extremas. As relações de poder são, antes de tudo, produtivas.”[MP, p. 236]
A abordagem exclusivamente negativa do poder, nesse sentido, seria inadequada: “a noção de repressão é totalmente inadequada para dar conta do que existe justamente de produtor no poder. Quando se define os efeitos do poder pela repressão, tem-se uma concepção puramente jurídica deste mesmo poder; identifica-se o poder a uma lei que diz não. O fundamental seria a força da proibição.”[MP, pp. 7-8] Na realidade, o autor acredita que a noção de poder como negação foi aceita de maneira generalizada, o que lhe parece um erro crasso; essa noção negativa do poder é “estreita e esquelética”.[MP, p. 8]
“Se o poder fosse somente repressivo”, questiona, “se não fizesse outra coisa a não ser dizer não, você acredita que seria obedecido?” Foucault acredita que não; “o que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir.”[Ibid.] “Se o poder só tivesse a função de reprimir, se agisse apenas por meio da censura, da exclusão do impedimento, do recalcamento, à maneira de um grande super-ego, se apenas se exercesse de um modo negativo, ele seria muito frágil. Se ele é forte, é porque produz efeitos positivos a nível do desejo – como se começa a conhecer – e também a nível do saber. O poder, longe de impedir o saber, o produz.”[MP, p. 148]
Portanto, o primeiro aspecto relevante da teoria de Foucault para se pensar ao poder é rechaçar seu aspecto essencialmente negativo – definido exclusivamente em termos jurídicos, repressivos e, frequentemente, de Estado – e assumir que o poder permeia as relações sociais, produzindo, induzindo, constituindo. Assim, o poder pode possuir aspectos de negação, mesmo que nunca se resuma a eles, visto que ele envolve, acima de tudo, a produção.
O poder como relação de força
Para Foucault, em sua época, as abordagens sobre o poder provindas tanto do campo da direita como da esquerda eram insuficientes: “Não vejo quem – na direita ou na esquerda – poderia ter colocado este problema do poder. Pela direita, estava somente colocado em termos de constituição, de soberania, etc., portanto em termos jurídicos; e, pelo marxismo, em termos de aparelho do Estado. Ninguém se preocupava com a forma como ele se exercia concretamente e em detalhe, com sua especificidade, suas técnicas e suas táticas”. Ainda que, aparentemente, se tratasse do tema, ele acredita que “a mecânica do poder nunca era analisada”. Situação que, segundo sustenta, só se modificaria no fim dos anos 1960: “Só se pôde começar a fazer este trabalho depois de 1968, isto é, a partir das lutas cotidianas e realizadas na base com aqueles que tinham que se debater nas malhas mais finas da rede do poder. Foi aí que apareceu a concretude do poder e ao mesmo tempo a fecundidade possível destas análises do poder, que tinham como objetivo dar conta destas coisas que até então tinham ficado à margem do campo da análise política.”[MP, p. 6]
Para que as análises do poder fossem realizadas a contento, o modelo que se apóia nas soluções eminentemente jurídicas – que trata a problemática do poder somente em termos de constituição, lei, proibição etc. – deveria ser descartado, pois “foi muito utilizado e mostrou […] ser inadequado”. Ainda que trabalhando com hipóteses, Foucault afirma que, por essa insuficiência de modelo, pareceria mais adequado outro modelo, que ele chama de “guerreiro ou estratégico”, ou seja, aquele que se fundamenta nas “relações de forças”.
Conceber o poder a partir das relações de forças o leva a trabalhar com a junção de duas hipóteses: “por um lado, os mecanismos de poder seriam de tipo repressivo, idéia que chamarei por comodidade de hipótese de Reich; por outro lado, a base das relações de poder seria o confronto belicoso de forças, idéia que chamarei, também por comodidade, de hipótese de Nietzsche”. Duas hipóteses que, segundo acredita, “não são inconciliáveis” e “parecem se articular”.[MP, p. 176] Essa concepção do poder, a partir das hipóteses de Reich e Nietzsche, diferencia-se de uma outra – mais clássica, se poderia dizer, utilizada por filósofos do século XVIII –, que se fundamenta no “poder como direito originário que se cede, constitutivo da soberania, tendo o contrato como motriz”.[MP, p. 177] Concebido dessa maneira, o poder se fundamentaria na idéia de um contrato e os excessos ou rompimentos desse contrato poderiam levar esse poder a tornar-se opressivo.
As hipóteses de Reich e Nietzsche – distintamente dessa concepção contratual de poder – buscariam “analisar o poder político, não mais segundo o esquema contrato-opressão, mas segundo o esquema guerra-repressão; neste sentido, a repressão não seria mais o que era a opressão com respeito ao contrato, isto é, um abuso, mas, ao contrário, o simples efeito e a simples continuação de uma relação de dominação. A repressão seria a prática, no interior desta pseudo-paz, de uma relação perpétua de força.”[Ibid.] Na realidade, Foucault acredita que Nietzsche trouxe contribuições relevantes para o estudo das relações de poder, sendo, por isso, “um filósofo do poder, mas que chegou a pensar o poder sem se fechar no interior de uma teoria política”.[MP, p. 143]
Tateando para buscar responder a primeira questão central sobre o poder – O que são o poder e as relações de poder? –, Foucault coloca que “talvez ainda não se saiba o que é o poder”.[MP, p. 75] Suas investigações, em grande medida, vão buscar compreender as relações de poder – como colocado, fundamentalmente em seus níveis mais “micro” – para que se chegue a uma resposta adequada para a difícil questão. Apesar dessa reticência em apontar inicialmente um conceito bem definido, Foucault continua as reflexões e traz elementos relevantes para se pensar a questão. Um primeiro aspecto, negado inicialmente, é que não se pode conceber o poder simplesmente como um sinônimo de Estado: “a teoria do Estado, a análise tradicional dos aparelhos de Estado sem dúvida não esgotam o campo de exercício e de funcionamento do poder”.[Ibid.] Assim, seria necessário conceber uma definição mais ampla, que desse conta de um fenômeno que poderia ter relações com o Estado, mas que não se resumisse a ele. Similarmente, o autor acredita que não seria possível conceber o poder somente em termos econômicos.
Assim, buscando uma definição do poder dentro desses pressupostos, Foucault fundamenta-se na hipótese de Nietzsche colocada anteriormente para questionar: “se o poder é, em si próprio, ativação e desdobramento de uma relação de força […], não deveríamos analisá-lo, acima de tudo, em termos de combate, de confronto e de guerra?”. Trabalhar com essa hipótese, significaria “que o poder é guerra, guerra prolongada por outros meios.” A clássica posição de Clausewitz, de que “a guerra é continuação da política por outros meios”, seria, assim, invertida, podendo-se afirmar “que a política é a guerra prolongada por outros meios”[MP, p. 176], inversão que implicaria, para Foucault, três afirmações.
1) “Que as relações de poder nas sociedades atuais têm essencialmente por base uma relação de força estabelecida, em um momento historicamente determinável, na guerra e pela guerra. E se é verdade que o poder político acaba a guerra, tenta impor a paz na sociedade civil, não é para suspender os efeitos da guerra ou neutralizar os desequilíbrios que se manifestaram na batalha final, mas para reinscrever perpetuamente estas relações de força, através de uma espécie de guerra silenciosa, nas instituições e nas desigualdades econômicas, na linguagem e até no corpo dos indivíduos. A política é a sanção e a reprodução do desequilíbrio das forças manifestadas na guerra.”
2) “Que, no interior desta ‘paz civil’, as lutas políticas, os confrontos a respeito do poder, com o poder e pelo poder, as modificações das relações de força em um sistema político, tudo isto deve ser interpretado apenas como continuações da guerra, como episódios, fragmentações, deslocamentos da própria guerra. Sempre se escreve a história da guerra, mesmo quando se escreve a história da paz e de suas instituições.”
3) “Que a decisão final só pode vir da guerra, de uma prova de força em que as armas deverão ser os juizes. O final da política seria a última batalha, isto é, só a última batalha suspenderia finalmente o exercício do poder como guerra prolongada.” [Ibid.]
Essas três afirmações permitem certa análise. A utilização da lógica da guerra e da paz para a explicação do poder fundamenta-se no fato de que poder implica força, já que, conforme coloca Foucault, relações de poder implicam relações de forças. Forças que estariam em disputa, em luta permanente, em correlação e num jogo contínuo e dinâmico chamado de guerra, dentro do qual distintas ferramentas e tecnologias poderiam ser utilizadas para a ampliação das forças. A guerra, nesse sentido, não deve ser entendida somente como conflito armado ou militar, mas como disputa e luta permanentes entre as diversas forças em jogo, que podem ser mais ou menos evidentes e violentas, mas que sempre existem e possuem um custo para aqueles que detêm o poder.
