As estratégias de transformação social que se fundamentam na utilização do Estado como meio vêm demonstrando historicamente sua incapacidade de criar poderes autogestionários; tanto aquelas que defendem a atuação por meio das eleições e das reformas, quanto aquelas que sustentam sua tomada revolucionária. - Foto:Google
As estratégias de transformação social que se fundamentam na utilização do Estado como meio vêm demonstrando historicamente sua incapacidade de criar poderes autogestionários; tanto aquelas que defendem a atuação por meio das eleições e das reformas, quanto aquelas que sustentam sua tomada revolucionária.
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26 de dezembro de 2011, de São Paulo, Felipe Corrêa

Discutir o Estado implica, necessariamente, compreendê-lo dentro de uma análise mais ampla do poder, ainda que Estado e poder não sejam sinônimos.

Pode-se trabalhar, operacionalmente, com uma conceituação do poder que o define em termos de relação de força e o articula com as noções de capacidade, regulação e controle. O poder, assim concebido, é uma relação social concreta e dinâmica entre diferentes forças assimétricas, na qual há preponderância de uma(s) força(s) em relação a outra(s). As relações de poder estão situadas no tempo e no espaço e implicam forças em permanente disputa, em correlação constante e em um jogo contínuo e dinâmico; elas estão presentes nos distintos níveis da sociedade e em todas as esferas estruturadas.

Não se pode, portanto, resumir o poder ao Estado. Quando se enfatiza a presença do poder “em todas as esferas estruturadas”, sustenta-se que há poder na esfera política-jurídica-militar, que constitui basicamente o âmbito do Estado, mas também nas esferas econômica e ideológica-cultural – divisão que, evidentemente, é realizada para fins analíticos. O Estado é uma instituição de regulação e controle da sociedade, forjada a partir das relações de poder, e que inclui governo, aparato jurídico e militar.

As relações de poder se dão a partir de um eixo de participação, cujos limites são a dominação e a autogestão; disso derivam pelo menos dois grandes modelos de poder: poder dominador e poder autogestionário. Não se pode negar que o poder historicamente representado pelo Estado é de tipo dominador, visto que usurpa a capacidade de participação real da imensa maioria da população, assegurando a dominação pela legitimidade e pela força.

Em toda a história, o Estado não serviu à criação de poderes autogestionários; ainda que em diversos casos ele tenha incorporado ou estimulado algum tipo de participação, isso sempre se deu no intuito de legitimar um determinado sistema de dominação e sua respectiva estrutura de classes. Os sistemas de regulação e controle estabelecidos pelo Estado têm visado, desde seu surgimento, à manutenção das relações de dominação.

Assim como outras teorias de base libertária, a Teoria da Interdependência das Esferas vem demonstrando que o Estado não reflete simplesmente as relações que se dão na esfera econômica, a qual certamente influencia o Estado, mas que, ao mesmo tempo, é influenciada por ele. A esfera política-jurídica-militar constitui, ao mesmo tempo, conseqüência e causa das relações que envolvem a esfera econômica. Assim concebido, o Estado é um elemento central dos sistemas de dominação e de suas respectivas estruturas de classes, as quais são forjadas pelas relações de trabalho, pertencentes à esfera econômica, mas também pelas relações governamentais, jurídicas e militares – fato que aponta para uma noção de classe que extrapola o econômico.

O próprio surgimento do capitalismo teve um papel imprescindível do Estado, que foi fundamental, com suas medidas jurídicas e militares, para abrir o campo necessário para seu estabelecimento. Exemplo disso foi o processo de luta do Estado contra as revoluções comunitaristas européias, que ocorreram desde o século XII, e cuja batalha evidenciou-se entre os séculos XVI e XVIII, terminando com a vitória do Estado. Kropotkin diria que, interpretar a morte desse “comunitarismo federalista” como um desenvolvimento natural das forças econômicas, seria a mesma coisa que chamar de “morte natural [o] massacre de cem mil soldados nos campos de batalha!” [O Estado e seu Papel Histórico].

Depois do surgimento da “questão social” no século XIX, e da resposta do Estado a uma série de reivindicações populares, constitui-se em distintos países um modelo de Estado que aumentou significativamente a legitimidade do capitalismo. Dentre as funções que são levadas a cabo pelo Estado, e que o colocam nesse papel imprescindível para o capitalismo, estão: sua função como agente econômico, garantindo a sobrevivência do sistema; mecanismos jurídicos e a intermediação da luta de classes, que visam manter o funcionamento do sistema no longo prazo; a democracia representativa contemporânea que, juntamente com a possibilidade de ascender economicamente, legitimam o sistema, gerando uma impressão de participação que faz com que ele seja considerado justo; sua influência, ainda significativa, nas instituições capazes de difundir elementos culturais e ideológicos, fundamentais para a legitimação do sistema. Mesmo sendo a legitimidade o principal aspecto do atual sistema de dominação, a força ainda possui papel central. O monopólio da violência e as instituições militares são recursos também imprescindíveis para a manutenção do capitalismo.

O Estado foi imprescindível para o estabelecimento do capitalismo e é imprescindível para sua manutenção, tanto pelas medidas de legitimidade quanto pelas medidas de força – mesmo que se possa afirmar a autonomia relativa do Estado em relação à esfera econômica.

Pode-se, portanto, reivindicar René Berthier [Marxismo e Anarquismo] para afirmar, conforme as posições de Bakunin, que o Estado não é uma instituição reacionária porque as classes dominantes o dirigem, mas por sua própria constituição: o Estado é a organização política das classes dominantes.

As estratégias de transformação social que se fundamentam na utilização do Estado como meio vêm demonstrando historicamente sua incapacidade de criar poderes autogestionários; tanto aquelas que defendem a atuação por meio das eleições e das reformas, quanto aquelas que sustentam sua tomada revolucionária. No primeiro caso, à medida que aqueles que defendem essa estratégia entram no Estado, hipotecam seus princípios e, cada vez mais, abrem mão do projeto revolucionário – conforme caso do Partido dos Trabalhadores no Brasil ou do Partido Verde na Alemanha. No segundo caso, quando se apropriam do Estado subtraem do povo sua capacidade participativa, transferindo-a a uma minoria que, em nome desse próprio povo, perpetua sua dominação – conforme todos os casos de “socialismo real”, incluindo a URSS.

As transformações que visam aumentar a participação e têm por objetivo a autogestão não podem ter no Estado seu espaço de criação de poder. As teorias apontam e a própria história demonstra que, por meio do Estado, tudo o que se pode (re)criar é a dominação.

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