É o nível de estabilidade das forças em jogo, conforme elas se assentam, que determina o que se chama mais comumente de situação de “guerra” ou de “paz”. Para Foucault, no entanto, a paz não é mais do que uma situação de guerra estabilizada, em que determinadas forças se impõem, ainda que isso aconteça sem o fim das outras forças de menor eficácia. Por isso a afirmação de que, mesmo na paz há guerra, já que, ainda que uma força tenha se imposto na relação, as outras, ou mesmo novas forças, continuarão a disputa e a luta, mais ou menos evidentemente.
O conjunto ou o universo de regras que deriva de uma situação de conflito, e portanto da “guerra”, e que por vezes institui a paz, satisfazem, na realidade, a violência intrínseca ao jogo de poder: esse “universo de regras […] não é destinado a adoçar, mas ao contrário a satisfazer a violência. Seria um erro acreditar, segundo o esquema tradicional, que a guerra geral, se esgotando em suas próprias contradições, acaba por renunciar à violência e aceita sua própria supressão nas leis da paz civil. A regra é o prazer calculado da obstinação, é o sangue prometido. Ela permite reativar sem cessar o jogo da dominação; ela põe em cena uma violência meticulosamente repetida. O desejo da paz, a doçura do compromisso, a aceitação tácita da lei, longe de serem a grande conversão moral, ou o útil calculado que deram nascimento à regra, são apenas seu resultado e, propriamente falando, sua perversão: ‘Falta, consciência, dever têm sua emergência no direito de obrigação; e em seus começos, como tudo o que é grande sobre a Terra, foi banhado de sangue’.”[MP, p. 25] Portanto, para Foucault, a paz é a instituição, ou a própria institucionalização da violência da guerra.
É nesse sentido que um conjunto de decisões só pode, realmente, vir da guerra, já que as decisões surgem a partir do estabelecimento de relações de poder, as quais envolvem todas as forças em jogo. Foucault sustenta que uma relação de poder tem por base uma relação de força estabelecida, ou seja, quando, em uma determinada correlação de forças, alguma delas se impõe em relação às outras, há uma relação de poder, que está localizada no tempo e no espaço. Por isso Foucault caracteriza a política como a intervenção/participação em uma determinada correlação de forças, sempre desequilibrada, que pode realizar-se em sentido favorável, de impulsionar determinada força, ou no sentido oposto, de contê-la.
A história, assim, só poderia ser uma história do poder, forjada nas relações de dominação, responsável por estabelecer, no corpo social, “dominadores e dominados. Homens dominam outros homens e é assim que nasce a diferença dos valores; classes dominam classes e é assim que nasce a idéia de liberdade; homens se apoderam de coisas das quais eles têm necessidade para viver, eles lhes impõem uma duração que elas não têm, ou eles as assimilam pela força − e é o nascimento da lógica.”[MP, pp. 24-25] Um acontecimento histórico, nesse sentido, é “uma relação de forças que se inverte, um poder confiscado, um vocabulário retomado e voltado contra seus utilizadores, uma dominação que se enfraquece, se distende, se envenena e uma outra que faz sua entrada, mascarada.”[MP, p. 28] A história, a realidade, segundo Foucault, deve ser pensada em termos das relações de poder e, portanto, pode-se inferir que, para ele, o poder o “motor da história”.
Falar que o final da política seria a última batalha, e que só essa batalha seria capaz de acabar com a situação de guerra e com o próprio poder, parece uma sutileza de Foucault para dizer que o final da política, e do próprio poder, só existiria com o fim da história.
Há, no sentido colocado, uma preferência de Foucault em não falar em poder, mas em relações de poder, já que o poder em si, para ele, não existiria como noção apartada da idéia de disputa e luta de forças que se impõem umas às outras. Por isso sua afirmação de que “as relações de poder são uma relação desigual e relativamente estabilizada de forças”[MP, p. 250] e que “lutamos todos contra todos”[MP, p. 257]. A situação de guerra permanente colocaria todos os indivíduos, e suas respectivas forças, em disputa e luta permanente, e por isso ele afirmará, como será discutido mais à frente, que o poder se dá em todas as esferas e níveis, quando há imposição de força em uma determinada relação.
No entanto, há um porém: “a pura e simples afirmação de uma ‘luta’ não pode servir de explicação primeira e última para a análise das relações de poder. Este tema da luta só se torna operatório se for estabelecido concretamente, e em relação a cada caso, quem está em luta, a respeito de que, como se desenrola a luta, em que lugar, com quais instrumentos e segundo que racionalidade. Em outras palavras, se o objetivo for levar a sério a afirmação de que a luta está no centro das relações de poder, é preciso perceber que a brava e velha ‘lógica’ da contradição não é de forma alguma suficiente para elucidar os processos reais.”[MP, p. 226] Uma condição que, segundo coloca Foucault, não foi cumprida pela concepção de luta de classes marxista, já que aqueles que a formularam “se preocuparam principalmente em saber o que é a classe, onde ela se situa, quem ela engloba e jamais o que concretamente é a luta”[MP, p. 242]; ou seja, teriam dado mais atenção ao conceito de classe do que ao conceito de luta. Analisar o poder, e portanto as lutas, implica, portanto, identificar atores que emergem, que entram em cena, um momento em que as forças “passam dos bastidores para o teatro”, designando “um lugar de afrontamento”.[MP, p. 24]
A relação do poder com a guerra traz junto outra implicação de relevância, que é a estratégia, termo ao qual Foucault refere-se com freqüência: “quando falo de estratégia”, coloca, “levo o termo a sério”; “para que uma determinada relação de forças possa não somente se manter, mas se acentuar, se estabilizar e ganhar terreno, é necessário que haja uma manobra” [MP, p. 255]. Assim, a estratégia torna-se conceito central ao se tratar do poder, já que a concepção de relações de forças implicaria sempre uma leitura da realidade, um objetivo estratégico e conjuntos táticos capazes de conduzir à estratégia e aos objetivos almejados. Analisar o poder, seria, em outros termos, realizar uma “genealogia das relações de força, de desenvolvimentos de estratégias e táticas”.[MP, p. 5]
Finalmente, Foucault coloca: “o poder é um feixe de relações mais ou menos organizado, mais ou menos piramidalizado, mais ou menos coordenado”[MP, p. 248]; é uma “coisa tão enigmática, ao mesmo tempo visível e invisível, presente e oculta, investida em toda parte”.[MP, p. 75] “Nada é mais material, nada é mais físico, mais corporal que o exercício do poder”.[MP, p. 147]
É um risco tentar elaborar uma resposta de Foucault para a primeira questão formulada, já que a análise aqui realizada considera diferentes artigos, escritos em épocas diferentes, e desconsidera o contexto histórico dentro do qual estão inseridos. Encontra as limitações colocadas no início do artigo. Como Foucault sempre buscou elaborar suas reflexões teóricas do poder com o objetivo de refletir sobre situações concretas e reais – seus objetos de investigação –, retirar os aspectos teóricos de suas reflexões, buscando elaborar uma “teoria do poder”, implica arriscar-se seriamente, já que essa nunca foi a intenção do autor. No entanto, a título de exercício teórico, buscarei, sabendo desse risco, formular, a partir dos argumentos colocados, uma possível resposta de Foucault para a questão: O que são o poder e as relações de poder?
O poder é uma relação que se estabelece nas lutas e disputas (na guerra, portanto) entre diversas forças, quando uma força se impõe às outras. Assim, poder e relação de poder podem funcionar como sinônimos. As forças em jogo contínuo, dinâmico e permanente, constituem a base das relações em qualquer sociedade e as lutas e disputas podem estar mais ou menos evidentes, serem mais ou menos violentas, mas sempre existem. As relações de poder são o conjunto dos poderes que se estabelecem entre as diversas forças em jogo. Relações que só existem no espaço e no tempo e que possuem diferentes características em termos de organização, visibilidade, nível de incidência e espaços em que se dão.
O lócus do poder e das relações de poder
As três esferas e o poder
A título analítico, trabalharei com a divisão da estrutura sistêmica da sociedade em três esferas fundamentais: econômica, política/jurídica/militar e cultural/ideológica – estrutura com a qual, aparentemente, Foucault não costuma trabalhar. Será com base nessas esferas que realizarei a analise de onde Foucault acredita estar o poder, ou seja, como se poderia encontrar uma resposta para a segunda questão central sobre o poder: Aonde está o poder e aonde se dão as relações de poder? – estabelecendo, dessa maneira, uma identificação do locus do poder.
A esfera política/jurídica/militar
Tratando de estudos prévios aos seus, Foucault afirma: “A teoria do Estado, a análise tradicional dos aparelhos de Estado, sem dúvida não esgotam o campo de exercício e de funcionamento do poder”.[MP, p. 75] Isso porque “o poder, em seu exercício vai muito mais longe, passa por canais muito mais sutis, é muito mais ambíguo [que o aparelho de Estado], porque cada um de nós, é, no fundo, titular de um certo poder e, por isso, veicula o poder”.[MP, p. 160] Por isso, Foucault afirma que a busca pelo locus do poder não pode resumir-se ao campo do Estado. Obviamente, com isso, não está negando que no Estado não haja poder, mas que o poder também se dá em esferas e níveis que estão para além do Estado.
Uma visão que não implica, “de forma alguma, a intenção de diminuir a importância e a eficácia do poder do Estado”. Mas constitui uma preocupação, já que “de tanto se insistir em seu papel, e em seu papel exclusivo, corre-se o risco de não dar conta de todos os mecanismos e efeitos do poder que não passam diretamente pelo aparelho de Estado, que muitas vezes o sustentam, o reproduzem, elevam sua eficácia ao máximo”.[MP, p. 161] Assim, nota-se a preocupação de um certo reducionismo que, ao priorizar o Estado como locus do poder deixaria de lado uma série de outros loci que possuem, para ele, relevância. “A questão do poder fica empobrecida quando é colocada unicamente em termos de legislação, de Constituição, ou somente em termos de Estado ou de aparelho de Estado. O poder é mais complicado, muito mais denso e difuso que um conjunto de leis ou um aparelho de Estado.”[MP, p. 221]
Estudar o poder para Foucault é, portanto, considerá-lo mais amplamente que o Estado, já que “as relações de poder […] passam por muitas outras coisas”. “As relações de poder existem entre um homem e uma mulher, entre aquele que sabe e aquele que não sabe, entre os pais e as crianças, na família. Na sociedade, há milhares e milhares de relações de poder e, por conseguinte, relações de forças de pequenos enfrentamentos, microlutas, de algum modo.”[EPS, p. 231] E, se por um lado pode haver influências do Estado e também das dominações de classe nessas outras relações de poder, é possível afirmar que o contrário também é verdadeiro: “Se for verdade que essas pequenas relações de poder são com freqüência comandadas, induzidas do alto pelos grandes poderes de Estado ou pelas grandes dominações de classe, é preciso ainda dizer que, em sentido inverso, uma dominação de classe ou uma estrutura de Estado só podem funcionar se há, na base, essas pequenas relações de poder. O que seria o poder de Estado, aquele que impõe, por exemplo, o serviço militar, se não houvesse, em torno de cada indivíduo, todo um feixe de relações de poder que o liga a seus pais, a seu patrão, a seu professor – àquele que sabe, àquele que lhe enfiou na cabeça tal ou qual idéia? A estrutura de Estado, no que ela tem de geral, de abstrato, mesmo de violento, não chegaria a manter, assim, contínua e cautelosamente, todos os indivíduos, se ela não se enraizasse, não utilizasse, como uma espécie de grande estratégia, todas as pequenas táticas locais e individuais que encerram cada um entre nós.”[EPS, pp. 231-232]
Conceber uma teoria libertária do poder, que tenha como objetivo fornecer ferramentas para a compreensão da sociedade e sobre a qual possam ser estabelecidas estratégias de transformação envolve, partido da análise de Foucault, ter em mente que “o poder não está localizado no aparelho de Estado e que nada mudará na sociedade se os mecanismos de poder que funcionam fora, abaixo, ao lado dos aparelhos de Estado, a um nível muito mais elementar, cotidiano, não forem modificados”.[MP, pp. 149-150] E nesse sentido, as análises e estratégias de transformação têm a necessidade de extrapolar a esfera do Estado.
Portanto, como dito, há para Foucault poder no Estado, mas uma análise do locus do poder não pode se resumir ao Estado e, menos ainda, ao governo. Ainda tratando da esfera política, e de certa maneira ligado à questão do Estado, pode-se localizar o poder também no judiciário, nas prisões, nos hospitais psiquiátricos, na polícia, no exército, nas leis etc. Para as pesquisas, Foucault recomenda: “em vez de orientar a pesquisa sobre o poder no sentido do edifício jurídico da soberania, dos aparelhos de Estado e das ideologias que o acompanham, deve-se orientá-la para a dominação, os operadores materiais, as formas de sujeição, os usos e as conexões da sujeição pelos sistemas locais e os dispositivos estratégicos. E preciso estudar o poder colocando-se fora do modelo do Leviatã, fora do campo delimitado pela soberania jurídica e pela instituição estatal. E preciso estudá-lo a partir das técnicas e táticas de dominação. Esta é, grosso modo, a linha metodológica a ser seguida e que procurei seguir nas várias pesquisas que fizemos nos últimos anos.”[MP, p. 186]
A esfera cultural/ideológica
O poder, para Foucault, como se viu, não se resume à esfera política. Diversas de suas discussões se dão em torno da esfera cultural/ideológica. É relevante aqui fazer um esclarecimento de que Foucault geralmente nega o conceito de ideologia, por identificá-la com a definição que se aproxima do que foi chamado de “significado forte” de ideologia: “A noção de ideologia me parece dificilmente utilizável por três razões. A primeira é que, queira-se ou não, ela está sempre em oposição virtual a alguma coisa que seria a verdade. Ora, creio que o problema não é de se fazer a partilha entre o que num discurso releva da cientificidade e da verdade e o que relevaria de outra coisa; mas de ver historicamente como se produzem efeitos de verdade no interior de discursos que não são em si nem verdadeiros nem falsos. Segundo inconveniente: refere-se necessariamente a alguma coisa como o sujeito. Enfim, a ideologia está em posição secundária com relação a alguma coisa que deve funcionar para ela como infra-estrutura ou determinação econômica, material, etc. Por estas três razões, creio que é uma noção que não deve ser utilizada sem precauções.”[MP, p. 7] Quando trabalho com a ideologia como parte constituinte de uma esfera, utilizo essa precaução e trabalho com uma compreensão mais próxima do que foi chamado de “significado fraco” de ideologia.[4]
Ao afirmar que a concepção de Foucault envolve a esfera cultural/ideológica estou me referindo ao campo das idéias, dos discursos, dos valores, da moral, da ética, das motivações, dos desejos, das aspirações, dos costumes, das crenças, do saber etc. Aspectos centrais na teoria foucaultiana do poder. Para ele, essa esfera, que envolve os campos mencionados, está cheia de relações de poder e suas investigações acerca da verdade e do saber têm muito a contribuir nesse sentido.
Para o autor, há cinco características históricas relevantes sobre a verdade: “‘a verdade’ é centrada na forma do discurso científico e nas instituições que o produzem; está submetida a uma constante incitação econômica e política (necessidade de verdade tanto para a produção econômica, quanto para o poder político); é objeto, de várias formas, de uma imensa difusão e de um imenso consumo (circula nos aparelhos de educação ou de informação, cuja extensão no corpo social é relativamente grande, não obstante algumas limitações rigorosas); é produzida e transmitida sob o controle, não exclusivo, mas dominante, de alguns grandes aparelhos políticos ou econômicos (universidade, exército, escritura, meios de comunicação); enfim, é objeto de debate político e de confronto social (as lutas ‘ideológicas’).”[MP, p. 13] Deixando de lado as relações entre essa esfera e as esferas política e econômica – questão que será abordada mais adiante –, pode-se afirmar que, para Foucault, a esfera cultural/ideológica também é locus do poder; poderes que se ligam diretamente à determinadas concepções de verdade, as quais, muitas vezes, fundamentam-se no discurso científico, utilizando-se da ciência para legitimar posições que podem ou não ter conteúdo, de fato, científico. O poder, nesse sentido, estaria nas escolas, nas universidades, na imprensa e na indústria cultural, forjando-se nas relações sociais que se estabelecem nesses âmbitos.
Foucault sugere compreender verdade como “um conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados”, sendo que ela estaria “circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e a apóiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem. ‘Regime da verdade’”. Um regime que, na realidade, “não é simplesmente ideológico ou superestrutural; foi uma condição de formação e desenvolvimento do capitalismo” – e, para ser transformado, precisaria ser desvinculado das hegemonias sociais, econômicas e culturais. E também coloca: “a questão política não é o erro, a ilusão, a consciência alienada ou a ideologia; é a própria verdade”.[MP, p. 14]
A verdade, portanto, instituiria um determinado campo regulatório/normativo responsável pela circulação do poder. Um campo que se alimentaria de outras relações de poder e ao mesmo tempo as alimentaria, não consistindo em um mero reflexo da infra-estrutura da sociedade e tendo relevância, também, na formulação e no desenvolvimento de outras relações de poder. A noção de verdadeiro e falso seria capaz de se estabelecer em discursos com influências morais, e forjar noções de bem e de mal, de certo e de errado, muitas das quais serviriam de base para relações de poder. A verdade, no sentido daquilo “que se dá”, é um “acontecimento”; “deste acontecimento que assim se produz impressionando aquele que o buscava, a relação não é do objeto ao sujeito de conhecimento. E uma relação ambígua, reversível, que luta belicosamente por controle, dominação e vitória: uma relação de poder.”[MP, pp. 114-115] Em suma, “essas produções de verdades não podem ser dissociadas do poder e dos mecanismos de poder, ao mesmo tempo porque esses mecanismos de poder tornam possíveis, induzem essas produções de verdades, e porque essas produções de verdade têm, elas próprias, efeitos de poder que nos unem, nos atam”.[EPS, p. 229]
Foucault acredita, similarmente, que o saber possui uma relação estreita com o poder, ou seja, haveria “uma perpétua articulação do poder com o saber e do saber com o poder”. Pensa que “exercer o poder cria objetos de saber, os faz emergir, acumula informações e as utiliza. Não se pode compreender nada sobre o saber econômico se não se sabe como se exercia, cotidianamente, o poder, e o poder econômico. O exercício do poder cria perpetuamente saber e, inversamente, o saber acarreta efeitos de poder.[MP, pp. 141-142] O saber, nesse sentido, serviria como causa e conseqüência de acontecimentos diversos que seriam parte de inúmeras relações de poder. Foucault trabalha com a hipótese de que “as grandes máquinas de poder” podem ter “sido acompanhadas de produções ideológicas. Houve, provavelmente, por exemplo, uma ideologia da educação; uma ideologia do poder monárquico, uma ideologia da democracia parlamentar, etc.; mas não creio que aquilo que se forma na base sejam ideologias: é muito menos e muito mais do que isso. São instrumentos reais de formação e de acumulação do saber: métodos de observação, técnicas de registro, procedimentos de inquérito e de pesquisa, aparelhos de verificação. Tudo isto significa que o poder, para exercer-se nestes mecanismos sutis, é obrigado a formar, organizar e pôr em circulação um saber, ou melhor, aparelhos de saber que não são construções ideológicas.”[MP, p. 186]
Essa esfera que chamei de cultural/ideológica contaria ainda com elementos relevantes como o papel dos intelectuais e das religiões, e as noções de desejo e interesse. Sobre esses últimos, afirma Foucault: “as relações entre desejo, poder e interesse são mais complexas do que geralmente se acredita e não são necessariamente os que exercem o poder que têm interesse em exercê-lo, os que têm interesse em exercê-lo não o exercem e o desejo do poder estabelece uma relação ainda singular entre o poder e o interesse. […] Esta relação entre o desejo, o poder e o interesse é ainda pouco conhecida.” Afirmações que, sem cair em reducionismos generalizantes, dão uma idéia dos desafios que ainda se colocam àqueles que se dispõem a estudar o poder.
A esfera econômica
O tema da economia não é significativamente estudado por Foucault, mesmo porque, sua principal intenção é entender o poder em outras esferas e as determinadas influências que o poder dessas esferas poderiam exercer na esfera econômica, responsável pelas relações de produção, distribuição e consumo. Foucault identifica certa evolução nesse campo, aparentemente no marxismo, quando coloca, por exemplo, que a exploração só foi realmente compreendida durante o século XIX.[MP, p. 75] No entanto, esse salto qualitativo na compreensão econômica da sociedade teria tido como conseqüência o fato de que, desde aqueles tempos, “a crítica da sociedade foi feita, essencialmente, a partir do caráter efetivamente determinante da economia. Sã redução do ‘político’, certamente, mas também tendência a negligenciar as relações de poder elementares que podem ser constituintes das relações econômicas.”[MP, p. 237]. Nesse sentido, se por um lado os estudos que vêm desde o século XIX permitiram uma compreensão mais aprofundada da economia, identificando que nela também havia poder e reconhecendo sua relevância, por outro, eles terminaram apontando para um certo reducionismo, quando a economia passou a ser vista como locus exclusivo do poder ou como uma infra-estrutura que necessariamente determinaria tudo aquilo que se chamou de superestrutura.
Portanto, considerar o autor dentro de seu respectivo contexto implica, nesse caso, compreender a tentativa de Foucault de extrapolar a esfera econômica para as análises do poder. E por esse motivo, quando trata de economia, sua abordagem se dá mais no sentido de criticar esse “economicismo” do que de tratar do poder na esfera econômica. Ele se volta “contra a idéia de um poder que seria uma superestrutura”, obedecendo necessariamente a um determinismo da esfera econômica, “mas não contra a idéia de que este poder é, de alguma forma, consubstancial ao desenvolvimento das forças produtivas; ele faz parte deste desenvolvimento” e “se transforma continuamente junto com elas”.[MP, p. 222] Foucault acredita que não se pode reduzir o poder a uma superestrutura, determinada pela economia, mas também não se pode negar que na esfera econômica exista poder.
Isso significa que, para Foucault, existe poder na esfera econômica – constituída pelas relações econômicas que envolvem o campo do trabalho, as classes, etc. – que é, também, locus privilegiado do poder.
Sua intenção, como mencionado, não será discutir as questões macro-econômicas que, segundo ele, vêm sendo suficientemente estudadas desde o século XIX. Foucault se dedicará às funções no campo do trabalho que extrapolam as relações de produção e privilegiará, como de praxe, as micro-relações. Referindo-se, por exemplo, ao seu interesse no campo do trabalho, afirma: “A função produtiva [do trabalho] é sensivelmente igual a zero nas categorias de que me ocupo, enquanto que as funções simbólica e disciplinar são muito importantes”.[MP, p. 224] Foucault busca pesquisar as micro-relações de poder, nos níveis mais fundamentais da sociedade, relações geralmente menos evidentes, apreendendo-as “até as infra-estruturas econômicas”, que constituem macro-relações mais evidentes. E sua teoria deve ser compreendida dentro desse contexto.
Pode-se, também, na discussão do poder na esfera econômica, trazer algumas contribuições de Foucault para o tema das classes sociais e da luta de classes. O autor não nega a existência de classes sociais e de uma relação de poder e dominação entre elas; uma relação que se realizaria a partir de um conjunto determinado de estratégias e táticas com resultados tanto na classe dominante como na classe dominada: “Uma classe dominante não é uma abstração, mas também não é um dado prévio. Que uma classe se torne dominante, que ela assegure sua dominação e que esta dominação se reproduza, estes são efeitos de um certo número de táticas eficazes, sistemáticas, que funcionam no interior de grandes estratégias que asseguram esta dominação. Mas entre a estratégia que fixa, reproduz, multiplica, acentua as relações de força e a classe dominante, existe uma relação recíproca de produção. Pode-se, portanto, dizer que a estratégia de moralização da classe operária é a da burguesia. Pode-se mesmo dizer que é a estratégia que permite à classe burguesa ser a classe burguesa e exercer sua dominação.”[MP, pp. 252-253] A partir da noção de dominação de classe, parece evidente que o saber possui uma relação estrita com ela, já que a família, a universidade, o sistema escolar, responsáveis pela distribuição do poder, são feitos “para manter no poder uma certa classe social e excluir dos instrumentos do poder qualquer outra classe social”.[EPS, p. 114]
A contradição entre as classes sociais – que poderia ser chamada de luta de classes, já que “luta é contradição” – deve ser objeto de investigação, já que “o problema é saber se a lógica da contradição pode servir de princípio de inteligibilidade e de regra de ação na luta política”.[EPS, p. 250] Algo que implica, para Foucault, abandonar a dialética de base hegeliana, e pensar as relações de poder em termos luta, sem necessariamente uma síntese como resultado: “Não sei bem como solucionar este problema. Mas quando se considera que o poder deve ser analisado em termos de relações de poder, é possível apreender, muito mais que em outras elaborações teóricas, a relação que existe entre o poder e a luta, em particular a luta de classes.”[MP, p. 256] E é nesse sentido que ele questiona a prioridade que, no marxismo, se deu à discussão da classe em detrimento da questão da luta.
É, no entanto, necessário enfatizar, que, se a luta de classes explica parte das relações de poder, não se pode generalizar: “não acho que seja fecundo, que seja operante dizer que a psiquiatria é a psiquiatria de classe, a medicina, a medicina de classe, os médicos e psiquiatras, os representantes dos interesses de classe. Não se chega a lugar nenhum quando se faz isso, mas é preciso, contudo, reinserir a complexidade desses fenômenos no interior de processos históricos que são econômicos etc.”[EPS, p. 228] Portanto, para Foucaut, não se pode querer explicar todas as relações de poder com base nas análises de classe. Assim, “a luta de classes pode, portanto, não ser a ‘ratio do exercício do poder’ e ser, todavia, ‘garantia de inteligibilidade’ de algumas grandes estratégias.”[EPS, p. 249]
O poder em todo o corpo social
Como se viu, para Foucault há poder nas três grandes esferas anteriormente especificadas; relações que atravessam, portanto, todo o corpo social: “em uma sociedade como a nossa, mas no fundo em qualquer sociedade, existem relações de poder múltiplas que atravessam, caracterizam e constituem o corpo social”[MP, p. 179]; “o poder não opera em um único lugar, mas em lugares múltiplos”.[EPS, p. 262]
Nesse sentido, há poder em todas as esferas estruturadas, tanto em nível macro, como em nível micro. Não se trata, para Foucault, em seus estudos, de compreender o poder que se encontra nos centros, mas “ao contrário, de captar o poder em suas extremidades, em suas últimas ramificações, lá onde ele se torna capilar”.[MP, p. 182] E corrobora: “quando penso na mecânica do poder, penso em sua forma capilar de existir, no ponto em que o poder encontra o nível dos indivíduos, atinge seus corpos, vem se inserir em seus gestos, suas atitudes, seus discursos, sua aprendizagem, sua vida cotidiana.”[MP, p. 131] Seu interesse está “na vida cotidiana, nas relações entre os sexos, nas famílias, entre os doentes mentais e as pessoas sensatas, entre os doentes e os médicos”[EPS, p. 233]; e mais: “a vida sexual, […] a exclusão dos homossexuais”. Para ele, “todas essas relações são relações políticas”.[EPS, p. 262]
Ainda que seu foco seja nos níveis mais baixos, básicos, capilares e periféricos do poder, isso não significa negar a presença do poder em seus aspectos altos, mais evidentes e centrais. Para Foucault, as micro-relações de poder são relevantes, pois, além de serem influenciadas pelas macro-relações, têm a capacidade de influenciá-las e estruturá-las. Há, assim, relações de poder que se estruturam de forma piramidal, com um pico, um ápice, e uma base. “Existe, portanto, um ápice”, ainda que esse ápice não seja necessariamente “a ‘fonte’ ou o ‘princípio’ de onde todo o poder derivaria como de um foco luminoso. […] O ápice e os elementos inferiores estão em uma relação de apoio e de condicionamento recíprocos; eles se sustentam”[MP, p. 221] – relação que será investigada a seguir.
O poder estaria “sempre ali”, nunca permitindo estarmos “fora”, já “que não há ‘margens’ para a cambalhota daqueles que estão em ruptura”, ainda que essa afirmação não implique “que se deva admitir uma forma incontornável de dominação ou um privilégio absoluto da lei. Que nunca se possa estar ‘fora do poder’ não quer dizer que se está inteiramente capturado na armadilha.”[EPS, p. 248]
Ainda que como hipóteses a serem exploradas, Foucault sugere: “– que o poder é coextensivo ao corpo social; não há, entre as malhas de sua rede, praias de liberdades elementares; – que as relações de poder são intrincadas em outros tipos de relação (de produção, de aliança, de família, de sexualidade) em que desempenham um papel ao mesmo tempo condicionante e condicionado; – que elas não obedecem à forma única da interdição e do castigo, mas que são formas múltiplas; – que seu entrecruzamento delineia fatos gerais de dominação, que esta dominação se organiza em estratégia mais ou menos coerente e unitária; que os procedimentos dispersados, heteromorfos e locais do poder são reajustados, reforçados, transformados por essas estratégias globais, e tudo isso com numerosos fenômenos de inércia, de intervalos, de resistências; que não se deve, portanto, pensar um fato primeiro e maciço de dominação (uma estrutura binária com, de um lado, os ´dominantes` e, de outro, os ´dominados`), mas, antes, uma produção multiforme de relações de dominação, que são parcialmente integráveis a estratégias de conjunto.”[Ibid.] Posição que se evidencia em sua própria definição de dominação: “por dominação eu não entendo o fato de uma dominação global de um sobre os outros, ou de um grupo sobre o outro, mas as múltiplas formas de dominação que podem se exercer na sociedade”.[MP, p. 181]
Fechando, e novamente, a título de exercício teórico, e consciente dos riscos que isso implica, buscarei uma possível resposta de Foucault para a questão: Onde está o poder e aonde se dão as relações de poder?
O poder está em todo o corpo social, nas distintas esferas da sociedade (macro e micro, do centro e da periferia), as quais possuem, em seu seio, múltiplas relações de poder que atravessam, caracterizam e constituem esse corpo social. O poder, portanto, não é uma exclusividade do Estado e existe para além da esfera política, nas relações sociais forjadas cultural e ideologicamente, assim como no campo da economia. No entanto, aceitar que há poder na esfera econômica não significa negar que haja poder nas outras esferas e nem que a esfera econômica determine ou se sobreponha, obrigatoriamente, às outras. A esfera econômica e as próprias categorias mais ligadas à economia, como as classes sociais e a luta de classes, constituem parte do locus do poder e explicam o poder apenas parcialmente.
A dinâmica do poder e das relações de poder
Para estudar a dinâmica do poder e das relações de poder, Foucault rechaça algumas posições clássicas que foram – e, em alguma medida, ainda são – defendidas por teóricos e correntes que se debruçaram sobre o tema. Propõe, contrapondo as posições criticadas, concepções acerca do modus operandi do poder.
Progresso e evolução da sociedade
Dentre as questões teórico-filosóficas que nortearam muito do pensamento social clássico – que inclui os teóricos do socialismo – está a noção de progresso e/ou evolução da sociedade. Haveria um sentido progressivo e evolutivo na história da humanidade?
Durante o século XIX, o pensamento socialista, por exemplo, esteve permeado por uma resposta afirmativa em relação a essa questão. Marx acreditava que o capitalismo era um progresso em relação ao feudalismo e uma ante-sala do socialismo, que necessariamente chegaria por um desenvolvimento das forças produtivas; Proudhon, em sua dialética serial, nunca abandonou a noção de que a contradição entre os pares antinômicos, ainda que constituísse certa “equilibração”, sem síntese e fim dos conflitos, implicaria um progresso gradual da sociedade; Bakunin acreditava que a humanidade, atual fase do desenvolvimento humano, provinha da animalidade e era também a ante-sala da liberdade, terceira e última fase do desenvolvimento natural e inevitável da humanidade; Kropotkin acreditava que a revolução era inevitável, por razão da desorganização natural da sociedade contemporânea e por uma certa tendência natural do homem à cooperação – fatos que ele afirmava ter verificado cientificamente. São inúmeros os exemplos que se poderia dar.
Foucault discorda dessas posições. Para ele, a sociedade não tem por trás de suas relações de poder um mecanismo que leva, naturalmente, ao progresso ou à evolução em qualquer sentido, seja ele o socialismo, a liberdade, o fim dos conflitos ou qualquer outro fim pré-determinado. Mesmo a idéia de fim dos conflitos, de paz, como se viu, para o autor, tem mais um sentido de instituição e de institucionalização da guerra, do que de objetivo final da sociedade: “A humanidade não progride lentamente, de combate em combate, até uma reciprocidade universal, em que as regras substituiriam para sempre a guerra; ela instala cada uma de suas violências em um sistema de regras, e prossegue assim de dominação em dominação.”[MP, p. 25] Os próprios conflitos de forças, como também já se viu, nunca deixariam de existir. A história, nesse sentido, “não se apóia em nenhuma constância”[MP, p. 27] e “o verdadeiro sentido histórico reconhece que nós vivemos sem referências ou sem coordenadas originárias”.[MP, p. 29] Assim, pode-se dizer que Foucault acredita que não há uma noção de progresso ou de evolução que impulsione a história; não há também uma constância determinada e nem referências ou coordenadas originárias da sociedade, que permitiriam saber em que sentido ela se desenvolve. Enfatiza: “apenas a metafísica poderia interpretar o devir da humanidade.”[MP, p. 26]
O progresso e a evolução não explicam, portanto, o desenvolvimento da sociedade e os caminhos da história; é a luta entre as diversas forças que o fazem: “As forças que se encontram em jogo na história não obedecem nem a uma destinação, nem a uma mecânica, mas ao acaso da luta.”[MP, p. 28] É a luta entre as distintas forças que impulsiona a sociedade para um ou outro sentido.
Assim, dependendo da concepção ética por trás da formulação elaborada, é possível dizer que a humanidade pode progredir, mas também pode regredir. Afinal, o que é progresso e o que é regresso? A resposta está certamente ligada à idéia do que é mais avançado, do que é melhor, do que se aproxima mais daquilo que se concebe como ideal. E nesse sentido, para Foucault, a sociedade pode caminhar para um lado ou para outro, dependendo das relações de poder que se forjarem nos conflitos da sociedade.
Por esse motivo, ele afirma: “não digo que a humanidade não progrida. Digo que considero um mau método colocar o problema ‘por que progredimos?’ O problema é ‘como isto se passa?’ E o que se passa agora não é forçosamente melhor, ou mais elaborado, ou melhor elucidado do que o que se passou antes.”[MP, p. 140] Para o autor, é fundamental abandonar essa concepção, que se poderia chamar de teleológica, do desenvolvimento da sociedade e do sentido da história, ainda que ela afirme basear-se em pressupostos científicos.
Economicismo e materialismo histórico
Foucault, nessa discussão do “como” do poder, pergunta: “a análise do poder ou dos poderes pode ser, de uma maneira ou de outra, deduzida da economia?”. Refletindo sobre a questão, pondera que, apesar das significativas diferenças, “existe um ponto em comum entre a concepção jurídica ou liberal do poder político – tal como encontramos nos filósofos do século XVIII – e a concepção marxista, ou uma certa concepção corrente que passa como sendo a concepção marxista. Este ponto em comum é o que chamarei o economicismo na teoria do poder”.[MP, p. 174]
“Com isto quero dizer o seguinte: no caso da teoria jurídica clássica, o poder é considerado como um direito de que se seria possuidor como de um bem e que se poderia, por conseguinte, transferir ou alienar, total ou parcialmente, por um ato jurídico ou um ato fundador de direito, que seria da ordem da cessão ou do contrato. O poder é o poder concreto que cada indivíduo detém e que cederia, total ou parcialmente, para constituir um poder político, uma soberania política. Neste conjunto teórico a que me refiro, a constituição do poder político se faz segundo o modelo de uma operação jurídica que seria da ordem da troca contratual. Por conseguinte, analogia manifesta, que percorre toda a teoria, entre o poder e os bens, o poder e a riqueza. No outro caso – concepção marxista geral do poder – nada disto é evidente; a concepção marxista trata de outra coisa, da funcionalidade econômica do poder. Funcionalidade econômica, no sentido em que o poder teria essencialmente como papel manter relações de produção e reproduzir uma dominação de classe que o desenvolvimento e uma modalidade própria da apropriação das forças produtivas tornaram possível. O poder político teria, neste caso, encontrado na economia sua razão de ser histórica. De modo geral, em um caso temos um poder político que encontraria no procedimento de troca, na economia da circulação dos bens o seu modelo formal e, no outro, o poder político teria na economia sua razão de ser histórica, o princípio de sua forma concreta e do seu funcionamento atual.” [MP, pp. 174-175]
Questionando ambas as abordagens, Foucault coloca algumas perguntas. “Em primeiro lugar, o poder está sempre em posição secundária em relação à economia, ele é sempre ‘finalizado’ e ‘funcionalizado’ pela economia? Tem essencialmente como razão de ser e fim servir a economia, está destinado a fazê-la funcionar, a solidificar, manter e reproduzir as relações que são características desta economia e essenciais ao seu funcionamento? Em segundo lugar, o poder é modelado pela mercadoria, por algo que se possui, se adquire, se cede por contrato ou por força, que se aliena ou se recupera, que circula, que herda esta ou aquela região? Ou, ao contrário, os instrumentos necessários para analisá-lo são diversos, mesmo se efetivamente as relações de poder estão profundamente intrincadas nas e com as relações econômicas e sempre constituem com elas um feixe?”[MP, p. 175] Uma breve resposta parece apontar o caminho: “neste caso, a indissociabilidade da economia e do político não seria da ordem da subordinação funcional nem do isomorfismo formal, mas de uma outra ordem, que se deveria explicitar”, afirmando, portanto, um vínculo estreito entre economia e política.
Enfatizando sua posição do poder como relação de força, Foucault coloca: “Para fazer uma análise não econômica do poder, de que instrumentos dispomos hoje? Creio que de muito poucos. Dispomos da afirmação que o poder não se dá, não se troca nem se retoma, mas se exerce, só existe em ação, como também da afirmação que o poder não é principalmente manutenção e reprodução das relações econômicas, mas acima de tudo uma relação de força.”[Ibid.] Retorna, aqui, às reflexões conceituais sobre o poder e afirma duas posições: por um lado, nega que o poder seja somente a manutenção e reprodução da economia, por outro, volta a afirmar o poder como relação de força.
O “economicismo” na teoria do poder, coloca Foucault, bastante reforçado durante o século XIX, conseguiu-se impor para significativa parcela dos teóricos do poder e da política em geral. “O século XIX nos prometera que, no dia em que os problemas econômicos se resolvessem, todos os efeitos de poder suplementar excessivo estariam resolvidos.”[EPS, p. 225] Com isso, acreditou-se que a esfera econômica implicaria uma determinação necessária e obrigatória das outras esferas e que, sendo as questões econômicas resolvidas, as outras também necessariamente seriam. Mas segundo acredita o autor, não foi isso que o século XX mostrou. “O século XX descobriu o contrário: “podem-se resolver todos os problemas econômicos que se quiser e os excessos do poder permanecem”[Ibid.], parecendo aludir às experiências do “socialismo real”.
Nesse sentido, a economia, ainda que explique parcialmente o poder, não o explica na sua totalidade; análise que também seria válida para uma tentativa de reduzir uma explicação do poder às categorias classe/exploração. “Talvez não baste dizer que, por trás dos governos, por trás dos aparelhos de Estado, há a classe dominante; é preciso situar o ponto de atividade, os lugares e as formas sob as quais se exerce essa dominação. É porque essa dominação não é simplesmente a expressão, em termos políticos, da exploração econômica, ela é seu instrumento, em ampla medida a condição que a torna possível; a supressão de uma se realiza pelo discernimento exaustivo da outra.”[EPS, p. 115] Ou seja, é preciso entender o “aonde” e o “como” dessas relações, sabendo que elas podem ser produto ou produtoras da economia.
Essa posição termina por afastar Foucault do materialismo histórico que, segundo acredita, buscaria “situar na base do sistema as forças produtivas, em seguida as relações de produção para se chegar à superestrutura jurídica e ideológica, e finalmente ao que dá a sua profundidade, tanto ao nosso pensamento quanto à consciência dos proletários”. Na realidade, para ele, “as relações de poder são […] ao mesmo tempo mais simples e muito mais complicadas”. Explica; “simples, uma vez que não necessitam dessas construções piramidais; e muito mais complicadas, já que existem múltiplas relações entre, por exemplo, a tecnologia do poder e o desenvolvimento das forças produtivas. Não se pode compreender o desenvolvimento das forças produtivas a não ser que se balizem, na indústria e na sociedade, um tipo particular ou vários tipos de poder em atividade – e em atividade no interior das forças produtivas. O corpo humano é, nós sabemos, uma força de produção, mas o corpo não existe tal qual, como um artigo biológico ou como um material. O corpo existe no interior e através de um sistema político. O poder político dá um certo espaço ao indivíduo: um espaço onde se comportar, onde adaptar uma postura particular, onde sentar de uma certa maneira, ou trabalhar continuamente. Marx pensava – e ele o escreveu – que o trabalho constitui a essência concreta do homem. Penso que essa é uma idéia tipicamente hegeliana. O trabalho não é a essência do homem. Se o homem trabalha, se o corpo humano é uma força produtiva, é porque ele é investido por forças políticas, porque ele é capturado nos mecanismos de poder”. [EPS, p. 259]
Portanto, para o autor, uma compreensão mais aprofundada do poder não pode ser resumir ao que ele chamou de “economicismo”, que implica uma determinação, necessária e obrigatória, em todos os casos, da esfera econômica em relação às outras esferas – esquema que, no campo do marxismo, ficou conhecido como a determinação da infra-estrutura da sociedade em relação à sua superestrutura – posição que o afasta do materialismo histórico. Uma compreensão do poder, assim, deveria negar o economicismo e o materialismo histórico como método de análise e buscar compreender as relações entre as diferentes esferas, a dependência entre elas e tudo aquilo que envolve as relações que se dão nesse sentido. O conceito central para se compreender a humanidade não é o trabalho, mas o poder.
O modus operandi do poder
Para Foucault, “onde há poder, ele se exerce”.[MP, p. 75] Essa afirmação permite voltar brevemente à primeira questão sobre o poder, e enfatizar que o poder implica relações de forças reais, que estão implicadas em uma determinada realidade social; o que afasta, dessa maneira, a noção de definição do poder simplesmente como capacidade, ou seja, como força potencial. Se onde há poder, ele se exerce, na realidade não há relação de poder sem dinamismo, sem constante movimento, já que o poder seria, antes de tudo, uma interação de forças que nunca cessa, que não vacila: “a impressão de que o poder vacila é falsa, porque ele pode recuar, se deslocar, investir em outros lugares… e a batalha continua”.[MP, p. 146] Esse sentido de batalha em permanente continuidade explicita o dinamismo constante do poder, que não poderia, nesse sentido, ser compreendido como uma relação estática e sem movimento.
“O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas, os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles.”[MP, p. 183] A noção dinâmica do poder que funciona em cadeia, em rede, estando, como se viu, em todos os lugares, permite que Foucault afirme que não é possível falar em “poder” como algo monolítico, algo que pode ser absorvido ou tomado por um indivíduo, por uma organização, por uma classe em particular. Como o poder se dá nas relações sociais, existem milhões, bilhões de infindáveis relações sociais que constituem poder; por isso a afirmação de que o poder não está necessária e completamente com um ou com outro. Nessas infindáveis relações de poder, o poder pode estar com um ou com outro, e esse amplo leque de possibilidades dá espaço à idéia de que todos os indivíduos, grupos, organizações etc. podem ter posições distintas nessas múltiplas relações de poder; em alguns momentos exercem as relações de poder, em outros, sofrem suas conseqüências. Todos, nesse sentido, são agentes capazes de receber e transmitir, e podem, dependendo da relação que se analisa, ter diferentes papéis no jogo de forças que é sempre desigual.
Essa desigualdade de forças que caracteriza a relação de poder faz, necessariamente, que exista um centro e uma periferia, um ‘em cima’ e um ‘em baixo’: “na medida em que as relações de poder são uma relação desigual e relativamente estabilizada de forças, é evidente que isto implica um em cima e um em baixo, uma diferença de potencial”.[MP, p. 250] No entanto, esse reconhecimento de que existem centro e ‘em cima’, periferia e ‘em baixo’, implicaria, na dinâmica do poder, entender que o poder emana do centro, ou da parte superior dessa pirâmide? Para Foucault, não.
“E evidente que, em um dispositivo como um exército ou uma oficina, ou um outro tipo de instituição, a rede do poder possui uma forma piramidal. Existe, portanto, um ápice; mas, mesmo em um caso tão simples como este, este ‘ápice’ não é a ‘fonte’ ou o ‘principio’ de onde todo o poder derivaria como de um foco luminoso (esta é a imagem que a monarquia faz dela própria). O ápice e os elementos inferiores da hierarquia estão em uma relação de apoio de condicionamento recíprocos; eles se ‘sustentam’ (o poder, ‘chantagem’ mútua e indefinida).”[MP, p. 221] O poder, portanto, não tem uma fonte fixa, um princípio gerador original, constante e estático e emana de diversos agentes envolvidos na relação.
Essa visão torna complexa a análise da origem das relações de poder, e impossibilita qualquer teoria que generalize o surgimento dessas relações, formulando posições que podem ser aplicadas em quaisquer casos, independente do contexto – ainda que essas posições se fundamentem nas classes sociais. “Mas se você me pergunta: esta nova tecnologia de poder historicamente teve origem em um indivíduo ou em um grupo determinado de indivíduos que teriam decidido aplicá-la para servir a seus interesses e tornar o corpo social passível de ser utilizados por elas, eu responderia: não. Estas táticas foram inventadas, organizadas a partir de condições locais e de urgências particulares. Elas se delinearam por partes antes que uma estratégia de classe as solidificasse em amplos conjuntos coerentes. E preciso assinalar, além disso, que estes conjuntos não consistem em uma homogeneização, mas muito mais em uma articulação complexa, através da qual os diferentes mecanismos de poder procuram apoiar-se, mantendo sua especificidade. A articulação atual entre família, medicina, psiquiatria, psicanálise, escola, justiça, a respeito das crianças, não homogeneíza estas instâncias diferentes, mas estabelece entre elas conexões, repercussões, complementaridades, delimitações, que supõem que cada uma mantenha, até certo ponto, suas modalidades próprias.”[MP, 221-222] O poder, desse ponto de vista, não se origina sempre na classe dominante. Entretanto, essa afirmação contra as generalizações não impede que se análise, em cada uma dessas relações, ou mesmo em um conjunto determinado de relações, as forças em jogo e como estão se colocando essas forças nas relações de poder.
Parece-me que a afirmação de que não se pode generalizar como surgem as relações de poder não implica que, em uma relação de poder dada, ou mesmo em um conjunto delas, seja impossível saber quais são as forças em jogo, quais estão influenciando, determinando, se sobrepondo às outras, e de onde partem essas forças. Segundo Foucault, não se poderia dizer que as relações de poder se originam na classe dominante; no entanto, isso não significa negar que, em diversas relações de poder, a classe dominante possa ser a fonte do poder ou mesmo exercer poder em relação a outras classes. O que se nega, parece-me, é uma origem que poderia ser teoricamente determinada e aplicada em todos os casos.
Se a origem não pode ser determinada de antemão, o sentido das relações de poder também não pode. Foucault não acredita que seja possível prever um sentido na dinâmica do poder: ela implicaria relações em todos os sentidos, ou seja: do centro da periferia, da periferia para o centro, do cume para a base, da base para o cume. Uma relação de “subida” e “descida”, conforme colocada o autor: “de modo geral, penso que é preciso ver como as grandes estratégias de poder se incrustam, encontram suas condições de exercício em micro-relações de poder. Mas sempre há também movimentos de retorno, que fazem com que as estratégias que coordenam as relações de poder produzam efeitos novos e avancem sobre domínios que, até o momento, não estavam concernidos.”[MP, p. 249] É necessário, portanto, avaliar sempre os dois sentidos: de cima para baixo, e de baixo para cima. A preocupação de Foucault, que foi sempre mais voltada ao micro-poder do que ao macro, fez com que, mesmo sem negar o movimento do centro para a periferia, do cume para a base, ele priorizasse, no que diz respeito às relações de poder, as análises da periferia para o centro, da base para o cume. Ele defende que é relevante “fazer uma análise ascendente do poder: partir dos mecanismos infinitesimais que têm uma história, um caminho, técnicas e táticas e depois examinar como estes mecanismos de poder foram e ainda são investidos, colonizados, utilizados, subjugados, transformados, deslocados, desdobrados, etc., por mecanismos cada vez mais gerais e por formas de dominação global. Não é a dominação global que se pluraliza e repercute até embaixo. Creio que deva ser analisada a maneira como os fenômenos, as técnicas e os procedimentos de poder atuam nos níveis mais baixos; como estes procedimentos se deslocam, se expandem, se modificam; mas sobretudo como são investidos e anexados por fenômenos mais globais.”[MP, p. 184]
Portanto, deve-se ter em mente que, ainda que as relações de poder permitam identificar um centro, um ápice, uma periferia, uma base, isso não significa prever de antemão a origem desse poder e nem o fluxo dessas relações que, para Foucault, podem estar em qualquer um dos pontos e se dar de cima para baixo ou de baixo para cima, do centro para a periferia ou da periferia para o centro.
Sobre esses mesmos pressupostos teóricos, Foucault analisa as relações entre as distintas esferas da sociedade. A mesma lógica utilizada nas relações centro-periferia, ápice/cume-base, servem aqui para uma reflexão sobre as esferas. Trabalhando ainda com a divisão das esferas proposta anteriormente (econômica/política-jurídica-militar/cultural-ideológica), pode-se afirmar que o autor, assim como nega uma origem pré-determinada do poder nas relações verticais, defende que o poder não surge necessariamente em uma esfera específica e nem tem um sentido único entre elas, nessas relações que poderiam ser chamadas de horizontais. Nesse sentido, o poder não emanaria, obrigatoriamente, da esfera política ou da econômica, e nem teria alguma esfera específica como necessariamente determinante. O poder poderia emanar das distintas esferas e influenciar-se mutuamente, variando, em sua origem e no sentido de suas relações, em cada caso.
Em diversas situações, Foucault trata das relações estritas entre as esferas nas relações de poder. Acredita que a economia pode determinar a política, mas a relação indissociável entre uma e outra poderia fazer com que a política também determinasse a economia. O mesmo com a questão da cultura-ideologia, que poderia ser determinada pela economia ou a política, mas também as determinar. Por exemplo, o político-jurídico, na forma dos tribunais, poderia forjar uma cultura capaz de influenciar o cultural-ideológico; ao mesmo tempo, os saberes, as distintas concepções de verdade seriam capazes de influenciar o político-jurídico. A disciplina das escolas, influenciar o político-militar e vice-versa. A cultura de subserviência e o adestramento do corpo poderiam influenciar a economia, assim como a fábrica poderia forjar uma determinada cultura. A classe dominante poderia forjar o desenvolvimento do Estado e ser ao mesmo tempo forjada por ele etc. Em suma, as origens e as relações entre as esferas se dariam nos mais diversos sentidos.
Pode-se dizer, com base na argumentação exposta, que, para Foucault, o modus operandi do poder implica múltiplos sentidos, múltiplas origens e influências, tanto verticais, como horizontais.
O fato de as relações de poder se darem em todo o corpo social permite afirmar que, para o autor, “onde há poder, há resistência”. “A análise dos mecanismos de poder não tende a mostrar que o poder é ao mesmo tempo anônimo e sempre vencedor. Trata-se, ao contrário, de demarcar as posições e os modos de ação de cada um, as possibilidades de resistência e de contra-ataque de uns e de outros.”[MP, p. 226] A dinâmica das relações de poder implica que, nas inúmeras correlações de forças da sociedade, ainda que algumas se imponham, haverá sempre resistências. “A partir do momento em que há uma relação de poder, há uma possibilidade de resistência. Jamais somos aprisionados pelo poder: podemos sempre modificar sua dominação em condições determinadas e segundo uma estratégia precisa.”[MP, p. 241]
Com essa posição, Foucault rechaça as críticas que lhe foram feitas; os críticos afirmaram que, já que o poder está em todos os lugares, não há possibilidade de resistência: “As relações de poder são relações de força, enfrentamentos, portanto, sempre reversíveis. Não há relações de poder que sejam completamente triunfantes e cuja dominação seja incontornável. Com freqüência se disse – os críticos me dirigiram esta censura – que, para mim, ao colocar o poder em toda parte, excluo qualquer possibilidade de resistência. Más é o contrário! Quero dizer que as relações de poder suscitam necessariamente, apelam a cada instante, abrem a possibilidade a uma resistência, e é porque há possibilidade de resistência e resistência real que o poder daquele que domina tenta se manter com tanto mais força, tanto mais astúcia quanto maior for a resistência.”[EPS, p. 222] Assim, a resistência se dá juntamente com o poder e possui características semelhantes: “Esta resistência de que falo não é uma substância. Ela não é anterior ao poder que ela enfrenta. Ela é coextensiva a ele e absolutamente contemporânea. […] Para resistir, é preciso que a resistência seja como o poder. Tão inventiva, tão móvel, tão produtiva quanto ele. Que, como ele, venha de ‘baixo’ e se distribua estrategicamente.”[MP, p. 241] Resistência que, em alguns casos, é chamada pelo autor de “contra-poder”.
Fechando, e novamente, a título de exercício teórico, buscarei uma possível resposta de Foucault para a questão: Como se constitui o poder e como funcionam as relações de poder?
Compreender a constituição e o funcionamento do poder e das relações de poder implica o abandono de duas noções teóricas que estão presentes nas teorias do poder: primeiramente, a idéia de que haveria um progresso ou uma evolução obrigatória da sociedade; e segundo, o economicismo e o materialismo histórico. O sentido do desenvolvimento da sociedade não está pré-determinado e é o resultado das distintas forças em jogo e, portanto, das relações de poder. O poder constitui-se em relações dinâmicas, sendo, por isso, impossível pensar nele como algo estático, sem movimento. As múltiplas relações de poder permitem que todos, dependendo da relação avaliada, possam exercer o poder ou sofrer suas conseqüências. Ainda que se possa, nas relações de poder, identificar uma estrutura piramidal, um centro e uma periferia, isso não significa que exista uma origem única do poder ou mesmo um sentido sempre igual das relações de poder: elas podem surgir no cume ou na base, na periferia ou no centro e deslocar-se de um sentido a outro. Princípio que também norteia a reflexão sobre as esferas da sociedade, permitindo afirmar que o poder pode surgir nas diferentes esferas e ter determinações múltiplas, que não têm como ser previstas a priori. Portanto, só se pode analisar a constituição do poder e o funcionamento das relações de poder a partir de casos concretos, em que se buscará identificar as forças em jogo, quais têm preponderância em relação a outras, onde estão as origens dessa relação de poder. Não é possível estabelecer uma fórmula teórica que identifique uma origem ou um sentido permanente das relações de poder, válida para todos os casos. As relações de poder convivem permanentemente com resistências, contra-poderes, que dão a elas um dinamismo e exigem dos detentores de poder que mantenham suas forças superiores às da resistência, caso pretendam se manter no poder.
Método de análise e estratégia
É relevante destacar que o método de análise colocado até aqui se distingue da estratégia, do projeto de atuação de Foucault. Deve-se pontuar que toda a força de seu método de análise, ou de sua “teoria do poder”, está no fato de ela oferecer uma ferramenta consistente para a leitura da realidade. Um método que funcionou bem para os objetos que Foucault se dispôs a estudar; todos eles no campo das micro-relações de poder. Assim, utilizar essa teoria para pensar a macro-política exige um esforço de adaptação que não me parece pequeno.
Outro fato a ser destacado é que, depois do estudo da realidade, com a utilização de um determinado método, a resposta sobre “o que fazer” é um assunto completamente distinto. E parece-me que a força de Foucault está muito mais no método de análise proposto, nessa sua “teoria do poder”, do que nas estratégias defendidas para uma intervenção na realidade, ou mesmo em algum tipo de projeto mais amplo a ser buscado nesse complexo jogo de forças.
Parece-me, também, que os elementos que o autor traz, e que permitem pensar uma estratégia, são infinitamente inferiores às suas contribuições teóricas para um método adequado de análise da realidade, ainda que ele pontue algumas necessidades relevantes em termos estratégicos: de se falar sobre o poder[MP, p. 76], de trazer o inimigo à tona[EPS, p. 114]; de se começar o combate dentro da sua própria atividade (ou passividade)[MP, p. 77]; de se buscar incluir no movimento revolucionário visões críticas de temas como prisão, gênero, opção sexual, hospitais psiquiátricos, etc.[MP, p. 78] e também desse movimento revolucionário não reproduzir as relações dos aparelhos de Estado[MP, p. 150]; de não se utilizar o Estado como modelo para as novas formas de organização[MP, p. 60].
Todas essas, são contribuições estratégicas relevantes, mas que, se colocadas ao lado de suas reflexões de método, tornam-se, de fato, pequenas, fundamentalmente pela envergadura, sem dúvida enorme, da sua “teoria do poder”.
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* Michel Foucault. Microfísica do Poder. São Paulo: Graal, 2005. 21ª edição da obra organizada por Roberto Machado. Michel Foucault. Estratégia Poder-Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. 2ª edição da obra organizada por Manoel Barros da Motta.
Notas:
1. Para as referências bibliográficas, utilizarei EPS para Estratégia Poder-Saber e MP para Microfísica do Poder.
2. Ver, por exemplo, o brilhante estudo: Tomaz Ibañez. Poder y Libertad. Barcelona: HoraSA, 1982. Nele, o autor, além de retomar praticamente toda a literatura sobre o tema “poder” disponível até aquele momento, aprofunda e filia-se à escola de pensamento de Foucault e, nesse sentido, aprofunda de maneira muito mais completa e totalizante do que faço nesse artigo.
3. Agradeço as críticas do texto realizadas pelo veterano companheiro A., “o Pequeno”, que, autodidata e conhecedor da obra foucaultiana, discordou de diversos pontos de minha abordagem e fez críticas que me fizeram modificar algumas partes do texto e também realizar reflexões presentes nesses parágrafos introdutórios.
4. O “significado forte” de ideologia, a compreende como “crença falsa”, “conceito negativo que denota precisamente o caráter mistificante de falsa consciência de uma crença política”. O “significado fraco”, a considera “um conjunto de idéias e de valores respeitantes à ordem pública e tendo como função orientar comportamentos políticos coletivos” ou mesmo como “um sistema de idéias conexas com a ação”, que compreendem “um programa e uma estratégia para sua atuação”. Cf. Norberto Bobbio et alli. Dicionário de Política. Brasília: Editora UNB, 2004, pp. 585-587.